O Globo
Trump deu 60 dias para a entidade que gerencia os prédios do governo alinhar a
arquitetura oficial aos princípios ‘clássicos’
O
último ato do bota-fora de um ocupante da Casa Branca costuma se dar no Salão
Oval da Presidência. Ele precisa ser rápido, bem ensaiado e cronometrado. Não
foi diferente na segunda-feira 20 de janeiro de 2025, dia da posse de Donald
Trump. Faltando menos de duas horas para o juramento do novo mandatário no
Capitólio, com Joe Biden ainda
perambulando pela residência, o troca-troca de móveis, tapetes, porta-retratos
e adereços seguiu marcha célere. Foi dali, sentado na maciça Resolute Desk,
presente da Rainha Vitória, que Trump daria sequência, naquela noite, à
cinematográfica assinatura de seus quase cem decretos iniciais.
Um ensaio fotográfico divulgado horas depois da posse pelo Wall Street Journal revelou as mudanças mais óbvias. De volta ao Salão Oval estão algumas das peças defenestradas por Biden quando sucedeu a Trump quatro anos atrás. Entre elas, as três imensas bandeiras das armas militares, um lugar de honra para seu ídolo Andrew Jackson (o sétimo presidente americano, que dizia “Nasci para a tempestade, a calmaria não me cai bem”), a popular escultura de bronze de um caubói domando sua montaria, “Bronco Buster”, de Frederic Remington. De serventia mais imediata, foi ressuscitada também a famosa caixa de madeira com campainha, que Trump aciona quando quer mais uma Diet Coke. Saíram de cena o gigantesco retrato do democrata Franklin D. Roosevelt e o busto do líder trabalhista chicano César Chávez.
Nenhum
descarte ou inclusão é desprovido de significado político, sabemos. Nada é
trivial. Desde que existe — como cenário de pronunciamentos à nação e para a
recepção formal de lideranças mundiais —, o Salão Oval da Casa Branca sempre
teve como função espelhar tanto a grandeza da Presidência como a alma e o gosto
de seu ocupante. As duas coisas acabam se enfronhando na consciência cultural
da nação.
A
escolha da foto oficial do 47º presidente americano, monitorada nos mínimos
detalhes pelo próprio Trump, também se infiltrará na consciência visual do
país. Ao contrário de seus antecessores, o Trump de 2025 tem na expressão uma
intensidade estranhamente agressiva, feita para causar incômodo. Não há
vestígio de transparência, afabilidade ou esboço de sorriso. “Cuidadosamente
coreografada”, escreveu o historiador e crítico de arte Kelly Grovier para
a BBC. “Cada
aspecto está calibrado para um impacto máximo, desde a luz quase metálica e
crepuscular que ilumina o rosto de Trump, de baixo, até seu olhar severo e
assimétrico.” Grovier diz ser necessário vasculhar na História da Arte para
encontrar paralelo convincente à postura aguerrida no olhar de Trump. Sua
intencionalidade é triunfante. O crítico só encontrou semelhança num
autorretrato do artista barroco Salvator Rosa, que integra o acervo da National
Gallery de Londres.
Foi
no apagar de seu primeiro mandato, em dezembro de 2020, no meio da pandemia que
causou mais de 1 milhão de mortos nos Estados Unidos,
que Trump emitiu um decreto sobre... arte e arquitetura. O documento
determinava que a edificação de qualquer prédio novo do governo federal deveria
seguir “o estilo clássico“ da “arquitetura tradicional”. E elogiava as
edificações da Grécia e de Roma na Antiguidade, por “duradouras” e “úteis”.
Condenava em particular a arquitetura brutalista e desconstrutivista então em
moda, que a seu ver ofendia a “representação dos ideais americanos”.
Seguiu-se
uma gritaria de várias correntes artísticas contra a apropriação nostálgica
desse estilo arquitetônico, por meio da ficcionalização de suas raízes
nacionais. Como apontou uma associação de arquitetos à época, o neoclassicismo
nos Estados Unidos está diretamente ligado à edificação da branquitude. Com a
justificativa de emular a cultura grega, muitos donos de plantações sulistas
construíam suas mansões em busca de branquitude, de forma a realçar sua
superioridade moral.
Enterrado
por Joe Biden em 2021, o malfadado decreto retornou com força logo na primeira
leva assinada por Trump nesta semana. Em memorando dirigido ao Administrador
dos Serviços Gerais, com o título de “Promover a bela arquitetura cívica
federal”, Trump dá 60 dias para a entidade que gerencia os prédios do governo
alinhar a arquitetura oficial aos princípios “clássicos”.
O
conceito do que é “belo” ou “clássico” para Trump é elástico. Vale lembrar que
a polêmica construção do arranha-céu de 58 andares da Quinta Avenida, em Nova York, com
seu grandioso átrio e imponente queda-d’água, exigiu a demolição do histórico
prédio art déco que abrigava a loja de departamentos Bonwitt Teller. À época,
Trump concordou em doar duas frisas da fachada original ao Metropolitan Museum,
mas desistiu diante do custo.
—
Mandei meus caras arrancarem tudo — contou, orgulhoso, no livro “A arte da
negociação”.
“O
intelecto arruína o cérebro”, garantia Joseph Goebbels às massas na Alemanha de
1935. Ciência pura, dissenso, intelecto, arte, humor, diversidade cultural têm
pouca utilidade para o projeto Maga de Trump. É bom ter medo de sua “arte
cívica”.
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