Numa estrutura monárquica, a renúncia foi decisão republicana de um papa moderno até na inovação da tradição conservadora
Já há um elenco diversificado de explicações para a renúncia de Bento XVI ao trono de São Pedro. A melhor foi a dada por ele mesmo: "Para governar a barca de São Pedro e anunciar o Evangelho, é necessário também o vigor quer do corpo quer do espírito; vigor esse que, nos últimos meses, foi diminuindo de tal modo em mim que tenho de reconhecer minha incapacidade para administrar bem o ministério que me foi confiado". O papa não fez nenhuma referência mais explícita ao mar proceloso em que se move a barca e, sobretudo, referência a quem agita as águas que perturbam os rumos da nau sagrada. Manteve in pectore os fatores institucionais de seu gesto. Foi desprendido ao tomar sobre os próprios ombros o peso imenso dos fatores da renúncia como debilidade pessoal.
No entanto, em artigos de Jamil Chade e Filipe Domingues, no Estado dessa semana, fica claro que há no Vaticano uma disputa de poder: o cardeal Bertone, secretário de Estado, de um lado, e o papa, de outro, com pontos de vista antagônicos sobre questões cruciais e delicadas da vida da Igreja. Os fatores da fragilidade papal não são, pois, fatores apenas físicos; são também os do debilitamento da comunhão dos que se assentam à mesa pascal neste limiar da Quaresma. Como o que ocorreu no Horto, o papa declara que se aparta para orar. A linguagem que Ratzinger usa, neste episódio, é altamente simbólica. Decisão amadurecida há meses, ele escolheu, no calendário litúrgico da Igreja, o momento ritual mais significativo para seu anúncio. O Papa quis dizer muito mais do que disse. Confirmou-o na missa da Quarta-feira de Cinzas, ao falar em "divisões no corpo eclesial", em "individualismos e rivalidades". Renunciou para, em penitência, manter a unidade da Igreja. Nesse ato, Ratzinger fechou seu perfil, o de um funcionário da fé, oposto ao Ratzinger satanizado por aqueles que nele viram um reacionário inimigo político da libertação.
A cátedra de São Pedro vaga quando o papa morre. A decisão de Bento XVI expõe um dos aspectos mais complicados do papado nas últimas décadas: quando é que um papa começa a morrer? No sistema papocêntrico, essa é uma questão vital. Estamos acostumados a encarar o fim de um papado como processo que se torna público com o solene anúncio de que o papa morreu, no som grave do campanone (sino grande) do Arco delle Campane, na Basílica de São Pedro, espalhando-se pelos telhados de Roma e pelos ouvidos do mundo católico. Rito do chamado mortório por meio do qual a morte do papa se difunde. Mas quando, de fato, começa essa morte que pode estender-se por meses e anos? Ela começa quando o papa já não tem o vigor físico e mental que lhe garantam domínio sobre o que pensa e faz. Quando seus atos não se tornam necessariamente fatos, quando entre a intenção e a consequência interpõem-se vontades que não são as suas e até contrárias às suas. Na franqueza do papa renunciante de agora está posto o reconhecimento público dessa dimensão dramática da vida de um papa e da Igreja.
Os acólitos e coadjutores do pontífice são os que primeiro podem notar seu debilitamento. Mesmo os leigos que o servem podem perceber que o papa está aquém do que fora ou do que deveria ser. O motorista de Pio XII, que o acompanhava, a uma certa distância, nos passeios pelos Jardins do Vaticano, de certo modo disse isso à comissão de beatificação de Pacelli. Ainda em vida, Pio XII dizia ter visões de Nossa Senhora nesses passeios. Ele dizia, mas nunca vi nada, foi o que informou o motorista.
Os do poder na Cúria têm, não raro, transformado a debilidade física e mental dos papas em ponto de partida do que o sociólogo Erving Goffmann chama de conspiração alienativa. É o primeiro momento do morrer de alguém. A murmuração e as conversas atenuam a legitimidade dos atos de quem delas é objeto. O que numa estrutura como a da Igreja significa encurtar a autoridade do papa em favor da corte e da máquina de poder da instituição, a Cúria Romana. Não é estranho que, nessas circunstâncias, haja quem atue como papa ad hoc, papa das sombras. O carisma papal de algum modo fica entre parênteses, usurpado por motivações de poder que não são nem podem ser necessariamente reconhecíveis, na Igreja, como manifestações do Espírito Santo. Aqui, a análise político-ideológica, de tipo partidário, pouco ou nada tem a dizer porque incapaz de reconhecer mediações e significações a ela completamente estranhas.
A disputa de poder detectada neste episódio da renúncia de Bento XVI aparentemente é dessa natureza. O pronunciamento e a decisão do papa sugerem uma aguda consciência dessa antecipação de sua morte institucional. E também sua intenção de cortar-lhe as consequências danosas à unidade da Igreja ao abrir espaço para a convocação do conclave e a eleição de um substituto. No quadro dos paradoxos de Bento XVI, uma decisão republicana numa estrutura monárquica, mais um indício de um papa moderno até na ação inovadora em nome dos valores da tradição conservadora.
* José de Souza Martins é sociólogo, professor emérito da Faculdade de Filosofia da USP e autor, entre outros, de Exclusão Social e a Nova Desigualdade (Paulus)
Fonte: Aliás / O Estado de S. Paulo
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