sexta-feira, 17 de janeiro de 2025

O ameaçador mundo novo – Fernando Gabeira

O Estado de S. Paulo

Coalizão de ‘big techs’ que se formou em torno de Trump e tende a favorecer a extrema direita mundial, além de superpoderosa, nega as mudanças climáticas

Oanúncio da Meta indicando que vai alterar seu sistema de trabalho trouxe um grande debate ao Brasil. A empresa decidiu acabar com a estrutura de mediação dos posts e aceitar alguns comportamentos retrógradas, como associar orientação sexual a doença.

Nem todas as decisões da Meta coincidem com a legislação brasileira, bastante clara sobre racismo e homofobia. Certamente não coincide com a legislação escocesa, que recentemente lançou um ato sobretudo para proteger as pessoas trans.

É mais ou menos consenso que as empresas têm o direito de definir suas normas, mas precisam respeitar as legislações nacionais. É uma questão de soberania.

No entanto, por mais acalorado que seja, esse debate não atinge ainda a dimensão das mudanças que estamos experimentando. Formou-se uma coalizão de bilionários em torno do governo Donald Trump, alguns deles como Elon Musk e Mark Zuckerberg, donos das big techs que controlam a infra do debate mundial nas redes.

Esse é um desafio histórico, sem precedentes e muito imediato para que possamos ter alternativas acabadas para ele.

Uma linha de raciocínio e também de estudo é compreender que a ideia de soberania nacional não pode se limitar a um debate sobre como aplicar a lei na redes, mas precisa avançar desse plano simbólico para o plano econômico.

As redes sociais têm hoje uma importância enorme no comércio assim como são a chance de renda para milhares de trabalhadores autônomos. Sem elas, viveríamos um baque sem precedentes.

Lula da Silva fez uma reunião para ver como tratariam as normas da Meta, que na verdade tornaram-se idênticas às do X. Ao invés de estruturas de moderação, existem notas da comunidade. Portanto a Meta vai argumentar que atua no mesmo nível de legalidade do X. O argumento de que atinge um número maior de usuários não tem fundamento, na medida em que a lei não diferencia o tratamento das redes pelo número de usuários.

Uma das reuniões necessárias poderia, por exemplo, avaliar possibilidade de reduzirmos a dependência das big techs. Esse tipo de reunião tem de contar com gente que conheça bem e consiga mapear o longo e áspero caminho pela frente.

Não sou especialista nesses temas. Mas tenho uma intuição na qual pretendo trabalhar. Essa coalizão que se formou em torno de Trump e tende a favorecer a extrema direita mundial, além de superpoderosa, nega as mudanças climáticas.

Alguns dos caminhos de adaptação às mudanças climáticas coincidem com a possibilidade de reduzirmos o poder das big techs sobre as estruturas nacionais.

Um deles é a transição energética no sentido da produção de energia barata, abundante e renovável. Esse tópico é essencial nos dois aspectos: redução das emissões e possibilidade de fornecer a matéria-prima para um mundo em que a inteligência artificial (IA) tem papel dominante.

A quantidade de energia que os centros de dados demandam é brutal e já tem um peso no consumo norte-americano. Alguns especialistas costumam dizer que a IA, para ter as mesmas possibilidades da mente humana, precisa da energia de toda uma hidroelétrica. Pode ser uma força de expressão, mas serve para ilustrar o problema.

Em termos de defesa diante das big techs, a descentralização que é demandada num mundo mais sustentável precisa se dar também na infraestrutura de comunicação. Quantos satélites temos, quantos precisamos, quem nos ajudará a lançá-los no espaço? Como estão as redes de fibra ótica, como construir novas e descentralizadas?

Da mesma forma, talvez seja preciso desenvolver tecnologias de comunicação offline, como servidores locais e intranet.

Assim como nas mudanças climáticas, é necessário incentivar a produção local para reduzir a dependência de cadeias globais.

Na pandemia, vimos nossas lacunas em material médico, abundante na Índia e China. Na guerra da Ucrânia, sentimos a falta de fertilizantes.

Além disso, precisaríamos avançar na formação de mão de obra qualificada em setores críticos: cibersegurança, engenharia de redes e gestão de crise.

Ideal também seria criar sistemas redundantes para várias rotas de cabos submarinos para comunicação global.

Enfim, será preciso investimento numa economia diversificada em inovação e tecnologia, e ainda assim estaríamos dependentes das redes pela sua importância decisiva para nossa sobrevivência.

As ideias que estou apresentando são apenas as que nascem da própria luta contra o aquecimento global, e também de sugestões da própria IA confrontada com a pergunta: o que um país pode fazer para se tornar menos dependente das redes?

Hoje estamos diante de uma realidade sem precedentes. O mundo caminha para ultrapassar os limites planejados para o aquecimento global e, ao mesmo tempo, está diante de uma forte coalizão de big techs em torno de um governo que nega o fenômeno, duvida das vacinas e não reconhece a necessidade de proteção de setores vulneráveis.

As tarefas para enfrentar esse novo momento são gigantescas. Diante delas as pequenas divergências são insignificantes, assim como a necessidade do diálogo é urgente, mesmo que a gente reconheça que nossas propostas são ainda embrionárias e só o tempo e a troca coletiva poderão amadurecê-las. •

 

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