Aquele que depois seria um renomado escritor foi prefeito da alagoana Palmeira dos Índios por dois anos
David Lucena | Folha de S. Paulo
SÃO PAULO - Com a política tradicional mal avaliada por grande parcela da sociedade, caciques partidários buscam outsiders, de preferência com um discurso de exaltação da ética e do combate à corrupção, para disputar as eleições às prefeituras.
O cenário parece descrever as articulações para a última eleição e a deste ano, mas a estratégia é centenária na política brasileira. Foi assim que, há quase um século, um dos maiores escritores do país chegou à chefia do Executivo de um pequeno município alagoano.
O mandato que marcou o início da vida política de Graciliano Ramos (1892-1953) chegou ao fim há 90 anos. Em 10 de abril de 1930, aquele jornalista —filho de comerciante e depois autor de "Caetés" (1933) e outras referências da literatura— renunciava ao cargo de prefeito de Palmeira dos Índios.
Durante pouco mais de dois anos, deixou como legado dois relatórios de gestão publicados no Diário Oficial de Alagoas, que, fugindo à escrita burocrática e mais se aproximando de sua literatura social, podem ser uma espécie de manual político irônico para os prefeitos dos dias de hoje.
Os relatórios mostram as atitudes do prefeito ao assumir um município sem verba, com quadro de servidores inchado e corrupção sistêmica. Ao menos duas lições são louvadas por gestores que pregam a "nova política": combater o aparelhamento estatal e aumentar a produtividade.
"Dos funcionários que encontrei [...] restam poucos: saíram os que faziam política e os que não faziam coisa nenhuma", escreveu Graciliano, ao fim do primeiro ano de mandato, em relatório publicado em 24 de janeiro de 1929.
O enfrentamento do aparelhamento da máquina pública foi uma das primeiras medidas prometidas pela gestão Jair Bolsonaro em 2019. Então ministro da Casa Civil, Onyx Lorenzoni falou, logo após assumir, que era preciso "fazer a despetização do governo".
Outra lição atual de Graciliano: denunciar supostas irregularidades de gestões anteriores. "A prefeitura foi injuriada quando, em 1920, aqui se firmou um contrato para o fornecimento de luz. Apesar de ser negócio referente à claridade, julgo que assinaram às escuras. É um bluff. Pagamos até a luz que a lua nos dá."
Algo que parece não fazer parte da cartilha de hoje, porém, é a modéstia de Graciliano, que dizia que seus erros decorriam da sua inteligência, a qual julgava fraca.
"Convenho em que o dinheiro do povo poderia ser mais útil se estivesse nas mãos, ou nos bolsos, de outro menos incompetente do que eu", relata. "Em todo o caso, transformando-o em pedra, cal, cimento etc., sempre procedo melhor que se o distribuísse com os meus parentes, que necessitam, coitados."
Admitia ainda que havia descontentamento com sua gestão. Escreveu que, se sua permanência no cargo dependesse de um plebiscito, talvez não obtivesse dez votos. "O Município, que esperou dois anos, espera mais um. Mete na Prefeitura um sujeito hábil e vinga-se dizendo de mim cobras e lagartos."
Ao menos uma coisa mudou substancialmente dos tempos de Graciliano, na República Velha, para cá: a fraude eleitoral como regra. O escritor, apoiado pelo então governador de Alagoas, se elegeu em um pleito com candidatura única. A oposição temia que, ainda que ganhasse nas urnas, perderia na apuração.
Mas convencer o então escritor a candidatar-se não foi fácil. Dono de uma loja de tecidos chamada Loja Sincera, ele rejeitava negociatas políticas.
Valdemar de Souza Lima, autor de "Graciliano Ramos em Palmeira dos Índios", explica que o clamor pela candidatura de Graciliano decorria do fato de ele ser um nome de fora da política tradicional. "O município não ia bem, administrativamente falando. Impunha-se uma mudança. O que estava agora na ordem do dia eram as ideias novas."
Outro fator que diferenciava Graciliano diz respeito ao ufanismo, tão em voga hoje. Em uma das publicações, o então prefeito ironiza o apelido de Palmeira dos Índios, conhecida ainda hoje como a Princesa do Sertão. "Uma princesa, vá lá, mas princesa muito nua, muito madraça, muito suja e muito escavacada."
Segundo a professora da UFBA Elizabeth Santos Ramos, especialista na obra do escritor e neta de Graciliano, o estilo da prosa e o tom de denúncia dos relatórios "podem ser observados em vários dos personagens da escrita de ficção do romancista".
"O que fica patente nos relatórios é a ética, a lisura, a consciência com relação ao dinheiro e ao bem públicos. Lamentavelmente, vejo muito pouco disso na política atual", diz a professora à Folha.
O fim da vida política do escritor, no entanto, não se deu com a renúncia à Prefeitura de Palmeira dos Índios. Depois da experiência, ele exerceu outros cargos na administração pública, como o de diretor da Instrução Pública de Alagoas —equivalente a um secretário de Educação.
Em março de 1936, foi preso pelo regime de Getúlio Vargas. Levado de Maceió ao Rio de Janeiro, foi mantido em cárcere por 11 meses e posto em liberdade sem ter sido formalmente acusado de nada nem tampouco julgado.
Em carta endereçada a Getúlio em agosto de 1938, Graciliano questiona os motivos de ter sido preso e enviado para longe de Alagoas.
"Como declarei a V. Ex.a, ignoro as razões por que me tornei indesejável na minha terra. Acho, porém, que lá cometi um erro: encontrei vinte mil crianças nas escolas e em três anos coloquei nelas cinquenta mil, o que produziu celeuma. Os professores ficaram descontentes, creio eu. E o pior é que se matricularam nos grupos da capital muitos negrinhos."
Em 1945, Graciliano filiou-se ao Partido Comunista Brasileiro, a convite de Luís Carlos Prestes. "O que eu desejava era a morte do capitalismo, o fim da exploração", escreveu em "Memórias do Cárcere".
Apesar disso, o autor, que retratou a miséria brasileira em obras como "São Bernardo" (1934) e "Vidas Secas" (1938), julgava-se um "revolucionário chinfrim". "Se todos os sujeitos perseguidos fizessem como eu, não teria havido uma só revolução no mundo", escreveu. O motivo, segundo o próprio Graciliano, é que suas armas eram fracas: eram de papel.
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