Maria Alice Rezende de Carvalho
DEU NA FOLHA DE S. PAULO / +MAIS
CHEGADA AO RIO DE JANEIRO É DESCRITA COMO UMA MIRAGEM, SUGERINDO UMA CIVILIZAÇÃO PROVISÓRIA E AINDA POR FAZER
Natureza, brandura e favelas conformariam a alma da metrópole
O Rio de Janeiro não se revela imediatamente. Na entrada da baía de Guanabara veem-se, primeiro, o contorno das montanhas e as pequenas enseadas. Divisa-se, a seguir, Copacabana. À frente, há que ultrapassar o Pão de Açúcar, as praias de Botafogo e Flamengo, a Ilha das Cobras, a Ilha Fiscal para, só então, avistar-se a "massa vertical dos arranha-céus".
O Rio de Janeiro não é como Nova York, que se impõe aos navegantes como um fato.
É, antes, uma sucessão de dobras e miragens, que varia ao sabor das diferentes perspectivas. Com essa descrição da chegada ao porto do Rio, Stefan Zweig traduz sua impressão da cidade e do país: nada, nessa nova civilização, se mostra acabado; tudo é móvel, provisório, tem-se a sensação de viver no que ainda se desenvolve.
Em "Brasil - Um País do Futuro", a questão, portanto, não é a aposta em um ponto de chegada, a profecia do nosso êxito, e sim o destaque das virtualidades contidas naquele deslizar macio da nossa trajetória. Macio, diga-se de passagem, mesmo sob a ditadura de Vargas! E o Rio de Janeiro, espelho da inacabada civilização brasileira, é o lugar de onde se avistariam mais facilmente as potencialidades e vicissitudes dessa jornada.
Bondes e prostíbulos
Em 1941, ano da publicação do livro, eram três, segundo Stefan Zweig, as principais características da capital do Brasil: uma natureza extraordinária, na sua diversidade e harmonia, uma sociedade muito heterogênea, porém branda, e alguns artefatos notáveis, em via de extinção: os bondes, os prostíbulos localizados no mangue e as favelas.
Desses últimos, restaram as favelas, que são a prova da heterogeneidade social do Rio de Janeiro e a consequência de um desenvolvimento urbano deixado à iniciativa de famílias pobres.
Em resumo, natureza, brandura e favelas conformariam a alma da cidade, a fonte de suas possibilidades, sua energia, para dizer o mínimo. Comparada às modernas cidades da Europa, a capital brasileira, para muitos, careceria de civilização.
Mas Zweig avisa que a guerra alterara o sentido e o valor que atribuía àquela palavra. Já não lhe interessavam os números, a matemática inerente ao progresso europeu, pois a mais elevada organização social não impedira a germinação da barbárie. Prendia-se, agora, à esperança de que hábitos simples de cidade regenerassem o mundo devastado.
Essa força moral é o que o atraiu ao Rio e ali o reteve durante um Carnaval -a força da alegria coletiva, da população reunida nas ruas, da dissolução de todas as diferenças, "da liberdade orgíaca de descomedir-se" e voltar ao seu estado anterior, porém mais forte, mais assenhoreado do seu corpo e do seu espaço na cidade. Essa, talvez, a percepção mais aguda de Zweig e aquela que mais fortemente dialoga com o presente, pois a trajetória do Rio de Janeiro evidencia uma perene negociação quanto à forma, a extensão e as traduções desse hábito de cidade "vis-à-vis" a ética prevalecente nas sociedades mercantis de massa.
Alegria, alegria
O que se chama de etos de cidade é, simplificadamente, um modo de vida que não separa, antes amalgama, diferentes dimensões da experiência urbana. No mundo moderno, é possível encontrá-lo nas turbulentas repúblicas italianas, que antecederam em dois séculos a emergência do mercado autorregulado e das formações urbanas, como as conhecemos disseminadas por todo o planeta. Por isso, falar hoje ou no século 20 de hábitos de cidade significa valorizar experiências sociais coletivas e nutridas por paixões diversas, como poder ou lealdade, e não apenas pelo interesse.
A crítica de Zweig à "ambição civilizadora europeia" segue essa trilha e faz do Rio de Janeiro um ambiente encantado. Com valores como a solidariedade e a alegria, "é mais fácil ser pobre aqui do que noutra grande cidade".
Mas, visto da terra, invertida, portanto, após quase sete décadas, a perspectiva de Stefan Zweig, qual é o Rio de Janeiro? Um Rio que se diz idêntico ao que ele inventou. Já não é a capital do país. Mas, em tudo o mais, repete, com as atualizações devidas, a tríade mítica -natureza, brandura e favelas-, fartamente acionada, como se viu, na campanha que o levará a sediar a Olimpíada de 2016.
Com a diferença de que agora, perdida a inocência de todo objeto, nós somos sujeitos dessa nomeação e deveremos ter com ela compromissos mais firmes e democraticamente pactuados.
Assim, oxalá, como país do futuro, o Brasil mantenha aberta sua pauta civilizatória e 2016 não represente um ponto de chegada. Oxalá possamos dizer que é mais fácil viver aqui do que em qualquer outro lugar.
Maria Alice Rezende de Carvalho é professora do departamento de sociologia e política da Pontifícia Universidade Católica (RJ) e presidente da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (Anpocs).
DEU NA FOLHA DE S. PAULO / +MAIS
CHEGADA AO RIO DE JANEIRO É DESCRITA COMO UMA MIRAGEM, SUGERINDO UMA CIVILIZAÇÃO PROVISÓRIA E AINDA POR FAZER
Natureza, brandura e favelas conformariam a alma da metrópole
O Rio de Janeiro não se revela imediatamente. Na entrada da baía de Guanabara veem-se, primeiro, o contorno das montanhas e as pequenas enseadas. Divisa-se, a seguir, Copacabana. À frente, há que ultrapassar o Pão de Açúcar, as praias de Botafogo e Flamengo, a Ilha das Cobras, a Ilha Fiscal para, só então, avistar-se a "massa vertical dos arranha-céus".
O Rio de Janeiro não é como Nova York, que se impõe aos navegantes como um fato.
É, antes, uma sucessão de dobras e miragens, que varia ao sabor das diferentes perspectivas. Com essa descrição da chegada ao porto do Rio, Stefan Zweig traduz sua impressão da cidade e do país: nada, nessa nova civilização, se mostra acabado; tudo é móvel, provisório, tem-se a sensação de viver no que ainda se desenvolve.
Em "Brasil - Um País do Futuro", a questão, portanto, não é a aposta em um ponto de chegada, a profecia do nosso êxito, e sim o destaque das virtualidades contidas naquele deslizar macio da nossa trajetória. Macio, diga-se de passagem, mesmo sob a ditadura de Vargas! E o Rio de Janeiro, espelho da inacabada civilização brasileira, é o lugar de onde se avistariam mais facilmente as potencialidades e vicissitudes dessa jornada.
Bondes e prostíbulos
Em 1941, ano da publicação do livro, eram três, segundo Stefan Zweig, as principais características da capital do Brasil: uma natureza extraordinária, na sua diversidade e harmonia, uma sociedade muito heterogênea, porém branda, e alguns artefatos notáveis, em via de extinção: os bondes, os prostíbulos localizados no mangue e as favelas.
Desses últimos, restaram as favelas, que são a prova da heterogeneidade social do Rio de Janeiro e a consequência de um desenvolvimento urbano deixado à iniciativa de famílias pobres.
Em resumo, natureza, brandura e favelas conformariam a alma da cidade, a fonte de suas possibilidades, sua energia, para dizer o mínimo. Comparada às modernas cidades da Europa, a capital brasileira, para muitos, careceria de civilização.
Mas Zweig avisa que a guerra alterara o sentido e o valor que atribuía àquela palavra. Já não lhe interessavam os números, a matemática inerente ao progresso europeu, pois a mais elevada organização social não impedira a germinação da barbárie. Prendia-se, agora, à esperança de que hábitos simples de cidade regenerassem o mundo devastado.
Essa força moral é o que o atraiu ao Rio e ali o reteve durante um Carnaval -a força da alegria coletiva, da população reunida nas ruas, da dissolução de todas as diferenças, "da liberdade orgíaca de descomedir-se" e voltar ao seu estado anterior, porém mais forte, mais assenhoreado do seu corpo e do seu espaço na cidade. Essa, talvez, a percepção mais aguda de Zweig e aquela que mais fortemente dialoga com o presente, pois a trajetória do Rio de Janeiro evidencia uma perene negociação quanto à forma, a extensão e as traduções desse hábito de cidade "vis-à-vis" a ética prevalecente nas sociedades mercantis de massa.
Alegria, alegria
O que se chama de etos de cidade é, simplificadamente, um modo de vida que não separa, antes amalgama, diferentes dimensões da experiência urbana. No mundo moderno, é possível encontrá-lo nas turbulentas repúblicas italianas, que antecederam em dois séculos a emergência do mercado autorregulado e das formações urbanas, como as conhecemos disseminadas por todo o planeta. Por isso, falar hoje ou no século 20 de hábitos de cidade significa valorizar experiências sociais coletivas e nutridas por paixões diversas, como poder ou lealdade, e não apenas pelo interesse.
A crítica de Zweig à "ambição civilizadora europeia" segue essa trilha e faz do Rio de Janeiro um ambiente encantado. Com valores como a solidariedade e a alegria, "é mais fácil ser pobre aqui do que noutra grande cidade".
Mas, visto da terra, invertida, portanto, após quase sete décadas, a perspectiva de Stefan Zweig, qual é o Rio de Janeiro? Um Rio que se diz idêntico ao que ele inventou. Já não é a capital do país. Mas, em tudo o mais, repete, com as atualizações devidas, a tríade mítica -natureza, brandura e favelas-, fartamente acionada, como se viu, na campanha que o levará a sediar a Olimpíada de 2016.
Com a diferença de que agora, perdida a inocência de todo objeto, nós somos sujeitos dessa nomeação e deveremos ter com ela compromissos mais firmes e democraticamente pactuados.
Assim, oxalá, como país do futuro, o Brasil mantenha aberta sua pauta civilizatória e 2016 não represente um ponto de chegada. Oxalá possamos dizer que é mais fácil viver aqui do que em qualquer outro lugar.
Maria Alice Rezende de Carvalho é professora do departamento de sociologia e política da Pontifícia Universidade Católica (RJ) e presidente da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (Anpocs).
Um comentário:
Muito legal a sua visão apreciativa, Maria Alice. Postamos isso no Twitter em @cidademocratica. Veja lá e vamos colaborar para construir um Rio de Janeiro melhor para se viver. Um abraço do Rodrigo
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