sexta-feira, 5 de junho de 2020

Opinião do dia – O Globo (Editorial)

Constituição não dá brecha para golpe de estado

A Carta foi redigida sob o princípio da subordinação do poder militar ao civil

O flerte do bolsonarismo com um regime militar aparece de várias formas, nenhuma dissimulada. Vai de declarações ameaçadoras de filhos, como a de Eduardo Bolsonaro sobre o “momento de ruptura” — que, segundo ele, ocorrerá, faltando apenas saber “quando” —, a manifestações periódicas, pequenas e barulhentas, pró-golpe, recepcionadas calorosamente pelo presidente Bolsonaro ao pé da rampa do Planalto.

O departamento de agitação e propaganda golpista desses grupos julga ter um suposto lastro legal para uma intervenção militar por meio de uma interpretação enviesada do artigo 142 da Constituição. Este estabelece que as Forças Armadas estão “sob a autoridade suprema do Presidente da República (...) e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem”. Numa leitura interessada deste trecho, Bolsonaro teria base legal para convocar as Forças Armadas nestas circunstâncias. E poderia avançar mais, abrangendo casos de “invasão de poderes”. Por exemplo, se o Planalto entender que o Supremo avança sobre seus espaços institucionais, algo nada preciso, mas que poderia desatar crises graves contra os interesses do país.

Seria um contrassenso se a Constituição de 1988, feita para sacramentar o retorno do poder civil e das garantias democráticas depois da ditadura militar, deixasse espaço para os militares se arvorarem como Poder Moderador, função que já foi exercida pelo imperador. Admita-se que o fato de os militares terem dado o golpe que em 1889 derrubou a Monarquia e instaurou a República possa ter cultivado neles uma cultura de tutela sobre a nação. Mas o tempo passou.

Esta discussão jurídico-política tem sido travada por juristas e em boa hora mereceu uma apreciação formal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), em um parecer que não deixa dúvidas. Fica evidente que assunto de tamanha importância como a relação entre os poderes e, em particular, o campo de ação das Forças Armadas, ainda mais em um país latino-americano, não pode ser abordado com base em uma frase da Carta ou parte dela.

É básico entender que a Constituição é um todo, não pode ser consultada com lupa, em busca de fragmentos de texto que atendam ao interesse do leitor. Como fazem sectários religiosos em livros sagrados. Também não se deve deixar de lado que a atual Constituição “estabeleceu um modelo institucional de subordinação do poder militar ao civil”, frisa a OAB. E o artigo 142, assim como todos os demais, está subordinado a este princípio.

Outro equívoco é achar que o presidente pode convocar as Forças Armadas para intervir no Legislativo e/ou no Judiciário. Não pode, porque iria contra o artigo 2º da Carta, sobre a separação dos poderes. Foi construído um sistemas de freios e contrapesos, como nas democracias modernas, pelo qual os impasses são resolvidos no Judiciário, e dúvidas constitucionais, no Supremo. A ideia do “golpe constitucional” é uma contradição em termos.

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