Folha de S. Paulo
Mediado por cultos, o deslocamento dessa
afecção patológica para o campo político alojou-se na extrema direita
Passou sem comentários o diagnóstico de
histeria, por um ministro do STF, sobre os atos extremistas que culminaram
no ataque golpista do 8/1. Referia-se não só às depredações,
mas ao desconexo comportamento de massa que oscilava entre orações a pneus de
caminhão, marchas patéticas e fragmentos verbais sem contexto.
É provável que a desatenção se deva ao juízo estranho a padrões jurídicos.
Magistrados não trafegam na via psiquiátrica. Fato, porém, é que o conceito de
histeria perdeu exclusividade freudiana, emigrando para reapropriações no campo
socioestético, designáveis como "histeresia". Em "Histeria na
Mídia", Raquel Paiva aplica com propriedade essa ideia ao discurso
compulsivo e redundante da mídia. Uma visão próxima à análise existencial que
demonstra o caráter secundário e inautêntico do falatório (Heidegger).
Histeria é doença da representação, afetada pela repressão sexual.
Teatro pervertido das proibições introjetadas, o corpo é compelido a exibir-se por fala e atuações. Em formas convulsivas se registram possessões ditas "demoníacas". Há relatos de letramentos obscenos esculpidos por sintomas na pele de internas em conventos europeus. Matéria-prima para bispos e Hollywood.
Aí se inscrevem fenômenos coletivos com
eloquência histérica. Nos cultos sectaristas se diz falar com Deus, supostos
aleijados passam a andar, e tatibitate extravagante vira língua do Santo
Espírito. Nada estranho, aliás, à crônica social do próprio STF:
um dos pares, na celebração televisada de sua aprovação pelo Senado,
acalmou com mão de conhecedor a primeira-dama da época em lenga-lenga maníaca
aos pinotes.
Supunha-se que a morfologia da histeria,
típica da velha sociedade disciplinar, tivesse dado lugar à depressão, que é
sem caráter e sem forma saliente. Daí o interesse da perspectiva de Paiva, que
introduz a mídia como sujeito-agente do retorno histérico, agora exponenciado
pelas redes sociais, vetores da promiscuidade do tudo-dizer como forma ilusória
de tudo-poder. O estresse corrosivo do caráter produz subjetividades dóceis,
sabor-mercado.
Mediado por redes e cultos, o deslocamento
dessa afecção patológica para o campo político alojou-se no extremismo de
direita, berço para a aberração, pela natureza exasperada, das normas.
Mas bolsonarismo não é ideologia, e sim doença sazonal,
flatulência para extravasamento do ódio à escolarização. Um espasmo grotesco,
desde a quebra de boas maneiras até comportamentos histéricos, como a exibição
fálica de armas. Icônica é a cena da parlamentar de braços estendidos e pistola
nas mãos perseguindo um homem negro. A troca de escolas por redes, agentes do
contágio, é a via ressentida dos sintomas.
Fenômeno transnacional. A América é um mega reality show que elege presidentes. Após um depressivo, uma
besta apocalíptica: Trump,
autocoroado imperador de Marte, com seu caldeirão de maldades, estimulando
malfeitores e ameaçando indefesos. Saudação nazista de Musk e
muita farofa intimidatória.
Já o devoto Milei,
um possesso na campanha, é hoje frio neoliberal no poder, atento a "his
master’s voice", a voz do dono, não mais aboiando gado. Entre nós, quem
mugiu de boi zebu agora chora como bezerro desmamado. Vacina para histeria não
há, mas a democracia tem suas astúcias.
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