Valor Econômico
Brasil deveria ter um plano de médio e longo prazo para estabilizar a dívida
Ao ler coluna publicada neste espaço 15 dias
atrás, um leitor enfurecido a considerou “um louvor à política
desenvolvimentista irresponsável do lulopetismo”. Razão aparente do furor: a
afirmação de que a austeridade fiscal é importante, mas não pode ser remédio
para todos os males.
Foi a única manifestação desse tipo entre
outras civilizadas e favoráveis.
Há espaço para uma discussão mais séria dessa questão. O professor Luiz Gonzaga Belluzzo, em entrevista à TV Brasil, observou que ocorre no mundo inteiro, não apenas no Brasil, o domínio dos mercados financeiros e de suas visões sobre como deve ser a política econômica. E o refrão dessas forças dominantes é “risco fiscal”, em outras palavras, o risco de se gastar mais do que se arrecada.
A palavra de ordem, no Brasil, é que a
“gastança” pode levar o país à inadimplência da dívida pública, algo
sabidamente improvável. Esse entendimento, porém, é absorvido pelo cidadão
comum como verdade absoluta porque nasce da compreensão que ele tem sobre as
finanças de sua própria casa. O cidadão pensa: se eu gastar mais do que ganho,
vou me endividar, ficar inadimplente e quebrar. E esse raciocínio vale também
para o país.
“Só que não”, diz Belluzzo. A dívida pública
brasileira é em reais. E não há um único caso na história de quebra de dívida
pública em moeda local. O Tesouro emite e os bancos centrais têm facilidade de
comprar e vender títulos públicos para regular as taxas de juros e não permitir
que haja descasamento nas operações. Para isso, o Estado capitalista criou
instituições adequadas: os bancos centrais e os tesouros nacionais. Os balanços
dos bancos têm hoje participação enorme dos títulos públicos, que constituem a
riqueza financeira do capitalismo. Não existe estrutura financeira ou mercado
financeiro sem a presença de título público, porque ele é o ativo de última
instância, com segurança e liquidez.
O entendimento imposto ao cidadão comum,
portanto, é primário e incorreto, mas se propaga porque existe, segundo
Belluzzo, uma parolagem sobre risco fiscal reproduzida em jornais, redes
sociais e até em editoriais da grande mídia.
Entendido, países não quebram por dívida em
moeda local. Mas essa dívida não pode aumentar descontroladamente, porque é um
indicador da saúde fiscal de um país. Isso é verdade, mas é sabido que o Brasil
está longe de ser um dos países mais endividados do mundo quando se considera a
relação dívida/PIB, atualmente em 76%. Alguns exemplos: 260% no Japão, 137% na
Itália, 122% nos Estados Unidos, 110% na França.
“Esse número não significa nada”, disse
ao Valor a
conceituada economista italiana Mariana Mazzucato, professora da University
College London. Segundo ela, o maior problema do Brasil é o baixo investimento
em pesquisa e desenvolvimento. “Parem de observar a dívida pública. Perguntem
como fazer uma política mais inteligente de investimentos públicos”, disse ao
repórter Estevão Taiar.
Em robusto artigo no Valor de quarta-feira
(19), quatro professores da FEA-USP (Luque, Silber, Luna e Zagha) também
contrariaram a ideia difusa de que o aumento da dívida advém do descontrole do
gasto público. Observaram que 80% da dívida pública de hoje decorre da
acumulação de juros pagos pelo governo, e só 20%, da acumulação de déficits
primários. E isso se deve à manutenção de juros reais mais altos do que o
crescimento do PIB nos últimos 25 anos no país, que reduziu a taxa média de
investimentos para 17%.
A proposta dos quatro professores endossa a
de Olivier Blanchard, ex-economista-chefe do FMI, de que importante não é
reduzir a dívida, mas garantir sua sustentabilidade. O que significa que o
Brasil deveria ter um plano de médio e longo prazo para estabilizar a dívida.
Seria errado tentar reduzi-la ou mesmo estabilizá-la a curto prazo, porque isso
teria forte impacto negativo no emprego e na renda. Aliás, o déficit da
Previdência, bicho-papão do gasto público no país, está estabilizado e até
apresenta ligeira queda como porcentagem do PIB nos últimos quatro anos, como
mostrou a ontem o Valor.
Belluzo lembra também que o economista
francês Willem Hendrik Buiter sugeriu recentemente, em livro, ser preciso levar
em conta, no cálculo das dívidas, os ativos do Estado. O Brasil, por exemplo,
tem reservas em moeda forte de US$ 350 bilhões. Ativos como Petrobras e outras
empresas estatais também poderiam ser considerados ao se calcular o nível real
da dívida.
A parolagem do mercado sobre a dívida pública
é prejudicial ao país. Mas quem se beneficia desse discurso sobre gastança e
risco fiscal? Seria o próprio mercado financeiro? Belluzzo acha que não, porque
isso acaba impondo um conjunto de restrições à ação do Estado prejudiciais a
toda a economia. O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, por exemplo, está
tendo que fazer uma verdadeira ginástica para ao mesmo tempo aumentar a receita
e cortar gastos. E o resultado é até bom, tendo em vista o crescimento de quase
4% da economia em 2024.
Obviamente, deve-se batalhar pela eficiência do gasto fiscal, que é baixa no Brasil, mas convém ter um pouco mais de calma. O discurso contínuo e radical que espalha a ideia de gastança e rombo leva à formação de “consensos” que denotam primarismo, embora tenham muita importância nas decisões do Estado e do próprio setor privado. Keynes chamava-os de “convenções”.
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