No Brasil ainda dominado pela ‘turma do deixa disso’, como dizia o Millôr, passamos pela prova do um ou outro
Para um olhar distanciado — se isso é possível quando vivemos a primeira Lei de Murphy, segundo a qual, “se algo pode dar errado, dará” —, um dos fatos mais notáveis desta eleição é a polaridade lida como uma indesejável “polarização”. Como prenúncio de crise e violência. Como o lado negativo da concorrência eleitoral inevitável no “estado democrático de direito”.
Competição sem a qual não haveria senso de realismo e de renovação como algo central da democracia, tal como a conhecemos nos seus dilemas, riscos e qualidades. A menos que se pense em novas regras para o regime democrático — e tais formulações têm surgido tanto nos seus feitios fascistas quanto nos liberais (no sentido preciso de articular de modo franco e possível individualismo, liberdade e igualdade) —, toda derradeira fase de um processo eleitoral ou de substituição de atores em papéis exclusivos só pode terminar num dualismo. Numa oposição final que — diferentemente dos sistemas fechados, nos quais os governantes são substituídos por assassinatos incestuosos, como ocorria na Roma Antiga — é um belo exemplo disso; e os nossos “golpes de Estado” são assassinatos políticos nos quais uma polaridade tida como irreversível é resolvida pela eliminação do adversário. Todos conhecemos esse caso que, como uma compulsão, teima em retornar. Nele, a discordância transforma-se em hierarquia pela submissão ou eliminação do outro.
A pergunta de fundo, portanto, é como ter Política (com “p” maiúsculo) sem polaridades? Sobretudo quando sabemos que as democracias se fundam na paradoxal adversidade destinada a resolver os clamores da maioria pelo voto desta mesma maioria. Nelas nada é perfeito, exceto o ditador ou a Nomenclatura que está acima da lei e na raiz da manutenção de privilégios garantidos e irremovíveis.
O que padece revelado ao cronista de outro planeta não é o risco da expressa na batida oposição entre “direita e esquerda” ou em outros dualismos, mas é a sua interpretação restritiva. A busca do “centro” — como se o centro não fosse, uma vez criado, engendrar outros dualismos — não funciona. O cuidado é garantir a competição dentro dos limites das leis e do bom senso.
Reconhecer isso não é dizer que o enredo e os atores sejam ideais. Longe disso. Mas onde existiriam artistas e enredos perfeitos? Onde se faz história controlando, como advertia Marx, todas as circunstâncias? Se um voto por cidadão é criticável, sabemos bem o quanto é perverso o voto apenas por um partido ou segmento.
Um observador distanciado sugere que as polaridades são indigestas em sociedades e sistemas fundados na lógica aristocrática do mais ou menos, do maior e do menor, passando — como a nossa — pela multiplicidade de intermediários, os quais permitem o jeitinho e o apêndice jurídico. Enfim, tudo isso que tem permitido mudar não mudando e crescer sem distribuir.
No Brasil ainda dominado pela “turma do deixa disso”, como dizia o Millôr, passamos pela prova do um ou outro e, a menos que se tenha plena consciência de que democracia é uma responsabilidade de governantes ou governados, a eleição será sempre um perigo. Até que se compreenda que uma eleição não dá de presente um país a qualquer um. E que ela nomeia por tempo determinado quem representa a nossa honra, a nossa honestidade e o nosso bem-estar.
Pior do que a polarização política é a social, que consolida no limite da decência ricos e pobres, governantes impunes por legislações obsoletas; e dominantes e dominados.
Privilegiados e gente comum. Esses que, dentro do feitio paradoxal da democracia, têm —graças às polarizações —o poder de escolher.
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