Muito já se escreveu sobre as jornadas de junho. Outros tantos escritos ainda haverão de vir na tentativa de explicar a participação de mais de dois milhões de pessoas, nas manifestações populares, nas grandes e médias cidades do País. No começo não tinha ‘nem pé nem cabeça’, como diria o humorista, comunista Aparício Torelly, o Barão Itararé. No começo era por apenas vinte centavos de aumento de ônibus. Com o passar dos dias a realidade da passividade: “país maravilhoso”, “saúde de primeiro mundo”, “escola para todos”, “sem desemprego”, “grande potência econômica”, “sem miséria e fome” se transformou em “o gigante despertou”. Houve uma inflexão, começo de uma nova conjuntura. Ficou tudo de pernas para o ar. É o que se poderia dizer de mais exato e preciso para resumir o que aponta a tendência daquelas manifestações.
Fatos como aqueles quando a sociedade, em desacordo com o estabelecido que aceitava com resignação o habitual e orientava o seu cotidiano, aparece de repente nas ruas com ímpeto forte de um evento raro e particular. Vem para destacar um limite, em geral, o fim de uma era e o começo de outra. ‘Navegar é preciso’.
O prof. Werneck Vianna em artigo recente foi muito claro e afirmativo, quando fez a síntese do fato. Sua narrativa:
“Não se pode mais não ver: esgotou-se o ciclo da modernização "por cima" que, em ondas sempre renovadas, cada qual com um estilo adaptado às suas circunstâncias - do de Vargas dos anos 1930 ao de Lula e Dilma nos dias atuais, passando pelo de Juscelino e dos generais-presidentes do regime militar -, vem dominando a imaginação das nossas elites políticas e os objetivos que perseguem” (Aladin e o gênio da garrafa, O Estado de S. Paulo, 28/7/2013).
É nesse quadro que gostaria de relembrar que é da alçada da oposição, se opor ao governo, como é óbvio e quase hilário de afirmar. Mas, para isto precisa declarar com convicção determinadas posições: defesa da democracia representativa e pluralista, com as liberdades individuais e coletivas, com os direitos humanos, com a República, com o avanço da ciência, com a preservação da natureza, com a inclusão, a participação, a solidariedade e a igualdade, ao lado dos valores da inovação, e a consideração dos problemas da vida real das pessoas. Valores estes inscritos na ‘Constituição cidadã’, há apenas vinte e cinco anos atrás. Se não fala em nome de alguma causa, alguma política e alguns valores, a voz se perde no som confuso do maldizente cotidiano, sem chegar aos ouvidos da rua.
A voz se confundirá e não faltará quem diga que todos, governo e oposição, são farinhas do mesmo saco, no fundo “políticos”. A rua falou o que se pode esperar deles: a busca de vantagens pessoais, quando não clientelismo e corrupção.
Nessa nova conjuntura as dificuldades são enormes. Isso pelo reconhecimento à convergência entre dois processos interdependentes: o “triunfo do capitalismo globalizado” e a adesão progressiva – no inicio envergonhada e por fim mais deslavada – do grupo dominante no governo à nova ordem e seus valores.
Enquanto a oposição democrática persistir em travar a batalha das ideais apenas sobre os “movimentos sociais organizados”, terá dificuldade. Isto porque o governo “aparelhou”, cooptou com benefícios e recursos as principais centrais sindicais e os movimentos organizados da sociedade civil e dispõe de mecanismos de concessão de benesses aos setores mais pobres, e isso é mais eficaz do que a palavra da oposição. Não é bom subestimar, além disso, a influência que ele exerce na mídia com as verbas publicitárias. Ou seja, há um domínio, por parte do governo, nesses setores.
Por outro lado, as manifestações de junho deram um sinal de que o coração do senso comum oscilou. Há possibilidade dessa mudança de espírito se aprofundar, agora, pela entrada na disputa da cultura católica e seus valores no começo do papado de Francisco: o não egoísmo, a não violência, laicidade do Estado, cultura do encontro, o diálogo de cultura, sentido ético e a reabilitação da política. Está aberto um novo campo de hegemonia.
Há no Brasil um conjunto de camadas médias, de novas camadas (empresários de novo tipo e mais jovens), de profissionais das atividades contemporâneas ligadas à tecnologia da informação e ao entretenimento, aos novos serviços espalhados pelo país afora. Pois bem, a imensa maioria destes grupos – sem excluir as camadas de trabalhadores urbanos já integrados ao mercado capitalista – está ausente do jogo político-partidário, mas não desconectada das redes de internet, Facebook, YouTube, Twitter, etc.
É a essas que a oposição democrática e reformista deve, também, dirigir suas mensagens prioritariamente. Se houver arrojo, pode organizar-se pelos meios eletrônicos, dando vida a debates verdadeiros sobre os temas de interesse delas.
Não é apenas isso. É preciso voltar às salas universitárias, às inúmeras redes de palestras, seminários, debates e que se propagam pelo país afora e não deve, obviamente, desacreditar do papel da mídia tradicional. Com toda a modernização tecnológica, sem a aprovação derivada da credibilidade, que só a tradição da grande mídia certifica, e que difundidas, se transformam em ideais reconhecidas.
Ademais, da persistência e ampliação destas práticas, é preciso buscar novas formas de atuação para que a oposição reformista esteja presente, ou pelo menos para que entenda e repercuta o que ocorre na sociedade. Há inúmeras organizações de bairro, um sem-número de grupos musicais, culturais e esportivos nas periferias das grandes cidades, etc., organizações voluntárias de solidariedade e de protesto, redes de consumidores, ativistas do meio ambiente, etc.
Conhecidas as dificuldades e a falta de confiança nas instituições político-partidárias, seria pedir muito à oposição reformista atirar-se na vida cotidiana e ter ligações orgânicas com grupos que expressam as dificuldades, demandas e anseios do homem comum. Mas que pelo menos aprenda a ouvir suas vozes e atue em consonância com elas. É um caminho para reabilitar a política, posta em cheque nas jornadas-manifestações de junho.
Rio, 03 de agosto de 2013
Gilvan Cavalcanti de Melo, membro da direção nacional do PPS e editor do Blog Democracia Política e novo Reformismo
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