- Valor Econômico / Eu & Fim de Semana
O governo nem sabe onde estão e quem são os que carecem de socorro, que agora se tornaram objeto de interesse só porque são ameaça aterradora ao futuro do capitalismo consumista
Mais rápidas do que outras iniciativas para contornar socialmente a disseminação e os danos da covid-19 têm sido as iniciativas comunitárias. Comunidade é um dos conceitos científicos banalizados nos últimos anos, no Brasil. Mas, o fato de que muitos grupos vicinais e empresas estejam dando às suas ações humanitárias o nome de ações de comunidade, não deve ser menosprezado.
Comunidade e sociedade são dois tipos de organização e de conduta sociais. Em meados dos anos 1950, sobretudo por influência americana, houve uma tendência no sentido de depreciar o modo comunitário de vida e valorizar o modo societário, o decorrente da urbanização, da individualização da conduta e da secularização das concepções sociais. A comunitária seria um tipo atrasado de sociabilidade.
Os estudos de comunidade, que os antropólogos americanos realizaram e difundiram na América Latina, não obstante a subjacente depreciação ideológica do comunitário, possibilitaram descobertas importantes sobre a realidade social.
Ricas e significativas concepções comunitárias sobre a reciprocidade, a ajuda mútua, o parentesco, os critérios de distância social, o saudável e o doentio, a medicina popular, a religião e a morte e até o dinheiro foram identificadas e descritas cientificamente.
Caso da concepção moral do “bem limitado”, a de que tudo existe em quantidade finita, o que pede parcimônia no uso e gasto. Daí técnicas de economia popular, de honra, de pudor, de herança. Um mundo silencioso e incongruente com as fantasias da sociedade que se diz capitalista, mas que, para os pobres, é apenas dinheirista.
Os valores comunitários, identificados equivocadamente como elementos da cultura rural, migraram para as cidades e em seus subterrâneos se revigoraram. As eficazes reações comunitárias à pandemia atual, na invenção de redes de ajuda mútua e de apoio, são heranças de um enorme patrimônio cultural e moral, que daí procede. Resistem à destrutiva ignorância do senso comum pós- moderno e consumista.
Aqui tudo tende a ser reduzido ao anticomunitário ter ou não ter. Disseminou-se o rótulo de exclusão social para indicar que só estão incluídos e são “normais” os integrados na sociedade de consumo, da compra e da venda. Tudo tem preço, até a alma e a salvação. Há religiões especializadas nisso.
O governo, nascido dessa mentalidade, nem sabe onde estão e quem são os que carecem de socorro. Os que agora se tornaram objeto de interesse do Estado só porque, pobres e esquecidos, são uma aterradora ameaça ao futuro do capitalismo consumista e à sobrevivência dos que o representam e dele se beneficiam. O vírus subversivo tornou-os democraticamente iguais aos mais ricos do país.
O vírus não reconhece a legitimidade das classificações, barreiras sociais e hierarquias fundadas em doutrinas econômicas como as da escola de Chicago. As que formam a mente dominante num mundo só para os prósperos; não para o próximo. A mentalidade por trás dessa interpretação antissocial de economia tem como referência uma concepção coisificadora da condição humana.
Não reconhece as tradições que fazem do homem um ser propriamente humano. Nem a contradição que move o capitalismo para cima e para o abismo ao mesmo tempo. A bolsa diz que tudo vai bem e, de repente, o vírus sem remédio diz que tudo vai mal. Não há economista que cure isso.
Joaquim Falcão, em artigo recente, foi incisivo em mostrar que o governo de Jair Bolsonaro, no que respeita à pandemia, não tem a mínima ideia do que é a população que perturba suas certezas descoladas da realidade e do bom senso. O autor chamou a atenção para o caráter comunitário das reações que suprem as melancólicas relutâncias do governo.
Um sociólogo alemão do século XIX, Ferdinand Tönnies (1855-1936), autor de um livro que tem justamente o título “Comunidade e Sociedade”, muito antes de uma corrente da sociologia, equivocadamente, polarizar os conceitos e os empobrecer, já havia sublinhado que a comunidade é o substrato persistente da sociabilidade humana e que o societário lhe é sobreposição inautêntica e frágil.
São as estruturas sociais profundas da comunidade que servem como referência regeneradora e até inovadora de sociabilidade onde a anomia e as rupturas comprometem as ações autoprotetivas da sociedade. Como agora, no caso da pandemia.
Sectário e desinformado, o governo limitou os recursos de bolsas de estudo e pesquisa para as ciências humanas. Justamente as que podem realizar investigações científicas sobre as situações sociais em que a sociedade espontaneamente e eficazmente cria, em regime de urgência, a estratégia social de compreensão da doença e de seu tratamento na perspectiva revolucionária da comunidade.
*José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, autor de "Moleque de Fábrica" (Ateliê Editorial)
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