- O Globo
Aqui, a juventude negra desvia do extermínio por uma polícia ainda mais violenta
Foi num raro fim de semana de poucos compromissos na temporada de isolamento social imposto pela Covid-19 que devorei “Hollywood” (Netflix). Nenhuma ironia. Faz três meses, dias úteis, feriados, sábados e domingos têm sido intensos de trabalho, debates, encontros virtuais tornados urgentes pela virulência de uma crise sanitária agravada pela gestão pública esculhambada, indiferente, desrespeitosa que emana do Planalto. Abriguei-me na série para desviar da realidade crua, quase insuportável no Brasil de 2020.
“Hollywood” é assentada no escapismo do cinema pós-guerra, da iluminação ao figurino, da direção de arte à trilha sonora. Mas da atmosfera de sonho e romance típica das produções dos anos 1950, emergem também a hipocrisia e a opressão que a indústria audiovisual combate até hoje. Cheguei ao fim comovida com a trama e algo indignada com o que o mundo poderia ter se tornado, mas amarelou.
É sobre coragem a série, sobre fazer a coisa certa, com referência direta, absoluta, intencional ao filme de 1989 que consagrou Spike Lee — e ainda hoje, quando a juventude dos EUA marcha em protesto pelo assassinato de George Floyd, um homem negro, asfixiado pelo policial Derek Chauvin. O racismo faz da pele negra ameaça, mas quem usou o próprio corpo como arma mortal foi o homem branco.
“Hollywood” tem elenco e trama ancorados na diversidade içada ao topo da agenda de direitos deste século. Os protagonistas são um roteirista negro e gay (Jeremy Pope como Archie), uma negra aspirante a estrela de cinema (Laura Harrier, Camille), um veterano da Segunda Guerra candidato a ator (David Corenswet, Jack), um diretor de ascendência filipina (Darren Criss, Raymond), um galã homossexual (Jake Picking, encarnando Rock Hudson, concessão à vida real) — todos jovens — e uma mulher talentosa e capaz relegada à rainha do lar (Patti LuPone, Avis). São eles que reconstroem a trama, enfrentando uma indústria rendida ao racismo, ao machismo, à homofobia, ao assédio sexual.
A série reconta a história que Hollywood contaria ao planeta, se os personagens reais daquela época, em vez de calarem-se, reagissem como fazem os jovens de todos os tons de pele, origem, identidade de gênero e orientação sexual nas ruas das principais cidades americanas em repúdio aos oito minutos e 46 segundos da barbárie que vitimou o pai da pequena Gianna Floyd, de 6 anos. Eles marcham, enquanto o presidente Donald Trump caminha com seus iguais, homens brancos e idosos, retrato da velha política, e evoca uma lei de 1807 para ameaçar seu povo com as Forças Armadas.
Barack Obama, primeiro negro eleito e reeleito para a Casa Branca, fez o discurso presidencial que o sucessor ficou devendo. Ele entendeu o tamanho da mudança que os jovens americanos estão cobrando na mais volumosa e persistente onda de manifestações desde o assassinato do reverendo Martin Luther King, líder do movimento pelos direitos civis dos negros, em abril de 1968.
Aqui, a juventude negra, favelada, periférica, igualmente, desvia do extermínio por uma polícia ainda mais violenta — apenas no Rio, forças do estado tombaram 606 pessoas de janeiro a abril. Estão com seus corpos a serviço da assistência às famílias em vulnerabilidade alimentar, sanitária e financeira em decorrência da Covid-19. Não têm trégua. E insistem.
O sonho que o Doutor King vislumbrou mas não assistiu, a mudança que Obama prometeu mas não entregou podem, agora, se materializar. São aspirações que contagiam moças e rapazes na França, no Reino Unido, no Brasil. Se não matarem os jovens ou a disposição deles para, finalmente, fazer a coisa certa.
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