-Eu &Fim de Semana / Valor Econômico
Um dos principais temas do pensamento social brasileiro é a persistência do atraso. Por ângulos distintos, autores dos mais variados, como Sérgio Buarque de Holanda ou Raymundo Faoro, ressaltaram as diversas fontes que impedem a modernização do país ou a tornam artificial, quando não parceira dos querem manter um secular status quo. Essa preocupação retornou com entrevista recente do ex-presidente Fernando Henrique a Josias de Souza, na qual apareceu uma frase do seu livro "Diários da Presidência": "Este é o Brasil de hoje, onde a modernização se faz com a podridão, com a velharia, com o tradicionalismo, o qual na verdade ainda pesa muitíssimo". De que maneira tal diagnóstico ainda nos diz respeito?
Obviamente que as barreiras do atraso já não são as mesmas apontadas pelos autores clássicos. O Brasil avançou muito nos últimos trinta anos. O maior exemplo, sem dúvida, foi a construção do regime democrático mais estável e inclusivo de nossa história. Persistem falhas no sistema político, como o próprio processo de impeachment realçou, seja pelas razões que o geraram, seja pelo seu formato final. De todo modo, nunca tantos atores participaram do jogo político, com tantos controles mútuos, dificultando o retorno a um sistema autoritário, nos moldes da ditadura militar.
Também houve melhorias nas condições sociais de grande parcela dos brasileiros. Isso foi resultado não só de decisões políticas, derivadas principalmente da pressão do eleitorado mais pobre, como ainda da construção de modelos institucionalizados de políticas públicas, nos vários níveis de governo. Em outras palavras, ocorreram aperfeiçoamentos técnicos e aprendizados de gestão que geraram programas governamentais mais consistentes na área social.
Outras formas de modernização poderiam ser citadas aqui, fruto de uma sociedade mais sofisticada e complexa do que no passado. Mas não se pode negar que persistem fontes de atraso criadoras de barreiras a um avanço ainda maior do país. A lista desses fatores seria grande, mas, por razões de espaço, concentro-me em dois elementos centrais. O primeiro diz respeito à forma de reprodução da classe política brasileira. Embora mais competição e participação tenham sido inseridas no jogo democrático recente, ainda é muito forte o modelo patrimonial de construção de carreiras políticas.
Desde as eleições na esfera local, passando pelas disputas no plano federal, um conjunto importante de políticos torna-se bem-sucedido eleitoralmente usando a máquina pública, ou a promessa de suas benfeitorias, para conseguir subir nos degraus da política. Alguns ficam apenas em postos municipais e estaduais, ou mesmo chegam ao Congresso Nacional como membros do "baixo clero" - basta recordar da maioria dos discursos paroquianos dos deputados na votação da aceitação do impeachment na Câmara para entender quem é esse grupo. Mas uma parte advinda desse modelo ganha destaque, como o são, notoriamente, Sarney e Renan. O que os caracteriza, na verdade, não é só se filiar ao modus operandi patrimonialista, mas saber comandar o grupo que assim se organiza, ganhando um enorme poder de barganha junto aos projetos do Executivo federal. Isso os torna peças centrais nas disputas por modernização do Estado brasileiro, como os presidentes Fernando Henrique e Lula sabem bem.
Para se manter no poder, os líderes do atraso têm que dialogar, flertar e por vezes serem porta-vozes de projetos de modernização, sabendo a hora de defender tais propostas e o momento de criar obstáculos, barganhando ganhos políticos nesse processo. Uma parte desse jogo pode ser feita pelas vias legais, mas como a sede de prebendas a distribuir e de benefícios privados a conquistar é maior dos que as fontes orçamentárias oficiais - e olha que tais políticos fazem acrobacias com as finanças públicas -, a corrupção também é moeda corrente aqui.
Na sua versão mais recente, a corrupção ganhou força por meio do caixa dois eleitoral, derivado da promessa e da distribuição de contratos públicos a empresas. Para isso, é fundamental ter gente indicada para postos-chave do Estado, em ministérios, empresas estatais e fundos de pensão. Quem lidera essa máquina do atraso, desde o governo Sarney, é o PMDB, contando com coadjuvantes partidários entre as legendas de centro-direita. Mas as legendas modernizadoras do período, com destaque para PSDB e PT, também aderiram a essa lógica.
A ascensão e queda de Eduardo Cunha é uma das melhores histórias da força e, ao mesmo tempo, dos flancos do atraso político brasileiro. Sua trajetória ganha sentido ainda no governo Collor, quando por meio do comando da Telerj pôde criar uma máquina de prebendas que alimentava políticos e empresários. Depois, entrou no grupo de Garotinho, já na versão de radialista evangélico, obtendo votos para ir do plano local ao Congresso. Quando começou a adquirir relevância dentro do PMDB federal, tornou-se um exímio entendedor do regimento e da lógica de funcionamento do Legislativo. A partir dessa reputação, começou a se tornar um intermediário de projetos de interesse do empresariado, ganhando confiança tal que se tornara comandante de um amplo esquema de financiamento coletivo de campanhas (segundo o próprio, de cerca de 200 dos deputados atuais). A eleição como presidente da Câmara foi a consolidação de seu lugar no panteão dos líderes do atraso - é bem verdade que contou com a inabilidade da presidente Dilma e com o apoio cínico de parte da oposição tucana, mostrando como os mais prováveis modernizadores têm jogado contra o próprio gol.
O tamanho do tombo foi similar ao salto de poder que conseguira dar ao longo dos dois últimos anos. Sua derrota foi muito mais humilhante do que de qualquer outro cassado pelo Congresso, obtendo apenas 10 votos a seu favor, e 450 contra. Sua queda em parte se explica pelos avanços da democracia brasileira, sejam os vinculados à capacidade de pressão da sociedade em casos de escândalo, sejam os relacionados ao sistema de controle e Justiça. Mas seu ocaso tem a ver, ainda, com um pacto entre os patrimonialistas para entregar sua cabeça e tentar manter o restante desse sistema intacto.
A cassação de Cunha, em resumo, mostra avanços no combate ao atraso, mas também como o modus operandi patrimonialista foi capaz de perder os anéis, mantendo os dedos. Somente modernizando as formas de ocupação dos cargos públicos, alterando a lógica de relacionamento entre Estado e sociedade - principalmente para os favorecidos por benesses e privilégios em troca de apoio e dinheiro -, subvertendo a lógica da política local e acabando com o mercado de venda de apoio partidário num cenário de excessiva fragmentação que será possível atingir as profundezas do fenômeno.
Certamente ainda faltará uma perna no combate ao atraso. Afinal, os políticos nascem das escolhas do eleitorado. E, nesse sentido, a qualidade do voto depende muito do capital social e cultural construído por uma nação. A principal arma para mexer com tal aspecto é, sem dúvida alguma, a educação. Desde 1988, o Brasil avançou muito na política educacional, tornando-a efetivamente um direito e criando várias ações e programas que garantiram a universalização do ensino fundamental, a ampliação do contingente de estudantes que completam o ensino médio e aumentando o número de pobres (e negros) que chegam à universidade. Essa melhoria destaca-se ainda mais em razão do legado histórico, pois se houve uma reforma que atrasou no país foi a da educação, destinada basicamente, por quase todo o período independente, a uma elite apartada da maioria.
Não obstante os avanços, ainda estamos longe das nações mais desenvolvidas. Por isso, é preciso dar uma urgência maior na luta pela qualidade da educação. Os dados do Ideb de 2015, anunciados na semana passada, revelam um quadro em que houve melhoria significativa nas primeiras séries do fundamental, quase estagnação no fundamental II e uma piora no ensino médio na relação entre metas almejadas e resultados alcançados. É uma notícia ruim para o desenvolvimento do país, porque teremos um capital humano de qualidade inferior à necessária para competir no mundo globalizado. É uma notícia péssima para o combate à desigualdade, porque os que mais dependem da escola pública - leia-se: os mais pobres - sofrem mais com esse resultado. E é uma notícia ótima para o atraso, porque a fragilidade educacional brasileira tem um grande papel na criação dos Eduardos Cunhas da vida.
Houve boas notícias no Ideb, entretanto. Destaco o sucesso de um Estado como o Ceará, muito mais pobre e desigual que seus irmãos federativos do Sudeste, que conseguiu enormes avanços nos últimos dez anos. Fez isso porque tornou a política pública mais profissional, criou mecanismos de cooperação entre o governo estadual e os municípios independentemente do partido dos prefeitos, montou instrumentos competitivos e cooperativos de indução ao desempenho das escolas, reduziu a desigualdade educacional, definiu metas claras e formas de monitoramento, além de priorizar o longo prazo. Talvez o combate ao atraso possa ter uma boa pista nesse exemplo, em que política e gestão fizeram um casamento diferente daquele proposto pelo patrimonialismo.
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Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e coordenador do curso de administração pública da FGV-SP,
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