- Valor Econômico / Eu & Fim de Semana
A atual atitude em relação à Lei Áurea resultou de um equívoco de interpretação, por não se ter levado em conta a diversidade histórica do escravismo brasileiro
O Brasil já não celebra o 13 de maio, aniversário da Lei Áurea, de 1888. Em nome de uma data “mais autêntica”, a da lei assinada pela Princesa Isabel foi substituída pelo aniversário da morte de Zumbi (20 de novembro de 1695). Foi ele, simbolicamente, o grande líder revoltoso da Serra da Barriga, no Quilombo dos Palmares, em Alagoas. Quilombolas que resistiram por quase um século ao assédio escravista.
Quando pressões de motivação racial, religiosa, ideológica ou de outro tipo definem o rol de celebrações históricas, na verdade são elas instrumentos de manipulação do imaginário da sociedade inteira. São meios de usurpar e instrumentalizar a história contra o que é próprio da história, a pluralidade e a contradição.
A minimização da Lei Áurea decorre de uma carência ideológica tardia, de hoje, a de reconhecer no negro o protagonista da libertação de seus antepassados da escravidão.
Está em jogo, aí, o questionamento da pluralidade social e racial do que foi e tem sido a resistência à própria escravidão do negro e da luta mais ampla pela liberdade no país. Pardos e brancos também quiseram o fim da escravidão, como os monges de São Bento, que libertaram todos os seus escravos, em suas fazendas e mosteiros, em 1871.
A luta libertava o trabalhador, mas também o trabalho, e com eles a consciência de todos em relação à interpretação da história, à formação de nossa identidade como povo e nação.
No período colonial e no Império, foi o escravo negro personagem de uma resistência marcada por atos de fuga, individuais e grupais, que, na prática, eram atos de negar seu trabalho a quem o escravizava.
Na história do cotidiano e fragmentário da resistência escrava e na consciência do próprio cativo, há evidências esparsas de que nela o escravo personificava o trabalho e não, em primeiro lugar, uma raça. Ele resistia ao escravismo que o reduzia à condição de mercadoria, que o desumanizava porque nele negava o que ele, antropologicamente, era.
O escravo se expressava na consciência de que de sua escravidão tinha seu senhor, que era quem interpretava o comprometimento do processo produtivo nos diferentes atos de resistência. Encontrei documentos do século XVIII em que o senhor pagava propina a pai de santo para que tirasse o banzo de seus escravos e os livrasse de feitiço.
O escravo falava culturalmente por meio de atos e providências autoprotetivos de quem o escravizava. Até através do prejuízo econômico reconhecido no tronco em que era punido por sua eventual indisciplina.
Falava indiretamente ao negar o cumprimento das funções próprias da escravidão. O que se evidencia nas táticas que os senhores de escravos adotavam para amenizar o que o cativeiro representava, as chamadas brechas do regime escravista.
Senhores e escravos se completavam dialeticamente, na contradição que os unia e que os fazia, no fundo, iguais, como observou Joaquim Nabuco. O senhor, culturalmente, cativo de seu cativo, porque dele dependente. Não por acaso, a abolição, em 13 de maio de 1888, teve por finalidade libertar seus senhores, ao libertar o capital arriscadamente imobilizado no escravo. O que, historicamente, faz desse ato uma efeméride da lenta história da liberdade no país, uma efeméride de todos.
Na própria época da Lei Áurea, a categoria social de escravo não era, propriamente, unificada como categoria racial, a do negro. Os negros se distinguiam entre si pelos traços próprios dos diferentes e até conflitivos grupos étnicos de sua origem. Os senhores de escravos levavam em conta essas diferenças, ao valorizá-las diferencialmente, até no preço, quando os compravam e vendiam. Negro era categoria do vocabulário do branco, não do negro.
A atual atitude em relação à Lei Áurea resultou de um equívoco de interpretação, por não se ter levado em conta a diversidade histórica do escravismo brasileiro. Em seu artigo 1º, diz ela: “é declarada extinta desde a data desta lei a escravidão no Brasil”. A lei não se referia, necessariamente, apenas à escravidão negra, já que no Brasil houvera várias escravidões, reguladas por distintas normas, desde o século XVI.
A Lei Áurea resumia as circunscritas e limitadas abolições anteriores a da escravidão indígena, de 1757, e a negra, na Lei do Ventre Livre e na do Sexagenário. Extinguia toda forma de escravidão no país, a negra e, também, qualquer outra que subsistisse em formas de sujeição que pudessem ser caracterizadas como escravidão.
Ela não se referia a eventual caráter racial da escravidão, embora a do negro fosse a escravidão formalmente subsistente das escravidões que tivemos. Legalmente, ela extinguia todas as escravidões brasileiras, de diferentes raças e etnias.
*José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de "O Cativeiro da Terra" (Contexto).
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