O Estado de S. Paulo
A atual crise múltipla requer bem mais do que vitórias eleitorais, ainda que imprescindíveis. Trata-se de reorientar valores e comportamentos
Quando a palavra “fascismo” escapa ao
vocabulário militante e encontra guarida entre especialistas, é porque nos
encontramos numa época repleta de graves ameaças e possibilidades de involução.
Não por acaso, então, começa-se a falar de aliança entre forças rivais, que
concordam em suspender provisoriamente suas diferenças diante do que veem como
perigo maior. Nos anos 1930, correntes significativas – socialistas,
comunistas, liberais, conservadores – aos poucos teceram uma complexa ação
unitária para fazer face ao fascismo em marcha aparentemente irresistível.
Nasceram assim as frentes populares, cujo eco ainda reverbera e mobiliza corações e mentes, sem necessariamente ter o ar de coisa antiga. O nouveau front populaire, por exemplo, é um fato da política francesa atual, cujo sentido maior, em tese, só pode ser o de ajudar a estabelecer o cordão sanitário em torno da extrema direita em curso de “normalização” – e se não o fizer, terá contribuído para agravar o drama em curso. Bem antes, na Espanha ou na Itália, e até no Brasil, frentes antifascistas se estabeleceram com resultados muito diferentes. Entre nós, uma promissora “aliança nacional libertadora”, orientada inicialmente para a política de massas, cedeu ao vezo insurrecional, levando ao desastre de 1935 e abrindo espaço para o Estado Novo varguista.
Esse tipo de questão, por envolver um ponto
clássico da política, está fadado a se repetir. Instaurado em 1964 o “Estado
Novo da UDN” – por certo, mais do que uma tirada espirituosa de Tancredo Neves
–, as forças de esquerda dividiram-se profundamente sobre o caminho a tomar. Os
velhos comunistas, escaldados com o episódio de 1935 e reciclados com a ideia
da via pacífica ao socialismo, retomaram a inspiração da frente, chamando-a
agora de “democrática”. Para eles, tratava-se de atuar em estreita aliança com
o centro liberal e também com setores moderados da direita, como forma de
isolar e, num prazo mais longo, derrotar o regime ditatorial. Nada de dissolver
a oposição legal ou de renunciar às urnas, que, estas sim, mais cedo ou mais
tarde retirariam a legitimidade do regime.
Os adeptos de uma “frente de esquerda”
entendiam-na de diferentes maneiras, mas, fossem quais fossem suas escolhas, em
geral reuniram-se em torno da luta armada para derrubar o regime e instaurar,
quem sabe, o socialismo. Era tempo de fascínio com a Revolução Cubana ou com a
Chinesa, diante de cuja radicalidade empalidecia a mera luta por uma
“democracia burguesa”. Cheia de ironia, como sempre, a História daria plena
razão aos velhos comunistas e, num mesmo gesto, lhes decretaria a morte
inapelável, ligados umbilicalmente como estavam ao mundo que desabou em 1989.
Os partidários da outra esquerda aos poucos confluíram majoritariamente para um
novo agrupamento, ao lado de sindicalistas da indústria moderna e de correntes
católicas progressistas. Constituiriam, como se sabe, o principal partido do
regime nascido com a Constituição de 1988, vitorioso em cinco de nove eleições
presidenciais.
Luiz Werneck Vianna terá sido o mais tenaz
defensor daquele primeiro tipo de frente – a democrática –, não praticada pelo
PT na transição. Ninguém mais adequado para entender a vitória de Lula da Silva
em 2002 como momento de conciliação entre esquerda e instituições,
reivindicações sociais e política democrática. Afinal, era possível chegar ao
Executivo sem ruptura revolucionária, o que necessariamente implica a prática
regular de negociações e alianças. E pode-se afirmar que, por todos estes
longos anos, um dos núcleos do debate de ideias tem girado sobre a
transformação do PT, havida ou não havida, em instrumento de ação
programaticamente reformista, distante, inclusive retoricamente, das
proposições autoritárias de parte expressiva da esquerda latinoamericana.
Duvidoso descartar a política de frente no
cenário que se avizinha, especialmente depois da afirmação de forças da extrema
direita no Brasil e em democracias mais consolidadas. E isso num contexto em
que, como no poema de William Butler Yeats tão citado, tudo desmorona e o
centro, entendido como princípio de ordenamento, não mais se sustenta. Esse é
um quadro em que o subversivismo da extrema direita não só canaliza
ressentimentos, como também sinaliza o futuro para extensas massas de
indivíduos, agora desgarrados das antigas classes e suas formas estabelecidas
de vida e solidariedade. Como resultado, a anarquia se alastra e impõem-se
modalidades extremas de antipolítica, a exemplo da polarização destrutiva
importada das redes sociais.
A estratégia de frente não pode se deter na política dos políticos e dos partidos, até porque a atual crise múltipla requer bem mais do que vitórias eleitorais, ainda que imprescindíveis. Trata-se de reorientar valores e comportamentos num sentido inverso ao daquele obsessivamente proposto pelas “guerras de cultura” da direita incivilizada, a fim de restabelecer as condições do diálogo razoável na sociedade e nas instituições. Uma esquerda presa só às suas razões nem sequer entenderá a natureza do desafio.
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