O que aguardar dos novos líderes do Congresso
Correio Braziliense
Por enquanto, a disputa para a presidência das duas Casas tem como favoritos o deputado Hugo Motta (Republicanos-PB) e o senador Davi Alcolumbre (União-AP)
Marcada para o início de fevereiro, a eleição para as presidências da Câmara dos Deputados e do Senado Federal representa a oportunidade de continuar os avanços na aprovação de matérias relevantes para o país. Isso passa por uma melhor articulação do Executivo com o Legislativo, mas também pela adoção de um espírito público por parte dos parlamentares, particularmente no que se refere ao Orçamento da União, ainda maculado por interesses paroquiais e falta de transparência, e à regulação das redes sociais, uma lacuna permanente na realidade brasileira.
Por enquanto, a disputa para a presidência das duas Casas tem como favoritos o deputado Hugo Motta (Republicanos-PB) e o senador Davi Alcolumbre (União-AP). Ambos acumulam um bom trânsito entre os pares, o que explica por que despontaram, com meses de antecedência, como os prováveis sucessores de Arthur Lira (PP-AL) e Rodrigo Pacheco (PSD-MG), respectivamente. Tanto governo quanto oposição estão a calcular o melhor posicionamento nesta troca de turno no Legislativo, com impacto não apenas na votação de matérias de interesse de diversos setores da sociedade, mas também na correlação das forças políticas em Brasília.
Nesse contexto, é preciso observar com atenção os desdobramentos de importantes temas para a evolução política, econômica e social do Brasil. É fundamental, por exemplo, que a regulamentação da reforma tributária se encaminhe para um formato melhor do que se encontra atualmente. Em 2024, ficou notória a grande quantidade de exceções para determinados serviços e produtos. Com tantas concessões, é real o risco de a alíquota padrão do Imposto sobre Valor Agregado (IVA) ficar próxima de 30%, possivelmente a mais alta do mundo.
Afora a pauta econômica, já passou da hora de o Legislativo deliberar sobre um tema de relevância política mundial: a regulação das redes sociais. A ausência de regras para as plataformas digitais tem provocado prejuízos a pessoas e empresas, como se viu recentemente no rumoroso caso da suposta taxação do Pix. A inação do Congresso nesse tema forçou, ainda, o Supremo Tribunal Federal a debater normas para o espaço virtual — esse movimento é visto, por muitos, como uma invasão do trabalho legislativo. Está evidente que os novos presidentes da Câmara e do Senado precisam dar prioridade a essa matéria.
Por fim, e não menos importante, os futuros líderes das Casas Legislativas têm o dever de seguir os determinantes estabelecidos pelo STF quanto às emendas parlamentares. A exigência de transparência e rastreabilidade no tratamento de recursos federais colocou o Judiciário de um lado e o Executivo e o Legislativo de outro. Enquanto o Supremo exigia o cumprimento das regras constitucionais sobre o Orçamento, governo e Congresso Nacional construíam subterfúgios para manter a opacidade no manejo do dinheiro do contribuinte. Urge corrigir essa anomalia.
A uma semana de serem escolhidos pelos pares, os futuros presidentes da Câmara e do Senado têm a missão de trabalhar em favor de um país com mais transparência, segurança jurídica, estímulo a investimentos e menor desigualdade social. Esse é um desafio à altura dos interesses da nação.
O Globo
Como o filme fotográfico, a máquina de
escrever ou o mimeógrafo, motor a combustão será coisa do passado
A venda de carros elétricos bateu todos os recordes no Brasil em 2024. Foram 177.358 veículos emplacados ao longo do ano, ante 93.927 em 2023, de acordo com a Associação Brasileira de Veículos Elétricos. É verdade que ainda é uma fração pequena dos 2,6 milhões de carros novos vendidos no Brasil. O modelo elétrico de maior sucesso, o chinês BYD Dolphin Mini, com perto de 22 mil unidades, é o 35º na lista de mais vendidos (liderada pelo Fiat Strada, com 145 mil). Mesmo assim, o crescimento de 89% dos elétricos foi mais de seis vezes o da indústria, que ficou em 14%. E a tendência é inequívoca.
No mundo todo, as vendas de elétricos —
incluídos veículos movidos apenas a bateria e modelos híbridos — ficaram ao
redor de 17 milhões, dos quais 10 milhões apenas na China. A proporção de
elétricos no total vendido tem crescido em praticamente todos os países. Foram
18% na Tailândia, 12% na Costa Rica e no Vietnã, 10% nos Estados Unidos e 7% no
Brasil. No mercado americano, onde o crescimento arrefecera, eles cresceram
perto de 20% no ano passado, ante estagnação nos veículos movidos a combustão.
O êxito crescente dos elétricos tem um motivo
simples: o preço das baterias tem despencado, em razão de avanços na capacidade
de armazenamento de energia e
da queda no preço dos metais usados na produção. Um estudo do banco Goldman
Sachs estima que, entre 2019 e 2024, o custo caiu de US$ 180 para US$ 110 por
quilowatt-hora armazenado — e desabará para US$ 60 até 2030. A evolução na
capacidade das baterias tem sido comparada à Lei de Moore, que prevê queda de
preço e aumento na capacidade dos chips a cada dois ou três anos. Sempre que
isso acontece com uma nova tecnologia, ela entra em ritmo irresistível de
adoção, movida pela força econômica. “Quando as baterias cruzarem certo ponto,
a revolução dos veículos elétricos adquirirá força própria”, escreve o
economista Noah Smith. “Será simplesmente mais barato comprar um carro elétrico
que um a combustão.”
As vantagens já são sentidas em cidades
brasileiras, onde motoristas têm preferido gastar um pouco mais na compra do
carro para economizar na recarga, realizada com o veículo plugado na tomada
durante a noite. Com o tempo, o investimento inicial se paga. A autonomia é
mais que suficiente para trajetos urbanos. Nas estradas, têm surgido mais
postos de recarregamento. Ainda não há rede nacional de abastecimento, mas é
questão de tempo. A manutenção tende a ser mais barata, pois elétricos têm
menos peças e mecânica mais simples. Além da vantagem de emitirem menos gases
poluentes, são mais potentes e mais silenciosos.
Por enquanto, a China tem dominado a produção e sido agressiva no marketing, com facilidades para a manutenção e na instalação de estações domésticas de recarga. Não é outro o motivo que levou o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, a declarar já no dia de sua posse que adotará tarifas e outras medidas para proteger a ultrapassada e combalida indústria automotiva americana. O protecionismo também move as montadoras brasileiras em gestões para assegurar subsídios e benefícios. Mas tudo isso só significará atraso. Ao final, prevalecerá a inexorável realidade econômica. Assim como o filme fotográfico, a máquina de escrever ou o mimeógrafo, o motor a combustão será relegado aos nichos de saudosistas e aos livros de História.
TSE acertou ao negar registro a candidato acusado de elos com crime
O Globo
Avanço de organizações criminosas sobre
instituições exige ação dos tribunais, mas é preciso comedimento
Com o avanço do crime organizado sobre as
instituições da República, as autoridades devem tomar medidas para protegê-las.
Foi, por isso, oportuna a decisão do Tribunal Superior Eleitoral (TSE)
no ano passado rejeitando o recurso do político Fabinho Varandão (MDB) contra
decisão do Tribunal Regional Eleitoral do Rio de Janeiro (TRE-RJ) que indeferiu
o registro de sua candidatura à Câmara de Vereadores do município de Belford
Roxo, na Baixada Fluminense. Mas é preciso ressaltar que se trata de caso
excepcional, pois Varandão ainda não foi condenado no processo em que é acusado
de fazer parte de uma milícia.
“Nunca fui julgado, não tem nenhuma
condenação. Quando chegar a Brasília (TSE), vai prevalecer a lei”, afirmou
Varandão. Contudo, dada a profusão de casos de milicianos que têm sido eleitos,
geralmente para a Câmara de Vereadores, passando depois a desfrutar todas as
proteções oferecidas pelo cargo, a Justiça Eleitoral decidiu em primeira
instância aplicar o princípio da precaução e barrar a candidatura.
A decisão foi sustentada pelo TSE,
fortalecendo a jurisprudência de que a Justiça Eleitoral pode agir diante de
evidências de que o candidato se tornará um ficha-suja, ainda que ele não
satisfaça aos critérios da Lei da Ficha Limpa. Formalmente, a lei exige, para a
rejeição do pedido de registro de candidatos, a condenação em segunda
instância. Embora obrigue a cassação nesses casos, ela não a proíbe noutros em
que, mesmo sem condenação, o histórico do candidato revela fatos incompatíveis
com o exercício da função pública. E o caso de Varandão é excepcional. De
acordo com magistrados fluminenses, seu prontuário levou à impugnação porque
não é possível “fechar os olhos para a realidade”.
De acordo com o Ministério Público, há
indícios de que Varandão explora a venda de sinal pirata de internet em bairros
de Belford Roxo. No TRE-RJ, a desembargadora Maria Helena Pinto Machado deixou
registrado que, “ainda que não haja decisão condenatória acerca das acusações,
a prática criminosa objeto da ação penal é, definitivamente, incompatível com a
moralidade requerida para o exercício do mandato eletivo para o qual pretende
concorrer, além de atentar contra a normalidade das eleições”. No TSE, prevaleceu
o voto do ministro Antônio Carlos Ferreira, relator do processo. Ferreira foi
bastante objetivo e factual em sua descrição de Varandão: “Ostenta contra si
diversos elementos denotativos de sua participação em milícia armada, na
prática de extorsões e no porte ilegal de armas, para manter o domínio de
atividades econômicas locais”.
Beneficiando-se da lentidão dos tribunais,
Varandão chegou a obter votos suficientes para se eleger, mas não pôde assumir.
O prefeito de Belford Roxo, Márcio Canella (União), nomeou-o então seu
secretário de Esportes e pôs noutra secretaria um condenado por integrar uma
milícia acusada de homicídios na Baixada. Como se vê, não bastará vetar
registros de candidatura para proteger as instituições do crime organizado.
Será preciso ir além.
Início frenético de Trump mostra força e
limites
Folha de S. Paulo
Mais inserido no establishment do que no
primeiro mandato, presidente já esbarra em restrições à sua agenda estrambótica
Os primeiros dias de declarações bombásticas
e copiosa edição de decretos pelo presidente Donald Trump deram
mostra do empoderamento do republicano, bem mais integrado ao establishment
partidário, empresarial e até cultural dos Estados
Unidos do que no primeiro mandato.
Já se entreveem, no entanto, limites práticos
para as suas ambições estrambóticas.
O sistema federativo e a divisão de Poderes
restringem o alcance da caneta presidencial. Ela tem muita efetividade na
alçada do Executivo federal, como nas questões de imigração, impostos sobre
importação e na própria regulamentação do funcionalismo desse nível de governo.
Mas ela pode muito pouco contra dispositivos
constitucionais, como o comando de que a quem nasce no solo dos EUA é garantida
a cidadania naquele país. Daí a presteza com que um juiz federal derrubou, em
caráter provisório, o
decreto trumpista que tentava subverter esse princípio. Outras ordens
presidenciais também enfrentarão contestações judiciais.
Voos mais altos dependem da votação de leis
no Congresso, onde Trump tem maioria. Nota-se, contudo, pela dificuldade no
Senado do nomeado da Casa Branca para o Departamento de Defesa, Pete Hegseth,
que ali haverá no mínimo protelação opositora.
A agenda econômica de Donald Trump,
contraditória em seus próprios termos, também começa a se chocar com as
restrições.
Diante de um banco central independente, só
lhe resta a parolagem. Como ocorreu com o homólogo brasileiro sob a saraivada
do presidente Luiz Inácio Lula da Silva
(PT), o Fed vai tomar
as decisões que tiver de tomar para evitar
o repique inflacionário a despeito das bravatas trumpistas.
A inflação,
aliás, é o vetor resultante de tudo o que Trump tem pregado. Se tomou cautela
com a ideia de elevar instantaneamente os impostos de importação, é porque teme
atiçar a espiral de preços para o consumidor de seu país. A carestia não foi
fator de somenos na derrota da candidatura democrata em novembro.
Daí a delicadeza prática no engajamento com
a China.
Elevação súbita de tarifas não teria como ser compensada automaticamente pela
alta da produção doméstica nos EUA, o que desencadearia subida de preços e
de juros no
território norte-americano.
A base que elegeu Trump, de trabalhadores
menos escolarizados e endinheirados, é altamente sensível a surtos
inflacionários e à desvalorização patrimonial.
Na inusitada congregação de magnatas que
desta vez manifesta apoio a Donald Trump, a união de propósitos não vai tão
longe. Basta que um tema concreto venha à tona —como a proposta de criar
uma megaempresa
de infraestrutura em inteligência artificial—
para provocar cizânia.
Se a metamorfose ambulante que tomou posse
nos EUA vai causar muita instabilidade, os resultados objetivos da sua passagem
pelo poder talvez sejam menos extravagantes. O tempo dirá.
Memórias da ditadura
Folha de S. Paulo
Registro em certidão dos mortos pelo regime
alerta para importância da preservação das instituições democráticas
No dia 20 de janeiro de 1971, Rubens Beyrodt
Paiva foi sequestrado em sua casa, preso, torturado e assassinado por agentes
do regime militar. O corpo do ex-deputado, cujo mandato havia sido cassado em
1964, nunca foi encontrado.
Após uma luta hercúlea por informações sobre
o marido, Eunice Paiva obteve, em 1996, uma certidão de óbito que registrava só
o desaparecimento.
Agora, o
poder público corrige esse erro. No documento passa constar que a morte de
Paiva foi "não natural; violenta; causada pelo Estado brasileiro no
contexto da perseguição sistemática à população identificada como dissidente
política do regime ditatorial instaurado em 1964".
Mesmo tardia, a retificação tem expressivo
papel simbólico. Foram muitos os desaparecidos pela brutalidade da ditadura
militar, e a ausência de um documento oficial que ateste não só o óbito
como as causas funestas apenas perpetua a dor de parentes.
A trágica história da família foi contada no
filme "Ainda
Estou Aqui", dirigido por Walter Salles.
A obra foi indicada ao prêmio Oscar nas
categorias de melhor
filme, melhor filme em língua estrangeira e melhor atriz para Fernanda
Torres, já vencedora do Globo de Ouro, que interpreta Eunice. A película se
baseia no livro homônimo do escritor Marcelo Rubens Paiva, filho do político
assassinado.
As outras famílias que viveram casos
semelhantes, embora menos conhecidos do grande público, poderão igualmente ter
as certidões de óbito de seus entes queridos retificadas.
Em dezembro, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) determinou que
os cartórios do país devem atualizar os documentos de centenas de mortos e
desparecidos durante a ditadura para constar que foram vítimas do regime. "É
um acerto de contas legítimo com o passado", afirmou o ministro Luís
Roberto Barroso, presidente do CNJ e do Supremo Tribunal Federal.
Os parentes, inclusive de Paiva, deverão
receber as novas certidões em sessões organizadas pela Comissão Especial sobre
Mortos e Desaparecidos Políticos e pelo Ministério de Direitos
Humanos.
Segundo levantamento realizado pelo Operador Nacional do Registro Civil de
Pessoas Naturais, há 202 casos de retificação de certidões e 232 novos
registros de óbito a serem produzidos.
Documentar os crimes da ditadura militar é uma reparação histórica que evidencia a importância da preservação das instituições democráticas. Em tempos de polarização política e populismos, tal alerta torna-se ainda mais necessário.
Uma Justiça triplamente injusta
O Estado de S. Paulo
Um Judiciário perdulário, lento e
privilegiado pesa sobre as contas públicas, prejudica o desenvolvimento e mina
a confiança da população no Estado Democrático de Direito
A correlação entre um Estado de Direito
vigoroso e o desenvolvimento econômico, social e cultural é intuitiva e bem
documentada. De um sistema de Justiça eficiente e equânime dependem a
produtividade e a estabilidade dos negócios, a proteção de direitos individuais
e a resolução de conflitos sociais. Mas a Justiça brasileira é lenta, cara e
privilegiada. Três levantamentos publicados desde dezembro oferecem uma biópsia
dessa Justiça triplamente injusta.
Segundo o Rule of Law Index (Índice
do Estado de Direito), do World Justice Project, que mede anualmente a
percepção da população e especialistas, o Brasil ocupa o 80.º lugar no ranking
entre 142 países – entre os 32 latino-americanos, está na 17.ª posição. Os
brasileiros acusam em seu sistema discriminação, influência do governo,
morosidade e baixa aplicação das decisões. A Justiça criminal é especialmente
mal avaliada. No quesito imparcialidade, é a segunda pior do mundo, só atrás da
Venezuela.
Um levantamento do Movimento Pessoas à Frente
sobre “supersalários” no funcionalismo federal registra que as despesas acima
do teto constitucional só do Judiciário e Ministério Público custaram R$ 11,1
bilhões em 2023. Mais de 90% dos magistrados e procuradores recebem acima do
teto. No Legislativo e Executivo esse índice não chega a 1%.
“O que a gente observa é o quanto essas
carreiras jurídicas criam uma realidade paralela”, disse à Folha de
S.Paulo a diretora da Plataforma Justa, Luciana Zaffalon. “Não importa o
cenário, crise, contexto, estão sempre ficando com uma fatia cada vez maior do
Orçamento público.” A análise é corroborada por um levantamento em 18 Estados.
Entre 2022 e 2023, os gastos com a Justiça em Mato Grosso, por exemplo,
aumentaram 36%, enquanto os gastos totais cresceram só 11%. Na Bahia, subiram
18%, ante alta de 8% nos gastos totais, e em Minas Gerais aumentaram 30%, ante
apenas 3% nos gastos totais.
Segundo o Tesouro, o Brasil tem o Judiciário
mais caro do mundo, consumindo 1,6% do PIB, enquanto a média dos emergentes é
de 0,5%, e a dos países desenvolvidos, 0,3%. Ainda assim, o presidente do
Supremo Tribunal Federal, Luís Roberto Barroso, diz que “o Judiciário não tem
participação nem responsabilidade sobre a crise fiscal” do País. À custa de
chantagens, representantes corporativos procuram barrar tentativas de limitar
os supersalários ou a discricionariedade da Justiça para criar novos benefícios.
Do ponto de vista moral, as manobras da casta
togada para acumular privilégios são o mais maligno dos tumores, mas do ponto
de vista fiscal são um fator menor, mais sintoma do que causa do problema.
Na comparação internacional, há uma
quantidade aberrante de servidores da Justiça para atender a uma litigiosidade
igualmente aberrante, especialmente nos campos trabalhista e tributário. Entre
as disfunções no ecossistema judicial que encarecem a Justiça estão demandas
repetitivas, excesso de instâncias recursais, decisões contraditórias,
desrespeito a precedentes ou baixa predisposição a mecanismos alternativos de
resolução, como arbitragem e mediação.
Já em 2018 um celebrado jurista alertava a um
congresso de advogados para a necessidade da responsabilidade fiscal – “gastar
prolongadamente mais do que se arrecada produz duas consequências: inflação e
juros” – e conclamava os juízes a mudar sua mentalidade para que a Justiça se
“desjudicializasse”. O “juiz típico (...) acha que o trabalho é produzir uma
sentença, quando o papel deveria ser evitar se chegar à sentença e acabar (o
processo) antes”, dizia. “(Há) um sistema processual, que, em toda parte, e inclusive
no Supremo, faz com que as pessoas tenham a cultura da procrastinação. Continuo
a incluir na agenda para o futuro mudanças relevantes ao sistema de Justiça.
Custamos caro e somos ineficientes.” O jurista autor dessas ponderações
corretas se chama Luís Roberto Barroso. Mas, ao que parece, a “agenda para o
futuro” não só foi procrastinada, mas subvertida.
“Justiça atrasada não é Justiça, senão
injustiça qualificada e manifesta”, dizia Ruy Barbosa. Cem anos depois, a
advertência não só é mais atual do que nunca, mas precisaria ser complementada.
Justiça perdulária não é Justiça. Justiça privilegiada é ainda menos.
A emergência permanente dos yanomamis
O Estado de S. Paulo
Dois anos após a decretação da emergência em
saúde pública na terra yanomami, a realidade indígena e a baixa transparência
nos dados sobre mortes desabonam o triunfalismo governista
No último dia 20 de janeiro, data em que se
completaram dois anos da decretação da emergência em saúde pública na terra
yanomami, o governo do presidente Lula da Silva não hesitou em divulgar mais um
de seus habituais balanços triunfalistas. “Ações federais garantem proteção,
cidadania e preservação na maior terra indígena do país”, informou uma notícia
publicada no site oficial do governo. “Operação Yanomami derruba garimpo, ergue
infraestrutura e salva vidas”, disse outra, divulgada minutos depois. A TV oficial,
por sua vez, preparou “reportagem”, em tom de resistência vitoriosa, sobre a
força-tarefa destinada a expulsar garimpeiros invasores e livrar os indígenas
dos crimes ambientais, da desnutrição, de doenças e mortes. Mais um pouco de
imodéstia governamental e o Brasil assistiria, espantado, que o maior e mais
populoso território indígena do País teria se livrado da profunda tragédia
humanitária que abateu as condições de vida dos yanomamis. Engano.
Apesar de alguns bons números divulgados pelo
governo, a prudência não só desabona a euforia, como a situação ainda parece
bastante grave. De fato, houve uma significativa redução nas áreas já
impactadas pelo garimpo (91%), redução relevante nas novas áreas de garimpo
(95%) e cálculo de um prejuízo imposto à rede criminosa do garimpo ilegal na
ordem de R$ 267 milhões, segundo os dados oficiais. Quase triplicou o número de
profissionais de saúde no território entre 2023 e 2024 (de 690 no início do
governo para 1.759 no fim do ano passado), novas unidades básicas de saúde
indígena foram construídas, aumentou-se a aplicação de doses de vacinas e a
realização de exames, além de um esforço por melhoria na nutrição e no combate
à malária. Há uma pletora de outros números difundidos pelo governo, entre os
quais mais de 3.500 operações de segurança e dezenas de quilos de ouro e
centenas de quilos de mercúrio confiscados ao longo do último ano.
Falta, porém, o mais relevante: números
completos de 2024 referentes aos registros de mortes de indígenas. Esse foi
justamente o calcanhar de aquiles do governo no balanço do primeiro ano das
ações de emergência. Recorde-se que, em 2023, houve 363 mortes, número
inaceitavelmente superior à quantidade de notificações de 2022, quando
oficialmente morreram 343 indígenas. O governo creditou o aumento à
subnotificação elevada na gestão anterior, de Jair Bolsonaro. Apesar da
justificativa, e diante da inevitável conclusão de fracasso das ações no
primeiro ano, o presidente Lula da Silva fez o que mais se espera do
lulopetismo: recorreu ao palanque. Apontou culpados externos do passado, enviou
equipe de ministros ao local, apresentou denúncias como se estivesse não no
marco de um ano, mas iniciando a tarefa e fez promessas de redenção para o
futuro próximo. Agora, no marco dos dois anos, o governo parece relutante em
consolidar os números de 2024. O que se sabe, por ora, é que o número de mortes
no território yanomami caiu 27% no primeiro semestre de 2024 ante o mesmo
período de 2023. A queda foi maior nos óbitos por desnutrição e por infecção
respiratória. Nas mortes por malária, a queda, em termos porcentuais, foi bem
mais modesta.
Há perguntas inquietantes à espera de
respostas mais firmes: quanto tempo há de durar uma emergência de saúde pública
como a do povo yanomami? Por que as medidas adotadas até aqui, embora tenham
aplacado a agonia a que os indígenas estão submetidos, parecem ainda longe de
resolver o problema? É aceitável o número de mortes e adoecimentos depois de
dois anos de ações supostamente intensas e organizadas, com diversos
ministérios e órgãos públicos mobilizados? A retomada do controle da terra,
reduzindo, por exemplo, os garimpos consolidados na região, é consistente o
suficiente ou apenas um alívio temporário enquanto a força-tarefa está no
local? Poderia haver balanço melhor do que o apresentado no aniversário da
decretação da emergência? Pela baixíssima transparência nos dados, pela
longevidade da emergência e pela sensação de que o garimpo ilegal pode voltar a
dominar o território tão logo se encerre a força-tarefa, pode-se concluir:
ainda há um enorme abismo separando o triunfalismo do governo e a realidade yanomami.
Elogio à truculência
O Estado de S. Paulo
Nunes ri enquanto novos guardas municipais
cantam música que incentiva a brutalidade policial
O prefeito de São Paulo, Ricardo Nunes,
dançou, bateu palma e riu enquanto guardas-civis metropolitanos (GCMs) cantavam
na terça-feira passada. Parte da celebração da formatura de 500 novos agentes,
a cena tinha tudo para passar despercebida não fosse o teor do canto entoado
pela tropa, com destaque para o verso “gás de pimenta na cara dos vagabundos”.
O vice-prefeito Ricardo de Mello Araújo,
coronel da reserva da Polícia Militar, e o secretário municipal de Segurança
Urbana, Orlando Morando, estavam ao lado de Nunes, que parece não ter visto
nada de mais no episódio. Em entrevista à TV Globo, ele minimizou o caso e
disse que foi cumprimentar os novos GCMs “como sempre” fez, e eles “estavam
cantando”.
Como se viu, começaram mal esses novos GCMs,
haja vista que deveriam ser preparados, conforme prevê a Constituição, para
proteger bens, serviços e instalações do município, e não para lançar “gás de
pimenta na cara dos vagabundos”. Em um processo sério de formação, não caberia
nem uma anedota.
Ademais, Nunes, como autoridade máxima
naquela cerimônia, tinha o dever de ter se incomodado com o cântico. Afinal, no
Estado Democrático de Direito, mesmo os “vagabundos” têm direitos, a começar
pelo direito à dignidade da pessoa humana.
Mas vivemos tempos estranhos, em que a
truculência policial não só é tratada como aceitável por algumas autoridades,
como, em certos casos, parece ter se tornado até mesmo uma exigência para os
novos recrutas das forças de segurança.
Na formatura dos guardas-civis
metropolitanos, o secretário de Segurança Urbana, Orlando Morando, disse em seu
discurso que é preferível “que chore a mãe do criminoso e nenhum parente de
vocês”, numa indisfarçável apologia à violência policial. Nas redes sociais,
Morando explicou ainda que “quem deve ser protegido em um confronto é o GCM e o
cidadão de bem, e não o bandido”.
Há poucos dias, Morando disse a este jornal
que é contrário à adoção, pela Guarda Civil, das câmeras corporais, já que os
guardas-civis “não são reconhecidos como polícia, são uma guarda, e a essência
principal é patrimonial”. Exato. No entanto, se há a perspectiva de confronto
com bandidos, como salientou o secretário na formatura dos guardas-civis,
emulando o discurso que normaliza a morte de suspeitos, então, na prática, os
guardas-civis esperam atuar como policiais.
Está tudo fora de lugar. A segurança pública,
que se traduz em poder de polícia, é atribuição dos Estados, e não dos
municípios. Os guardas-civis nem têm treinamento adequado para situações de
confronto como as descritas por Morando.
Aos poucos, contudo, essas barreiras institucionais foram sendo ignoradas, e hoje, em diversas cidades, a Guarda Civil tem armas e se dispõe a usá-las como se polícia fosse. Nesse processo de metamorfose da Guarda Civil, seus recrutas parecem ter absorvido o que há de pior na doutrina da truculência policial – como se depreende da ameaça, cantada em forma de verso, contra os “vagabundos”.
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