- Valor Econômico / Eu & Fim de Semana
A sociedade sairá da crise muito mais desconfiada do consenso neoliberal anterior, demandando mais governo e políticas públicas de qualidade
Nunca estivemos tão sós e, ao mesmo tempo, tão dependentes uns dos outros. A covid-19 nos isolou drasticamente de uma forma inédita no mundo moderno, mas também reforçou o peso da coletividade, seja para coibir o alastramento do vírus, seja para garantir a solidariedade necessária para ajudar as populações mais vulneráveis.
Esses tempos difíceis podem ser longos e, com certeza, não serão resolvidos pelas visões individualistas predominantes na economia e na política. Para sairmos dessa enorme crise será preciso reconstruir e fortalecer o conceito de público, tão vilipendiado e esquecido nos tempos mais recentes.
A reconstrução do conceito de público envolve três dimensões. A primeira tem a ver com as relações entre Estado e sociedade, mais especificamente sobre a confiança na atuação governamental. A segunda relaciona-se com as políticas públicas, em particular com aquelas que formam a base do Estado de bem-estar social. E a última delas refere-se à transformação dos valores hegemônicos, tanto em suas manifestações mais narcísicas, como em sua forma tribal e intolerante que tem crescido com as mídias sociais.
Quando surge uma grande crise, o síndico que é sempre chamado para resolver o problema chama-se Estado. Não seria diferente agora com essa enorme e imprevisível pandemia. Mas é importante que se saiba que por conta de terem sido tão desacreditados e enfraquecidos nos últimos anos, os governos estão menos preparados e capacitados para lidar com os efeitos perversos da covid-19. Essa lição é importante porque demoraremos mais para sair da atual situação, com grandes custos sociais e econômicos.
É preciso, ademais, lembrar que outros problemas globais e complexos devem nos atingir nos próximos anos. Não precisa ser nem uma pandemia como a do Covid-19. Governos serão muito importantes para combater os efeitos do aquecimento global (como secas cada vez mais constantes em alguns lugares), o aumento da desigualdade derivada da revolução tecnológica, a pressão demográfica por políticas públicas aos idosos e o aumento da competitividade entre os países vinculada à qualidade educacional, para ficar em exemplos nos quais sem um Estado capacitado as soluções serão mais difíceis de serem alcançadas.
Desacreditar e enfraquecer os governos é uma tarefa que teve suas origens contemporâneas nos governos de Reagan e Thatcher, no início dos anos 1980. Essa proposta não teve adesão linear ao longo do tempo e nem entre os países, de modo que muita ação governamental de boa qualidade foi feita nos últimos quarenta anos, garantindo boas políticas públicas ou tirando a economia de crises homéricas, como foi em 2008. De todo modo, aprendemos pouco com a história e nos últimos anos as posições mais refratárias ao Estado e até mesmo às autoridades governamentais cresceram muito. Foi nesta onda que se elegeram Trump e Bolsonaro, por exemplo, com suas propostas de Estado mínimo.
A conta dessa visão de mundo será paga agora, em maior ou menor medida pelos países de acordo com a forma como aderiram a uma concepção de economia política mais neoliberal. A Saúde foi uma das áreas mais afetadas pela concepção minimalista de Estado e a crise do coronavírus fez com que muitas pessoas pelo mundo ficassem à mercê de governantes cujo discurso era de que o governo sempre atrapalha. Não por acaso, figuras como Trump e Bolsonaro demoraram a atuar, pois eles não acreditam em ações governamentais de combate a fragilidades coletivas ou à desigualdade.
Recuperar a confiança nos governos não significa acreditar que o Estado deve ser imenso e capaz de resolver todos os problemas coletivos. O modelo estatal desejável supõe controles efetivos sobre os governantes e a máquina pública, além de uma visão equilibrada sobre a sua ação no campo econômico. A questão é que nos últimos anos o pêndulo virou demais para a crença ingênua ou ideológica num poder mágico dos mercados. Além disso, acreditou-se que a sociedade, tomada como um corpo homogêneo, seria o sinônimo de público. Fortalecer as organizações da sociedade civil é um objetivo central na democracia, porém, deve caminhar junto com a construção de um governo legítimo e efetivo, que possa impulsionar o melhor da solidariedade entre os cidadãos e, sobretudo, combater as desigualdades entre eles.
A esfera pública é uma intersecção entre os diversos grupos sociais e as instituições públicas. Isso fica cada vez mais claro quanto mais se caminha por essa triste crise trazida pelo Covid-19, cujas soluções não advém de um lado contra o outro. Em vez se ter uma visão que coloca em campos opostos Estado e sociedade, o correto é postular uma visão segundo a qual é fundamental encontrar formas de articulação entre ambos, sem abandonar a saudável fiscalização que setores sociais e cidadãos devem realizar continuamente sobre os governantes, mas não deslegitimando o poder estatal em si.
O Estado insere-se como ator-chave no espaço público principalmente por meio da produção de políticas públicas. O mundo precisará cada vez mais delas por duas razões. A primeira é que cada vez mais dilemas coletivos complexos se apresentarão para as sociedades, sem que elas consigam reagir sozinhas ou por soluções descentralizadas de mercado. Políticas ambientais, sanitárias, educacionais, urbanas, de garantia de condições básicas aos cidadãos serão o alicerce para reagir a qualquer fenômeno social que desestruture países, cidades ou mesmo a esfera global. O exemplo da covid-19 é acachapante neste sentido: todo o processo de reação e combate deste problema será feito por políticas públicas - e quanto mais o Estado for capacitado e efetivo em tais ações, melhor para as nações, empresas e cidadãos.
As políticas públicas serão decisivas também por conta do crescimento das desigualdades pelo mundo. As imagens de sem-teto na Itália, Estados Unidos e Brasil em meio à pandemia são chocantes. Ficou claro que o isolamento social não é igual para todos, e a paralisação da economia irá igualmente realçar o gigantesco tamanho das disparidades econômicas e sociais. É possível que após o auge da crise epidemiológica, virá um momento de reconstrução econômica que exigirá políticas que garantam condições básicas de sobrevivência a todos, e isso, sem dúvida alguma, não será realizado pelas forças puras do mercado.
Por isso que a segunda dimensão da reconstrução do conceito de público passa inevitavelmente pela recuperação da ideia de “Welfare State”. Os governos precisam garantir boas políticas públicas de saúde, educação, segurança, assistência social, meio ambiente e em todos os campos em que as externalidades negativas do mercado e os efeitos do aumento da complexidade social exijam uma ação pública. O exemplo da covid-19 vai ficar em nossa memória por muitos anos, sendo lembrado pelos parentes dos que morreram e pelos milhões que ficaram doentes. O período de confinamento está mostrando, ademais, o quanto as escolas e os professores fazem diferença na construção das relações sociais. As famílias devem estar entendendo que a educação é muito mais complexa do que preparar os filhos para uma carreira e passar no vestibular.
A sociedade sairá da crise muito mais desconfiada do consenso neoliberal anterior e demandando mais governos e políticas públicas de qualidade. Mas isso não garante que o Estado será fortalecido da forma adequada. Os principais grupos sociais e políticos deveriam começar, desde já, a pensar em modelos de administração pública que garantam governos que se orientem pela eficiência, pela efetividade, pela ética e, com grande ênfase, pela equidade. Para isso, será muito importante valorizar os bons profissionais da área pública. Com destaque, podem ser citados aqui os médicos, professores, policiais, assistentes sociais e técnicos que participam da formulação das políticas.
A preparação do Estado para retomar sua capacidade de garantir os direitos dos cidadãos não é o último passo na reconstrução do conceito de público. Uma última dimensão refere-se à necessidade de mudar os valores dominantes no mundo contemporâneo, especialmente a força do individualismo narcisista, para o qual a exposição da privacidade de cada um e das celebridades é máximo de coletivo que se vislumbra, bem como o comportamento tribal e intolerante vigente nas redes sociais e na política. Em lugar deles, precisamos de mais solidariedade, diálogo, aprendizado mútuo entre as partes e respeito pelos saberes adquiridos pela experiência pública e pela ciência. Afinal, o que nos retirará da crise da covid-19 não serão as respostas dadas pela ignorância raivosa da internet. Ao contrário, a solução passa por aqueles que dedicam anos de estudo fora dos holofotes e dos cliques de like.
O Brasil, obviamente, tem de reconstruir o seu conceito de público em torno da recuperação da importância do Estado, de suas políticas públicas (especialmente as sociais) e do próprio debate público, marcado nos últimos anos pela polarização estéril e pela pretensa novidade vinda de gente que não se importa com a desigualdade e com os mais pobres. A covid-19 mostrou de que maneira somos brasileiros: desiguais frente à pandemia, mas mesmo assim todos tementes em relação ao nosso futuro comum. Por isso que a esfera pública do país não pode se restringir à Barra da Tijuca ignorando os morros cariocas.
*Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e chefe do Departamento de Administração Pública da FGV-SP
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