Valor Econômico
A voz de Eunice Paiva não é voz do passado,
do que foi e dos que se foram. Ela é uma necessidade social e política
Mal iniciado o ano, mais de 3 milhões de
pessoas já haviam comparecido aos cinemas para ver “Ainda Estou Aqui”, de
Walter Salles, baseado no livro de Marcelo Rubens Paiva sobre a tragédia de sua
família, que teve início com o sequestro de seu pai, o ex-deputado Rubens
Paiva, por militares à paisana.
Esses milhões expressam a prontidão
insubmissa da consciência crítica e democrática dos que resistem à violência e
à mentira do autoritarismo que subjuga e humilha uma nação inteira. O restolho
da ditadura sobreviveu e retornou ao poder em 2019, apoiado na falsa
consciência dos alienados.
Desde o dia seguinte ao do término formal do golpe de 1964, dissimulados, continuaram a maquinar, nas brechas da democracia inacabada, a tirania de seu modo de mandar e comandar como se fosse modo de governar.
Ingênuos, como somos, não sentimos o cheiro
de enxofre, disseminado na neblina de nosso atraso e de nossas lentidões.
Muitos brasileiros nunca entenderam que a República não nos fez republicanos
nem cidadãos nem patriotas nem donos de nós mesmos. A Lei Áurea não libertou os
que careciam de liberdade, os cativos, antigos e novos, do latifúndio. A
República disfarçou, modernizou e institucionalizou a senzala. E
profissionalizou os capitães do mato.
Ainda que muita gente tenha escapado das
armadilhas da História, abolição e República não são obra de alguns, menos
ainda dos espertos e dos espertalhões. Obra não concluída que nos faz uma
sociedade de vítimas. Somos uma nação de sobreviventes.
Seria um erro ler o livro de Marcelo Rubens
Paiva como se fosse um panfleto político escrito para exorcizar as almas
penadas dos que, nesta quadra de incertezas em que estamos, personificam a
burrice, a ignorância, o oportunismo dos que não servem ao país, mas do país se
servem.
O livro é melhor lido com o método de Antonio
Candido, que define uma obra literária e a obra de arte como formas de
manifestação de necessidades expressionais, as do autoconhecimento da
sociedade.
Ainda assim, a arte é autoral, na
criatividade literária e artística que distingue Ignácio de Loyola Brandão de
Maria Adelaide Amaral, de Mafra Carbonieri, de Anna Maria Martins, de Lygia
Fagundes Telles, de Ruth Guimarães. São eles autores do inatual de nossa
atualidade.
É que na obra de arte não é o autor quem
fala, escreve, pinta ou fotografa. É ele e o outro que nele há. Ele não é a voz
da solidão. A história o escolhe para que ele dê forma às necessidades de
expressão da sociedade, de traduzir em dizer e em significar aquilo que ela é,
mas não parece ser nem sabe propriamente que é.
Marcelo Rubens Paiva começa seu livro com
lúcidas e desafiadoras referências à memória, ao envelhecimento e ao
esquecimento, à perdição de nós mesmos em relação ao que fomos desde o
nascimento. Somos esquecendo, mas não suprimindo porque, no outro, o feito está
feito. A memória é social.
Talvez, com Guimarães Rosa, ele queira dizer
que o sentido de uma biografia está no meio da travessia, nesse não chegar
próprio desta sociedade dominada pelo tempo do inacabado e do inacabável.
É sua mãe, Eunice Paiva, personagem do livro,
quem lhe revela, na desmemória do Alzheimer, que o meio da travessia é a chave
do enigma do social como uma totalidade em totalização. Que esta sociedade do
individualismo não é uma sociedade de indivíduos, mas de pessoas, de gente.
Marcelo autor não é um apenas. Sua mãe lhe
diz somos. O “eu estou aqui” quer dizer eu estou em você que me interpreta, que
me expressa, me decifra para que o outro me compreenda como outro e se
compreenda. Os milhares que lerão teu livro de minha fala silenciosa. Os que
veem o filme magistral que, inspirado no livro, Walter Salles fez e nele
Fernanda Torres me representa. Representar é tornar presente o ausente.
Porque, sabendo ou não, somos socialmente um
todo. Pelo livro convertido em filme os já milhões de espectadores colocam sua
consciência em face dos tormentos da ditadura não só na tortura e nos
assassinatos, mas também nas mediações cotidianas da vida de outros. O grito de
Eunice não é só dela, é do outro que somos. É de Rubens Paiva, que aponta o
dedo acusador para o brigadeiro nazista por trás dos que o prenderam e mataram.
E para o coronel evangélico que fez o mesmo com tantos outros no Doi-Codi, escondendo
sua covardia nas páginas manchadas de sangue de sua Bíblia apócrifa.
A voz de Eunice não é voz do passado, do que
foi e dos que se foram. Ela é uma necessidade social e política que os
ressuscitados agentes da ditadura manipulam para bloquear a insurreição das
consciências que estão aqui, nas páginas do livro e do livro e no filme. A
cultura não é ideologia, é a alma insubmissa da liberdade e da vida.
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