Valor Econômico
Entrelaçamento entre big techs e golpismo dará vida própria ao embate tupiniquim, o que não significa que seja mais fácil divisar o rumo que virá a tomar
Na sexta, 21, a Casa Branca soltou um
memorando determinando a adoção de tarifas e sanções contra governos cuja
estrutura regulatória imponha penalidades “discriminatórias e desproporcionais”
a empresas americanas de tecnologia. O memorando tem como pressuposto a
geração, pelos EUA, de um PIB digital maior do que toda a economia de quase
todos os países do mundo. E considera que esta riqueza não é devidamente
apropriada pelos americanos porque governos estrangeiros exercem autoridade
“extraterritorial” indevida sobre essas empresas.
O memorando dá seguimento às ameaças feitas pelo vice-presidente J.D.Vance em dois discursos na Europa, o da Cúpula de Ação sobre a Inteligência Artificial (Paris) e o da Conferência de Segurança (Munique). Em ambos, fez dura condenação à Europa pela afronta da vanguarda regulatória à “liberdade de expressão”.
Ainda que mobilize a pátria das big techs e o
continente mais avançado na regulação digital, o embate não passou despercebido
no Brasil. Naquela mesma sexta, o ministro do Supremo Tribunal Federal,
Alexandre de Moraes, suspendeu as atividades da Rumble no país por
descumprimento de decisão judicial que determinava a indicação de um
representante judicial da empresa.
A Rumble, rede social focada em vídeos, em
parceria com o grupo de comunicação do presidente americano Donald Trump, é
responsável por uma ação na justiça da Flórida que acusa Moraes de censura por
pedir bloqueio de contas bolsonaristas na rede social. Neste domingo, as duas
empresas entraram com um pedido de liminar contra as decisões do ministro. Como
até a Starlink de Elon Musk cumpriu a retirada do ar da plataforma, o efeito
parece ser inócuo não fosse Trump acionista de uma das empresas que movem a ação.
Ainda que o Brasil não seja o mercado-alvo
dessa disputa, não são poucos os sinais da rebarba dessa guerra sobre o país.
Trump mal havia tomado posse quando os efeitos da aliança entre o governo
americano e as big techs se fizeram sentir por aqui. No dia 22 de janeiro, a
Advocacia-Geral da União fez uma audiência pública sobre as redes sociais para
embasar um relatório a ser considerado no julgamento sobre a
constitucionalidade do artigo 19 do Marco Civil da Internet, aquele que
lastreia a responsabilização de provedores por danos causados a terceiros na
divulgação de conteúdo.
Convidadas, Meta, Google e até a TikTok, que é chinesa, decidiram não comparecer. Foi um comportamento completamente diferente daquele que, um ano antes, essas plataformas tiveram quando o Tribunal Superior Eleitoral promoveu audiências para discutir minutas das resoluções para as eleições municipais de 2024 e as convidou. Fabiano Garrido, do Democracia em Xeque, que participou das audiências, não tem dúvida em afirmar que a disposição em colaborar das big techs não teria sido a mesma se Trump já estivesse no poder.
Isso demonstra o que se pode esperar para as
eleições de 2026. Em decorrência daquelas audiências públicas, o TSE impôs uma
série de obrigações às “big techs”, como a adoção de medidas para impedir ou
diminuir a circulação de mentiras. A resolução, além de preencher o vácuo de
uma regulação, represada pelo Congresso, responsabiliza o descumprimento, indo
além do artigo 19, que subordina as providências a ordem judicial.
O Brasil não é o epicentro da guerra movida
pela desregulação do mercado digital, mas o embate tende a aguçar o ímpeto do
STF, da Anatel e do próprio governo. Basta ver o tom do ministro Alexandre de
Moraes, nesta segunda, durante a aula magna proferida na Faculdade de Direito
do Largo de São Francisco, da USP.
Traçou um atalho entre o poder sem fronteira
das “big techs” e o “tio do churrasco”, vítima da “lavagem cerebral” do
“populismo digital” ao propagar uma visão de mundo ressentida e preconceituosa
que tem como motor a concentração de renda e a ampliação de direitos de pobres,
mulheres e pessoas LGBTQIAP+.
Se alguém tinha dúvida de que o embate com as
redes, seja por meio do cabo de guerra entre Moraes e as plataformas, seja por
meio do julgamento do artigo 19 do Marco Civil, e o processo do golpismo vão se
retroalimentar, o discurso do ministro esclarece para todos os fins que é tudo
junto e misturado.
Com isso, Moraes também arrasta o Executivo
para o rolo. E não apenas um governo, assim como também não há um único Supremo
na votação do artigo 19. Tem o Itamaraty, que tem colocado panos quentes na
guerra tarifária, tem o Ministério da Fazenda, que quer focar na garantia de
concorrência do mercado digital, e ainda, a queda de braço entre a Pasta da
Justiça e o Congresso sobre a regulação de conteúdo das redes.
No meio disso tudo, ainda tem a Secretaria de
Relações Institucionais, que cogita apoiar o projeto da dupla Silas Câmara
(Republicanos-AM) e Dani Cunha (União-RJ), filha do ex-presidente da Câmara,
Eduardo Cunha, para, nos termos usados no Palácio do Planalto, desobstruir o
debate. O projeto dá poder à Anatel, controlada pelo Congresso, na regulação,
contrariamente a uma agência específica para o setor defendida por quem é do
ramo.
Por mais que a Europa, acossada pela aliança EUA-Rússia, puxe o freio de mão no sua regulação para o mercado digital, o entrelaçamento com o golpismo dará vida própria ao embate tupiniquim. O que não significa que seja mais fácil divisar o rumo que virá a tomar.
Nenhum comentário:
Postar um comentário