terça-feira, 25 de fevereiro de 2025

Gastança e rombo fiscal: calma, gente, calma! - Pedro Cafardo

Valor Econômico

Brasil deveria ter um plano de médio e longo prazo para estabilizar a dívida

Ao ler coluna publicada neste espaço 15 dias atrás, um leitor enfurecido a considerou “um louvor à política desenvolvimentista irresponsável do lulopetismo”. Razão aparente do furor: a afirmação de que a austeridade fiscal é importante, mas não pode ser remédio para todos os males.

Foi a única manifestação desse tipo entre outras civilizadas e favoráveis.

Há espaço para uma discussão mais séria dessa questão. O professor Luiz Gonzaga Belluzzo, em entrevista à TV Brasil, observou que ocorre no mundo inteiro, não apenas no Brasil, o domínio dos mercados financeiros e de suas visões sobre como deve ser a política econômica. E o refrão dessas forças dominantes é “risco fiscal”, em outras palavras, o risco de se gastar mais do que se arrecada.

A palavra de ordem, no Brasil, é que a “gastança” pode levar o país à inadimplência da dívida pública, algo sabidamente improvável. Esse entendimento, porém, é absorvido pelo cidadão comum como verdade absoluta porque nasce da compreensão que ele tem sobre as finanças de sua própria casa. O cidadão pensa: se eu gastar mais do que ganho, vou me endividar, ficar inadimplente e quebrar. E esse raciocínio vale também para o país.

“Só que não”, diz Belluzzo. A dívida pública brasileira é em reais. E não há um único caso na história de quebra de dívida pública em moeda local. O Tesouro emite e os bancos centrais têm facilidade de comprar e vender títulos públicos para regular as taxas de juros e não permitir que haja descasamento nas operações. Para isso, o Estado capitalista criou instituições adequadas: os bancos centrais e os tesouros nacionais. Os balanços dos bancos têm hoje participação enorme dos títulos públicos, que constituem a riqueza financeira do capitalismo. Não existe estrutura financeira ou mercado financeiro sem a presença de título público, porque ele é o ativo de última instância, com segurança e liquidez.

O entendimento imposto ao cidadão comum, portanto, é primário e incorreto, mas se propaga porque existe, segundo Belluzzo, uma parolagem sobre risco fiscal reproduzida em jornais, redes sociais e até em editoriais da grande mídia.

Entendido, países não quebram por dívida em moeda local. Mas essa dívida não pode aumentar descontroladamente, porque é um indicador da saúde fiscal de um país. Isso é verdade, mas é sabido que o Brasil está longe de ser um dos países mais endividados do mundo quando se considera a relação dívida/PIB, atualmente em 76%. Alguns exemplos: 260% no Japão, 137% na Itália, 122% nos Estados Unidos, 110% na França.

“Esse número não significa nada”, disse ao Valor a conceituada economista italiana Mariana Mazzucato, professora da University College London. Segundo ela, o maior problema do Brasil é o baixo investimento em pesquisa e desenvolvimento. “Parem de observar a dívida pública. Perguntem como fazer uma política mais inteligente de investimentos públicos”, disse ao repórter Estevão Taiar.

Em robusto artigo no Valor de quarta-feira (19), quatro professores da FEA-USP (Luque, Silber, Luna e Zagha) também contrariaram a ideia difusa de que o aumento da dívida advém do descontrole do gasto público. Observaram que 80% da dívida pública de hoje decorre da acumulação de juros pagos pelo governo, e só 20%, da acumulação de déficits primários. E isso se deve à manutenção de juros reais mais altos do que o crescimento do PIB nos últimos 25 anos no país, que reduziu a taxa média de investimentos para 17%.

A proposta dos quatro professores endossa a de Olivier Blanchard, ex-economista-chefe do FMI, de que importante não é reduzir a dívida, mas garantir sua sustentabilidade. O que significa que o Brasil deveria ter um plano de médio e longo prazo para estabilizar a dívida. Seria errado tentar reduzi-la ou mesmo estabilizá-la a curto prazo, porque isso teria forte impacto negativo no emprego e na renda. Aliás, o déficit da Previdência, bicho-papão do gasto público no país, está estabilizado e até apresenta ligeira queda como porcentagem do PIB nos últimos quatro anos, como mostrou a ontem o Valor.

Belluzo lembra também que o economista francês Willem Hendrik Buiter sugeriu recentemente, em livro, ser preciso levar em conta, no cálculo das dívidas, os ativos do Estado. O Brasil, por exemplo, tem reservas em moeda forte de US$ 350 bilhões. Ativos como Petrobras e outras empresas estatais também poderiam ser considerados ao se calcular o nível real da dívida.

A parolagem do mercado sobre a dívida pública é prejudicial ao país. Mas quem se beneficia desse discurso sobre gastança e risco fiscal? Seria o próprio mercado financeiro? Belluzzo acha que não, porque isso acaba impondo um conjunto de restrições à ação do Estado prejudiciais a toda a economia. O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, por exemplo, está tendo que fazer uma verdadeira ginástica para ao mesmo tempo aumentar a receita e cortar gastos. E o resultado é até bom, tendo em vista o crescimento de quase 4% da economia em 2024.

Obviamente, deve-se batalhar pela eficiência do gasto fiscal, que é baixa no Brasil, mas convém ter um pouco mais de calma. O discurso contínuo e radical que espalha a ideia de gastança e rombo leva à formação de “consensos” que denotam primarismo, embora tenham muita importância nas decisões do Estado e do próprio setor privado. Keynes chamava-os de “convenções”.

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