domingo, 20 de outubro de 2024

O que a mídia pensa | Editoriais / Opiniões

Brasil não pode se calar ante abusos na Venezuela

O Globo

Relatório da ONU documenta mortes e prisões ilegais após fraude eleitoral que manteve Maduro no poder

O relatório do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas sobre a Venezuela divulgado na semana passada expõe mais uma vez a tibieza do Itamaraty e do Palácio do Planalto diante da ditadura de Nicolás Maduro. As violações sistemáticas de direitos humanos relatadas no documento mostram que não dá mais para o presidente Luiz Inácio Lula da Silva e seu assessor internacional Celso Amorim insistirem na tática de apaziguamento, tentando mediar uma saída negociada para a crise desencadeada pela fraude eleitoral cometida por Maduro para ficar no poder.

Já ficou claríssimo que Maduro não quer negociar nada e não tem nenhum tipo de inibição quando se trata de sufocar seus inimigos políticos. Qualquer tolerância com seu regime deve ser interpretada como anuência às violações relatadas nas 161 páginas do relatório. São casos de prisão de adversários sem ordem judicial, torturas, violência sexual, desaparecimentos depois de detenção — conjunto de crimes enquadrado na legislação internacional de defesa dos direitos humanos.

O trabalho da missão das Nações Unidas cobriu o período de 1º de setembro de 2023 a 31 de agosto deste ano. “Assim que foram anunciados os resultados das eleições, as autoridades lançaram uma campanha sem precedentes de detenções indiscriminadas e em massa”, diz o relatório. A ação da polícia venezuelana procurou atingir filiados a partidos ou gente próxima a líderes da oposição, em especial a María Corina Machado.

De acordo com as próprias autoridades, o total de prisões chegou a milhares. A missão documentou 143 em detalhes, 121 delas por atividades políticas de oposição a Maduro. Na maioria dos casos, afirma o relatório, as detenções foram feitas sem mandado judicial, por agentes em roupas civis, sem identificação, conduzidos por veículos sem placa onde os presos eram jogados. No período pós-eleitoral, as autoridades prenderam, segundo o relatório, 158 crianças. Pelo menos 25 pessoas foram mortas, quase todas a tiro. “Em pelo menos oito dos incidentes fatais, membros das forças de segurança do Estado, assim como civis simpáticos ao governo, usaram armas de fogo nos protestos”, diz o documento.

Um exemplo, entre tantos, revela como a Venezuela se transformou em Estado policial. María Adreina Camacho, coordenadora nacional do comitê de campanha do candidato oposicionista Edmundo González — vencedor nas urnas, mas hoje exilado na Espanha —, postou um vídeo às 18h30 de 6 de agosto avisando que o governo começava a pôr em marcha a Operação Tun Tun (referência ao barulho da polícia batendo na porta). Às 21h um grupo de policiais, incluindo uma mulher, foi à casa de Camacho prendê-la. Passaram-se quase dois dias sem informação de seu paradeiro. Num vídeo publicado pelas autoridades, ela aparecia algemada num pequeno avião. A família deduziu que era levada para Caracas e conseguiu localizá-la em El Helicoide, centro comercial abandonado transformado em penitenciária por Maduro.

Com o Judiciário aparelhado pelo chavismo, são inúteis os pedidos de habeas corpus. Em vez de defender os cidadãos, a Procuradoria-Geral denuncia os presos políticos às “Cortes de Terrorismo”. O relatório obriga a diplomacia brasileira a romper o silêncio e a denunciar a ditadura de Maduro em defesa dos direitos humanos.

Queda no trabalho infantil é positiva, mas ainda insuficiente

O Globo

Em 2023, havia no país 1,6 milhão de crianças e adolescentes trabalhando, mais de 580 mil em atividades de risco

Dados do IBGE divulgados na última sexta-feira mostram que, em 2023, o trabalho infantil no Brasil caiu ao menor nível da série histórica, iniciada em 2016: 1,6 milhão de crianças e adolescentes trabalhavam, 14,6% a menos que em 2022. Por mais que a notícia seja positiva, a melhora deve ser vista com cautela. Esse contingente expressivo supera a população de capitais como Recife (PE), Goiânia (GO), Belém (PA), Porto Alegre (RS) ou São Luís (MA).

A legislação proíbe qualquer forma de trabalho para crianças e adolescentes com até 13 anos. Entre 14 e 15, é permitido exercer atividades apenas na condição de jovem aprendiz, com limite semanal de 30 horas (para quem tem ensino fundamental incompleto) ou 40 horas (ensino fundamental completo). A partir de 16 anos, o trabalho é autorizado com restrições: é preciso ter carteira assinada, são vedadas atividades perigosas e em horário noturno. Nas ruas das cidades brasileiras, é fácil perceber que a realidade é outra. Não são incomuns crianças vendendo balas e doces ou lavando para-brisas para ganhar algum dinheiro.

Não só os números gerais preocupam. Pelo menos 586 mil menores — mais de um terço do total — trabalhavam em atividades que oferecem riscos à saúde e à integridade física, como minas de carvão, operação de máquinas, manuseio de produtos químicos, extração de minério ou construção civil. Esse tipo de trabalho atrai principalmente os mais jovens, na faixa de 5 a 13 anos. É verdade que, também nesse caso, a prática tem caído (em 2022, eram 756 mil). Mas o quadro continua desafiador.

Num retrato dramático, o levantamento Pnad Contínua Trabalho de Crianças e Adolescentes mostra que a maioria desses menores (65,2%) é preta ou parda, parcela que supera a representação na população brasileira de 5 a 17 anos (59,3%). O perfil traçado pelo IBGE revela ainda que os meninos trabalham mais — são 63,8%. A Região Norte concentra o maior percentual, 6,9% em relação à população de 5 a 17 anos. Em seguida, aparecem Centro-Oeste (4,6%), Nordeste (4,5%), Sul (3,8%) e Sudeste (3,3%).

É inegável o impacto do trabalho infantil na educação. Enquanto 97,5% da população na faixa de 5 a 17 anos frequenta a escola, entre crianças e adolescentes que trabalham fora das situações permitidas por lei a fatia cai para 88,4%. A constatação acende um alerta: as políticas públicas para manter os menores em sala de aula não têm sido suficientes. A frequência escolar é uma exigência para o pagamento do Bolsa Família, programa que é o carro-chefe da área social do governo. Mas é provável que a fiscalização não seja eficaz. Famílias de baixa renda também costumam rejeitar escolas de tempo integral para que os filhos possam trabalhar.

Se a queda na quantidade de crianças e adolescentes trabalhando mostra que algumas políticas públicas surtem efeito, o país ainda está longe de erradicar o trabalho infantil. É preciso um esforço maior das autoridades para manter esse contingente em sala de aula, onde todas as crianças deveriam estar.

Ou a esquerda se atualiza ou será diluída

Folha de S. Paulo

Partidos no espectro ideológico de Lula, com mau desempenho na eleição, ainda abraçam gastança e corporativismo estatal

Num passe de mágica, o candidato do PSOL à Prefeitura de São PauloGuilherme Boulos, converteu-se ao empreendedorismo neste segundo turno. Promete liberar motoristas de aplicativos do rodízio de veículos, flexibilizar propaganda nos táxis e facilitar o crédito para pequenos negócios. Disse que não elevará impostos caso eleito.

Também de chofre, e logo após o primeiro turno, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) publicou um chamado à reflexão sobre "uma mudança substancial no mundo do trabalho". Conclamou seu partido, fundado sobre uma base hoje reduzida de profissionais com carteira assinada, a acompanhar essa transformação.

O movimento pode ser tachado de oportunista, eleitoreiro e contraditório com teses da esquerda encarnada por Boulos e Lula, mas é melhor recebê-lo com otimismo cauteloso. Ele sugere uma incipiente tentativa de aprendizado diante do risco, concreto, de essa corrente continuar perdendo competitividade nas urnas.

Cinco partidos associados à esquerda —PT, PSB, PDT, PC do B e PSOL— não terão obtido mais que 13% das prefeituras neste ano. Chegaram a vencer em 25% delas em 2012, no auge de seu poderio. Não será surpresa se um fiasco semelhante ocorrer nas eleições estaduais e federal de 2026.

A esquerda no Brasil se desconectou das aspirações e convicções de parcelas vultosas e crescentes do eleitorado nacional.

Ela continua a acreditar em que o desenvolvimento econômico é uma dádiva concedida pelo Estado aos cidadãos. Essa visão incorreta e paternalista passou nos últimos tempos a incorporar abordagens preconceituosas contra quem não partilha dos valores assim chamados progressistas.

A frente liderada por Lula, ligada ao corporativismo das carreiras estatais, não enxerga a teia infernal de obstáculos em que a burocracia enreda o cidadão que deseja tocar um negócio ou simplesmente ser bem atendido pelo governo. Qualidade e eficiência do serviço lhe são secundárias.

A aversão ao lucro, encarado como pecado medieval, convive na esquerda carcomida com o mais desabrido voluntarismo quando se trata de consumir o dinheiro dos impostos. A gastança sem lastro empobrece a sociedade, alimenta a inflação e o rentismo do juro alto e acaba reduzindo a capacidade do governo de sustentar programas sociais.

Na política externa, o esquerdismo segue a cartilha de criticar governos de adversários ideológicos, mesmo que sejam democráticos, e aliviar as barbaridades cometidas por ditadores amigos. Nicolás Maduro que o diga.

O conjunto da obra esquerdista deixou de encantar carradas de eleitores no Brasil e em outras democracias mundiais. O trabalhismo inglês, espécie de arquétipo do PT, teve de se reformar e atualizar para voltar ao governo.

A expectativa é que a pressão do eleitorado brasileiro ajude a transformar a esquerda também por aqui. Quem não entender a lição corre o risco de ser diluído.

Caso Enel demanda boa regulação, não voluntarismo

Folha de S. Paulo

Renovação de contratos é chance para adaptar sistema a eventos climáticos; deve-se fortalecer a Aneel e rever subsídios

A disputa política sobre o apagão que atingiu 3,1 milhões de pessoas em São Paulo é educativa, por trazer à tona problemas na regulação e no planejamento do setor elétrico.

Não se trata de questão localizada, nem há soluções simples para o tema tecnicamente complexo. Mas urge uma revisão ampla diante do acúmulo de ineficiências e distorções, além dos custos elevados ao consumidor.

No caso das distribuidoras, o principal problema envolve a resposta para impactos de eventos climáticos sobre a rede elétrica. Devem-se mobilizar mais recursos para modernizar a rede, sem encarecer ainda mais a tarifa.

Os contratos de concessão atuais —a maioria do final dos anos 1990— estipulam parâmetros para medir a qualidade de serviço, como frequência e duração das interrupções no fornecimento, mas excluem eventos extremos.

Quanto à concessionária Enel, pelo visto não houve descumprimento de indicadores, embora tudo aponte para incompetência na elaboração e operação do plano de contingência acordado com a agência reguladora do setor, a Aneel, a qual cabe finalizar apurações e aplicar as sanções.

A exigência de mais aprimoramentos na rede e na prevenção contra crises deve se dar na renovação dos contratos, boa parte dos quais vencerá até 2030. O Ministério de Minas e Energia sinaliza para renovação antecipada não onerosa, em troca de mais investimentos e do endurecimento geral das cláusulas de controle de qualidade.

O desafio, como sempre, será balancear sem populismo a boa prestação do serviço, a rentabilidade da operação e a modicidade tarifária. Tal empreitada vai além da distribuição e deve incorporar uma ampla revisão do planejamento do setor.

Na geração, a forte expansão da energia solar é bem vinda, mas sua intermitência traz desafios para a gestão do sistema, que precisa contar com outras fontes, como térmica e hidrelétrica, em bases flexíveis.

Os aportes precisam abarcar desde mais geração e reserva de capacidade nos horários necessários até melhoria da rede de distribuição. O custo, por óbvio, será repassado à tarifa. Por isso, é fundamental revisar os diversos subsídios e programas que já oneram em demasia o consumidor.

Tudo isso demanda coordenação. Embora a iniciativa dependa do ministério, é essencial fortalecer a governança da Aneel, hoje prejudicada por orçamento precário, cargos não preenchidos e risco de captura política, sem falar na notória hostilidade do PT à autonomia das agências.

Lula ignora a classe média

O Estado de S. Paulo

No mundo binário do presidente, a classe média tradicional não passa de uma burguesia ignorante, o avesso do Estado que ele e o PT representam. E, assim, nada têm a lhe oferecer

Quem não se deixa enganar facilmente pelos alquimistas do Palácio do Planalto e do PT sabe que há praticamente dois universos na cabeça do presidente Lula da Silva: os pobres e miseráveis, de um lado, e os ricos e bilionários, de outro. No mundo binário do presidente, que costuma dividir o mundo entre o Bem e o Mal, os pobres foram anexados à classe média, e os ricos costumam fazer parte das maquinações conspiratórias para apear a esquerda do poder. Com efeito, o lulopetismo é incapaz de enxergar as aspirações, necessidades e demandas mais atualizadas da classe média – não aquela que, nos primeiros mandatos petistas, se convencionou chamar de “nova classe média”, a classe C impulsionada pelos programas de transferência de renda. A classe média de que se trata aqui é a tradicional, mais afortunada, mais próxima dos padrões internacionais que habitam o imaginário de muitos, e hoje mais empobrecida, endividada e carente de políticas públicas que a ajudem a se recuperar dos danos deixados por longos períodos de crescimento econômico pífio ou recessão.

A essa classe média, governos lulopetistas só parecem destinar medidas populistas, como a recente proposta de ampliar a faixa de isenção do IR para quem ganha até R$ 5 mil ou a fartura de linhas de crédito, como no segundo mandato de Lula. Já que dinheiro é algo escasso no Brasil, sobra muito pouco para o aceno a essa classe média. E o mais grave: há dificuldade histórica da esquerda brasileira de lidar com ela. Faixas de renda costumam separar as classes sociais do País, mas há também elementos subjetivos que a classificam. Em outras palavras, classe média é um estado de espírito, um jeito de ser, agir e enxergar o mundo. Uma vocação natural para querer fazer mais com as próprias mãos e dar asas ao desejo natural de “subir na vida”. Isso requer mais dinheiro, sem dúvida fundamental, mas também um Estado que interfira menos em suas vidas – mais liberdade, menos burocracia, melhores condições para empreender e crescer. Por fim, o melhor uso dos recursos públicos, isto é, um uso racional, eficiente e equilibrado, capaz de manter as coisas em ordem e oferecer bons serviços públicos.

Tudo isso representa o oposto do modelo de Estado personificado por Lula da Silva. Antes fosse uma sutil dificuldade de compreender a classe média e buscar soluções compatíveis com seus anseios. Como se trata do lulopetismo, o problema é mais profundo: constatam-se não só desconhecimento e desatualização (há morubixabas petistas, mal saídos da Revolução Industrial e do virtuoso mundo do sindicalismo do século 20, que ainda dividem o País entre burguesia e proletariado), mas a própria negação violenta da legitimidade da classe média. Recorde-se a célebre aula da filósofa Marilena Chauí, que num debate sobre os dez anos de governo lulopetista admitiu, com desabrida sinceridade: “Eu odeio a classe média. (...) A classe média é o atraso de vida. (...) É uma abominação política, porque é fascista, uma abominação ética, porque é violenta, e ela é uma abominação cognitiva, porque é ignorante”. Trata-se, como se sabe, de uma das principais intelectuais ligadas ao PT.

Os anos se passaram, e o PT e a esquerda não aprenderam, como demonstram as eleições municipais de 2024. Seguem difundindo a ideia de ricos contra pobres, nada realista diante das mudanças das últimas décadas, e ignorando as diferentes camadas de classes médias – dos seus estratos mais populares até os, vá lá, mais “burgueses”. Nuances que se espalham pelas cidades cada vez mais adensadas do interior e cada vez mais múltiplas em metrópoles como São Paulo. O complexo de superioridade ainda prevalece ao olhar para uma classe média que deseja virar “burguesia”, para um segmento evangélico com desejo de prosperidade e mesmo para os mais pobres que passaram a votar na direita – aqueles que o sociólogo Jessé Souza, outro porta-voz da esquerda, chama esnobemente de “idiotas” e “imbecis”. E assim, sem entender o mundo ao redor e restringindo-se ao universo paralelo dos preconceitos e estereótipos, Lula e o PT ignoram uma parcela significativa do Brasil que não tem “consciência de classe” nem quer ter.

Uma emancipação capciosa

O Estado de S. Paulo

Sob o argumento de reduzir os aportes do Tesouro nas ‘estatais dependentes’, governo propõe ‘emancipá-las’, mas pode estar apenas abrindo espaço para driblar o arcabouço fiscal

O governo Lula da Silva enviou ao Congresso dois projetos que alteram regras de contabilização de empresas públicas. Pela proposta, estatais que dependem de recursos do Tesouro, como Telebras e Codevasf, poderão ser transferidas dos Orçamentos Fiscal e da Seguridade Social (OFSS), em que ficam os gastos submetidos aos limites fiscais, para o Orçamento de Investimento, no qual estão as empresas financeiramente independentes, como a Petrobras.

Trata-se de uma medida que, à primeira vista, emana um ar de esperteza fiscal por facilitar uma filtragem de gastos no Orçamento federal. Embora o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, argumente que o objetivo é o de explorar a possibilidade de reduzir o aporte federal em estatais “que têm condição de se emancipar, por assim dizer, do Orçamento”, a medida gera desconfiança porque, como disseram especialistas ouvidos pelo Estadão, a fiscalização dos gastos dessas empresas tende a ficar mais frouxa.

Cerca de 95% dos R$ 39 bilhões de custos previstos este ano com as 17 estatais dependentes virão do erário. Se a arrecadação própria dessas empresas é mínima e se elas têm de ser mantidas com o dinheiro do contribuinte, parece irrazoável que sejam tratadas como empresas que não necessitam de recursos públicos para operar. A ideia do governo é que a pequena parcela da receita produzida por essas estatais fique no caixa da própria empresa, em vez de integrar o caixa da União, como é hoje, o que as liberaria para bancar gastos um pouco além dos limites do arcabouço.

O argumento – que parece frágil diante das necessidades atuais dessas empresas – é o de promover uma transição para uma situação de independência. Há quem considere que o desenho foi feito sob medida para a Telebras, que passou ao rol das dependentes em 2020 e está com dificuldades de pagar fornecedores. Mesmo assim, a ideia de passar as estatais dependentes para a rubrica de investimento parece estar mais de acordo com a ladainha de Lula da Silva segundo a qual gasto público é “investimento”.

Como mostrou reportagem recente do Estadão, a manobra carrega o potencial de abrir espaço orçamentário para novos gastos. Mesmo que não seja um volume significativo, segundo especialistas, isso configuraria um drible no arcabouço fiscal. Os aportes do Tesouro continuarão contabilizados no Orçamento, mas os gastos viabilizados com receita própria ficarão fora do controle.

A desconfiança com as consequências aumenta quando a medida é confrontada com outros sinais emitidos pelo governo como, por exemplo, o descumprimento de regras que preveem a extinção de cargos da Telebras. Em vez de reduzir de 56 para 31 os cargos comissionados da empresa até julho deste ano, o governo deu mais cargos à estatal, responsável pela política de inclusão digital, além de retirá-la da lista de privatizações. Como agravante, há ainda as indicações de parentes e apadrinhados de integrantes do governo, seguindo a mesma linha adotada pela Codevasf. Responsável pelas obras no Vale do São Francisco, a empresa é outra das dependentes e ficou conhecida como “a estatal do Centrão”.

A “transição para a independência” proposta pelo governo ocorreria com o uso do contrato de gestão, um dispositivo previsto na Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) e na Constituição. Trata-se de um instrumento firmado entre órgãos da administração direta e indireta e o poder público usado para fixar metas de desempenho. Originalmente, o objetivo é aumentar a eficiência e a sustentabilidade de empresas públicas. Usá-lo para “emancipar” estatais dependentes é um risco ou, como explicou a presidente da Associação da Auditoria de Controle Externo do Tribunal de Contas da União, Lucieni Pereira, uma irresponsabilidade.

A privatização, como estava previsto para algumas dessas empresas, seria um mecanismo mais transparente, rápido e definitivo para retirá-las do Orçamento. Mas uma das primeiras medidas anunciadas por Lula da Silva em seu terceiro mandato foi retirar dez estatais dos programas de desestatização e de parcerias, entre elas as “dependentes” Telebras, Conab, EBC, Nuclep e Ceitec.

A democracia do Foro de SP

O Estado de S. Paulo

O PT de Lula, aquele que diz defender a democracia, assina nota que aplaude a ‘vitória’ de Maduro

Ninguém pode acusar a companheirada latino-americana de incoerência. Reunido na Cidade do México, um grupo de trabalho do Foro de São Paulo reconheceu a “vitória” do ditador Nicolás Maduro nas eleições presidenciais venezuelanas – que foram flagrantemente fraudadas pelo regime chavista, conforme atestaram as mais diversas e insuspeitas organizações internacionais. O PT, partido do presidente Lula da Silva, aquele que liderou uma autointitulada “frente ampla pela democracia” nas eleições presidenciais de 2022, subscreve o obsceno comunicado, que cospe na cara de todos e de cada um dos democratas que, arriscando a própria vida e a liberdade pessoal, enfrentam o déspota venezuelano.

Para o PT e seus associados, é um “imperativo” exigir que se “respeite a institucionalidade democrática da Venezuela e a autodeterminação do povo venezuelano com relação aos resultados eleitorais que deram a vitória ao presidente Maduro”. Do contrário, segue o raciocínio, triunfará a extrema direita, que, segundo esses valentes humanistas, está se organizando em todo o mundo para “influenciar a política e os destinos dos povos a partir do ponto de vista dos interesses do capital financeiro internacional e transnacional, ao custo da vida das pessoas, da humanidade e do planeta”. Ou seja, reconhecer a vitória de Maduro equivale a salvar o mundo.

Ao que tudo indica, pouco importa a fuga em massa dos venezuelanos desesperados em razão da deterioração econômica causada pela ditadura e também daqueles que buscam escapar das garras do regime, que prende e tortura seus adversários de maneira generalizada, conforme constataram investigadores da ONU.

O que interessa, segundo se lê no comunicado do Foro de São Paulo, é defender a “soberania” dos países latino-americanos contra o “imperialismo estadunidense”, cuja prioridade é “frear a influência de China e Rússia na América Latina e no Caribe, região por eles considerada seu ‘quintal’, em sua busca por fontes de recursos naturais e de mercados”. Se milhares morrerem ou perderem seus direitos políticos no caminho, esse é o preço a pagar para a realização da utopia marxista.

Pode-se dizer que nada disso surpreende, é claro. O Foro de São Paulo foi criado por iniciativa de Lula e de Fidel Castro, o que basta para conhecer sua índole. Nada do que ali seja produzido terá utilidade ou importância para o debate público. Mas é dever de uma democracia genuína, como a brasileira, reagir quando o partido do presidente da República esposa ideias tão antidemocráticas como as que o Foro expressa, sobretudo diante do sofrimento do povo venezuelano.

A julgar pelo contorcionismo retórico do chanceler de facto, Celso Amorim, para impedir o Brasil de se juntar aos países civilizados na condenação de Maduro, o governo Lula, no fundo, parece concordar com os companheiros do Foro de SP. E mesmo depois que foi seguidamente desrespeitado pelo governo de Maduro, sendo acusado inclusive de ter sido “recrutado pela CIA”, Lula continua obsequiosamente silente.

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