Correio Braziliense
A União não tem mandato constitucional para
cuidar, investir e responder pela segurança pública. Também não dispõe de uma
fonte de recursos para, ainda que quisesse, arcar com esse mandato
Não há perspectiva de saída para a crise da
segurança pública — que há muito já se configura uma emergência — sem dotar a
União de meios para dividir com os estados a responsabilidade pela formulação e
aplicação de uma política nacional capaz de reverter a supremacia do crime
organizado.
Daí porque, já concluído o debate e refeito o
texto da PEC proposta pelo ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski, que
reorganiza e fortalece o sistema de segurança por meio da integração entre os
entes federados, é dever do Congresso Nacional priorizar sua tramitação para
que, ainda este ano, possamos começar o resgate de décadas perdidas.
A PEC é apenas o começo de um longo e complexo trabalho, sempre adiado com medidas paliativas, geralmente às vésperas de eleições, quando o clamor público encontra ressonância política. Esse círculo vicioso se esgotou, porque não há mais repertório de medidas cosméticas diante do avassalador avanço do crime, já infiltrado no Estado de forma assustadora.
E, por que a PEC? Porque, em nossa
Constituição, praticamente tudo que diz respeito à segurança pública
encontra-se inscrito em apenas um artigo. É evidente que existem outros
rebatimentos, menções e remissões, mas é no Art.144 que está a síntese da arquitetura
que a Constituinte de 1988 formulou para esse tema.
A primeira observação a fazer é que, apesar
de seu caráter social, a segurança pública não faz parte do sistema de
seguridade social, como ocorre com a educação, a previdência e a saúde, por
exemplo, de abrangência universal.
Isso quer dizer que a segurança pública não
obteve nem os pisos que depois foram conferidos tanto à assistência social
quanto à saúde, tampouco o automatismo ou a obrigação de arcar com os gastos
que nós temos na previdência e já também na própria educação.
Universalizamos a saúde por meio do Sistema
Único de Saúde (SUS), com todas as suas dificuldades e precariedades;
conseguimos uma ampla cobertura no que diz respeito à assistência social;
universalizamos a educação pública, mas a segurança pública continua fora do
sistema de seguridade social.
A União, portanto, não tem mandato
constitucional para cuidar, investir e responder pela segurança pública, porque
ela fica, numa conta de padeiro, em 80% a 85% com os estados. Em segundo lugar,
ela não dispõe de uma fonte de recursos para, ainda que quisesse, arcar com
esse mandato.
Nenhuma das sete constituições que tivemos,
desde a de 1824 até a de 1988, alterou essa realidade. Mesmo com os tempos mais
recentes evidenciando a internacionalização e a sofisticação do crime
organizado, continuamos a tratá-lo como um problema doméstico — o que, há
muito, deixou de ser.
A Constituição de 1988, feita pós-regime
militar, no qual havia ocorrido a junção entre segurança nacional e segurança
pública, faz exatamente a separação entre ambas e adjudica aos estados todo o
esforço no que diz respeito à ordem pública.
Um terceiro aspecto ainda constitucional a
chamar a atenção é que, na arquitetura montada pela Constituinte de 1988, as
cidades e os municípios não participam do sistema de segurança, o que é um erro
capital.
Não apenas porque a tendência mundial diz
respeito à municipalização e à localização das questões referentes à segurança,
mas também porque as cidades têm uma capacidade de identificar onde está a
mancha criminal. Elas sabem onde existe a vulnerabilidade, sobretudo de jovens
entre 15 e 24 anos que vêm morrendo neste país, e matando também — é preciso
dizê-lo —, de uma maneira absolutamente anormal.
A rigor, essa distorção nos remete ao DNA
oligárquico que permeia nossa história, em que a segurança era voltada
sobretudo para garantir a contenção das chamadas "classes
perigosas".
Paramos no tempo, porque somos uma sociedade
de massas que se urbanizou, conquistou direitos formais e demanda o mais básico
de todos eles — o de garantia da vida e do direito de ir e vir, subtraído a 23
milhões de brasileiros que, segundo pesquisa Datafolha, vivem subjugados por
traficantes e milicianos em seus próprios bairros, sob suas próprias
leis.
Junte-se a isso o nosso sistema
penitenciário, terceiro no ranking mundial (atrás apenas dos EUA e da China),
com 888 mil presos, sendo 216 mil sem condenação, dominados por parte das 88
facções criminosas em atividade, e temos a falência completa do sistema.
Em tais circunstâncias, os que se opõem à
reforma da Constituição para dotar o poder central de competência na segurança
pública estão, mesmo sem saber, assinando seu epitáfio, configurado nesses
cenários e estatísticas de uma realidade insofismável.
O Brasil já vive a "tragédia
suficiente", que mobilizou a Medellín, de Pablo Escobar, no caminho do
pacto que reverteu os maiores índices de letalidade da história. Nosso desafio
é maior, porque somos uma Medellín continental.
Por fim — mas não menos importante —, resta o
risco à democracia. Em 2018, ao assumir o Ministério da Segurança Pública, tive
a expectativa de que a pasta fosse definitiva nos governos seguintes. E alertei
para o risco de uma descontinuidade estimular uma regressão autoritária no
país.
A anomia que nos ameaçava, então, se
materializou, porque propostas populistas e autoritárias prosperam em cenário
de insegurança pública.
*Diretor-presidente do Instituto Brasileiro de Mineração (Ibram) e ex-ministro da Defesa e da Reforma Agrária
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