Folha de S. Paulo
Pontífice é um contraponto cristão àqueles
que dizem defender a 'civilização cristã'
É questão tempo até que o AfD vença
na Alemanha e o RN
na França? Espero que não. Espero que o mundo democrático adquira os
anticorpos para o nacionalismo e a xenofobia e sei que isso só será possível se
líderes com valores e ideias melhores conseguirem persuadir a população. Uma
dessas lideranças, hoje, é o papa
Francisco, cujo estado
de saúde delicado tem ocupado o noticiário.
Francisco cumpre um papel importante no debate público: num mundo no qual a direita nacionalista cresce a passos largos, ele é um contraponto espiritual que propõe valores cristãos contra uma ideologia que se vende como defensora da "civilização cristã".
Contra a lei do mais forte, Francisco traz a
injunção a ajudar os vulneráveis. Enquanto o refugiado é escorraçado por todos
os lados, Francisco vem em sua defesa, nisso ecoando a postura da igreja desde
pelo menos Pio 12.
No início deste mês, chegou a se engajar
diretamente com o vice-presidente americano J.
D. Vance,
que é católico.
Vance defendera a política americana de "America First" com base no
conceito da "ordo amoris". A ideia vem de Agostinho. Devemos amar a
todos; mas, se não podemos fazer o bem a todo mundo o tempo todo, a quem
priorizar? Como ordenar o amor universal? Uma regra para isso é priorizar quem
tem vínculos conosco (nosso vizinho antes de um desconhecido) e só
progressivamente olhar para quem está mais distante. Portanto, em vez de fazer
o bem a imigrantes,
diz Vance, devemos priorizar os cidadãos americanos.
O conceito de Vance omite que o próprio
Agostinho também citava a magnitude da necessidade alheia como um critério para
priorizá-la ou não. Talvez sem saber, ele se aproxima mais do estoicismo do que
do Padre da Igreja. Ainda assim, a posição dele ecoa um lugar-comum de círculos
conservadores atuais.
É possível criticar a visão de Vance sob uma
perspectiva liberal: o bem de imigrantes não é contraditório com o bem dos
cidadãos. Os atritos da imigração são superáveis tendo em vista que todos
ganham no longo prazo. Francisco, contudo, em uma carta aos bispos americanos
em 10 de fevereiro, a criticou de uma perspectiva cristã: a "ordo
amoris" de Vance não bate com as palavras de Jesus no Evangelho. "A
verdadeira ‘ordo amoris’ que deve ser promovida é aquela que descobrimos
meditando constantemente na parábola do ‘Bom Samaritano’, ou seja, meditando no
amor que constrói uma fraternidade aberta a todos, sem exceção."
Não foi a primeira vez que um papa se
posiciona contra o nacionalismo. O papa Pio 11, em 1937, publicou a primeira
encíclica em alemão —"Mit Brennender Sorge", com milhares de cópias
distribuídas clandestinamente a igrejas alemãs— para alertar os fiéis dos males
do nacionalismo, do racismo e da idolatria ao líder político que então tomava
conta do país.
A Igreja Católica foi, afinal, a primeira
instituição globalista: subordinou todas as nações que emergiram das ruínas do
Império Romano ocidental a uma mesma autoridade e a um mesmo código de valores.
Raça, nacionalidade, soberano; tudo isso vinha muito abaixo da fé universal, da
razão natural e da primazia do papa. Com uma inflexão à esquerda na política,
Francisco atualiza essa postura num mundo em que o nacionalismo pagão —o apego
à cidade deste mundo, e não à cidade Deus, diria Agostinho— reveste-se da tradição
cristã. Mesmo um agnóstico como eu pode reconhecer seu valor.
Nenhum comentário:
Postar um comentário