O fato, que na semana passada ocupou o centro de todos e a todos sobrepujou, não se prende à crise intercontinental, nem às guerras emergentes que têm prosperado, não aconteceu em nossa vizinhança, mas longe daqui e, embora ocorrido em minúsculo Estado localizado dentro dos muros da capital da Itália e nos limites do Vaticano, repercutiu e continua a repercutir no mundo inteiro. Ocorreu ou está ocorrendo na sede histórica da cristandade. O chefe espiritual de imensa coletividade, que se estende por todos os continentes, e que ocupa cargo em princípio vitalício, foi protagonista de evento inesperado e sem precedente desde séculos. O papa Bento XVI renunciou ao Trono de São Pedro. Este o fato, possível, mas raro.
E, embora ele interesse precipuamente à comunidade católica, sua repercussão se estendeu além desses limites a mostrar que há coisas que não se exprimem por números, nem se aferem como se apuram bens materiais. É o que vem acontecendo, envolvendo setores confessionalmente desligados do pontífice resignatário. Com efeito, divulgada a renúncia do Vigário de Roma, não cessaram as manifestações por parte de cristãos e não cristãos, crentes ou incréus. Um dos primeiros a lastimar o afastamento de Bento XVI do cenário internacional foi o primeiro-ministro da Inglaterra, país que tem uma igreja própria na qual a rainha detém a suprema autoridade.
Para não desprezar a prata de casa, lembro que após a República, com a separação da Igreja do Estado, houve quem postulasse a extinção da legação que o Brasil mantinha junto à Santa Sé, e Rui Barbosa disse que também fora dessa opinião, contudo, o tempo e a maior experiência fizeram com que ele mudasse e o Brasil continuou a manter a legação, hoje embaixada, junto ao Vaticano. Tudo isso é sabido, assim como a declaração inicial do resignatário, "fiz isso em plena liberdade para o bem da Igreja, depois de ter rezado por muito tempo e ter examinado diante de Deus a minha consciência", se ele se limitasse a aludir à fragilidade de suas forças já inferiores à magnitude dos problemas a enfrentar, a renúncia teria outro alcance, mas ele aditou alguns dados que vieram a lhe dar indisfarçável relevo. Se as palavras dizem respeito à comunidade eclesial, não deixam de interessar à comunidade internacional, como vem interessando amplamente. E quando declara pensar em particular nas pessoas contra a unidade da Igreja, nas "divisões do corpo eclesial", que "desfiguram a Igreja", "na hipocrisia religiosa", estão a indicar a formidável dimensão dos problemas inerentes aos fatos alinhados, e ao despedir-se dos sacerdotes romanos declarou que a Igreja necessita de "verdadeira renovação". De outro lado, pode-se imaginar a dramática situação do sucessor de São Pedro que o levou a despojar-se da investidura sem paralelo.
Enfim, se a fragilidade física é real, também parece inegável que os sofrimentos espirituais de que padece o Sumo Pontífice não sejam quiçá menos dolorosos. Aliás, há fatos notórios, ocorridos em mais de um lugar da cristandade, que devem ser mortificantes para uma pessoa da espiritualidade do Servo de Cristo mais que "a disputa de poder", de que se fala, tanto mais quando ele era pela limpeza exemplar que entendia imperioso realizar e que não teve como praticar no que se refere à mancha da pedofilia.
Por tudo isso, penso que no ato da renúncia, pela qual se desinvestiu das insígnias supremas, o Santo Padre praticou o que podia cometer ao sentir-se impedido de concretizar ato de ofício. Penso que o gesto está impregnado de fidelidade e coragem e será sempre lembrado, pois ele se prende à necessidade da "verdadeira renovação da Igreja" segundo suas palavras.
*Jurista, ministro aposentado do STF
Fonte: Zero Hora
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