sexta-feira, 8 de setembro de 2017

Quantofrenia e mérito |José de Souza Martins

Valor Econômico / Eu &Fim de Semana

Há uma obsessão quantofrênica disseminada por toda a sociedade brasileira. A decorrente meritocracia, nas universidades públicas, criou "partidos": na "direita", o dos que defendem a meritocracia como critério regulador da vida acadêmica, medida através de índices de produtividade; na "esquerda", o dos que a combatem porque seria instrumento do neoliberalismo e do capitalismo, de lógica avessa ao que é próprio da ciência. Nos dois lados, há problemas de compreensão da realidade universitária. Medir produtividade no trabalho universitário é um nonsense. Universidade não é lugar de produção, é lugar de criação e de ensino.

Conta-se, a propósito, uma anedota, que João Ubaldo Ribeiro me assegurava ser história verdadeira, relativa à visita de Einstein ao Brasil em 1925. Teria sido designado para acompanhá-lo, em suas andanças pelo Rio de Janeiro, Austregésilo de Athayde, que trabalhava em "O Jornal", de Assis Chateaubriand. O jornalista levou o sábio para cima e para baixo, a cafés e restaurantes. De vez em quando apanhava um guardanapo, escrevia nele alguma coisa e o guardava no bolso. Einstein estranhava. "O senhor está estranhando que eu tome notas nos guardanapos e os guarde, não é?" Einstein concordou. "Sabe o que é?", disse-lhe Athayde. "Eu tenho muitas ideias, para livros que pretendo escrever. Mas minha memória é péssima. Tomo essas notas para não me esquecer dessas intuições. O senhor não tem esse problema?" "Não", respondeu-lhe Einstein, "eu só tive uma ideia."

Aí pela segunda metade da década de 1980, um pró-reitor da Universidade de São Paulo resolveu preparar uma lista dos professores "improdutivos". Estranhamente, a lista vazou para um grande jornal e centenas de docentes tiveram seus nomes expostos ao comentário público, não raro de pessoas que mal sabem ler e escrever ou que não têm a menor ideia do que é a universidade. Gente que pensa em produção agrícola ou fabril.

Ficaram em desvantagem todos aqueles que, nos vários campos do conhecimento, dedicavam-se aos temas duros e de resultados lentos e incertos, como o das pesquisas sobre o câncer, na medicina, ou o das pesquisas sobre as populações indígenas, na antropologia. Seus colegas penavam na região amazônica, em condições adversas, com recursos modestos, para muito lentamente obterem dados minguados e minúsculos, que só a muito custo se condensam num todo significativo. Cada área de conhecimento tem seu próprio ritmo, seu próprio tempo e suas próprias dificuldades. O próprio experimento que comprovou a Teoria da Relatividade, de Einstein, sequer foi feito por ele. Foi um jovem astrofísico de Cambridge, Arthur Eddington, que organizou expedições a São Tomé e Príncipe e ao Ceará, no Brasil, em 1919, para observar um eclipse solar que, fotografado, forneceria a comprovação daquela teoria.

Aqui no Brasil, entre 1949 e 1951, Darcy Ribeiro, que trabalhava no Serviço de Proteção aos Índios, começou seu trabalho de pesquisa e documentação sobre os índios urubu-kaapor, no Maranhão. Teve que fazer a pesquisa em etapas para conciliar suas obrigações de trabalho no SPI com a cronologia do ano cultural dos índios. Nunca conseguiu cobrir todos os aspectos da realidade social e cultural da tribo.

O temor às avaliações, no trabalho acadêmico, não tem o menor sentido. A palavra "produtividade" introduziu uma deformação na compreensão da repercussão desse trabalho no mundo da ciência. Misturou criação de conhecimento com a fabricação de salsichas e a produção de batatas. Quanto a isso, até os governos comem gato por lebre. E prejudicam as universidades.

Cada vez mais, e há muitos anos, as universidades do mundo inteiro recorrem aos índices de avaliação para definir suas estratégias de aperfeiçoamento. No plano individual de cada pesquisador, os índices internacionais de citações rastreiam e avaliam as citações que cada um dos livros e artigos de determinado pesquisador receberam nas publicações de outros pesquisadores. Os índices h-índex e i-10 têm sido instrumentos de verificação da repercussão científica de todos os trabalhos em todas as áreas do conhecimento. O h-índex calcula quantas vezes determinado artigo foi citado em determinado período. O i-10 calcula quantas vezes determinado artigo foi citado ao menos dez vezes. Os indexadores permitem que o pesquisador verifique quem o citou, em que texto e onde está publicado. Ajuda-o a conhecer a repercussão e a relevância de seus trabalhos. Poderá, assim, aperfeiçoar suas conclusões e seus métodos. Na Europa e nos Estados Unidos, os índices de citações são hoje incluídos nos critérios de seleção e contratação de professores. Quem não está neles, de fato, ainda não existe.
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José de Souza Martins é sociólogo. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, autor de “Uma Sociologia da Vida Cotidiana” (Contexto).

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