segunda-feira, 3 de agosto de 2020

Alex Ribeiro - Encurtamento da dívida deixa país vulnerável

- Valor Econômico

Súbita mudança de humor dos mercados é risco para estratégia de emitir títulos públicos de curto prazo

Dois ex-presidentes do Banco Central alertaram, nos últimos dias, para os riscos da tendência de encurtamento do prazo da dívida pública, num ambiente de muita incerteza sobre a manutenção do teto de gastos, a principal âncora fiscal do país. O Tesouro Nacional pode até ganhar algum tempo emitindo títulos públicos de curto prazo, mais baratos. Mas ficará cada vez mais vulnerável a uma súbita mudança de humor dos mercados.

Arminio Fraga, da Gávea Investimentos, citou um número que sintetiza o perigo: pelo andar da carruagem, o Tesouro terá que captar no mercado o equivalente a 46% do Produto Interno Bruto (PIB) em 12 meses, para rolar os títulos que vencem no período, para pagar os juros da dívida e para bancar o altíssimo déficit primário do governo.

O fantasma é um eventual repeteco do que aconteceu em 2002, quando o próprio Arminio chefiava o BC. Os investidores se tornaram mais relutantes em financiar o governo, diante das dúvidas sobre o compromisso do então candidato Luis Inácio Lula da Silva com a austeridade fiscal. “O governo não conseguia vender papéis que venciam em 2003”, disse, referindo-se ao ano em que começaria o novo governo. A bomba só foi desarmada quando Lula se comprometeu a manter o ajuste das contas públicas.

O economista Affonso Celso Pastore explicou a dinâmica que tem empurrado o Tesouro para o encurtamento da dívida. Hoje, a taxa que o Tesouro paga para se financiar no curto prazo está entre 2% e 3% ao ano, enquanto que nas captações de dez anos paga algo como 7% ao ano. A diferença entre a taxa de curto prazo e a de longo prazo, de cerca de 4,5 pontos percentuais, representa justamente o risco fiscal.

A perspectiva é que a dívida bruta supere 100% do PIB e, até agora, o governo Bolsonaro não mostrou claramente como pretende manter o teto de gastos. Do ponto de vista do Tesouro, argumentou Pastore, faz sentido e é totalmente sensato captar no curto prazo, pagando juros menores. Com isso, reduz o custo implícito da dívida pública. Os juros que o Tesouro paga na dívida são um componente importante nos cálculos da dinâmica da dívida. A desvantagem é que o Tesouro fica com um perfil de dívida desfavorável, com vencimento em um prazo mais curto.

“Se isso for temporário, não tem muita importância”, afirmou ele, “Se isso se estender ao longo do tempo e você tiver um aumento de riscos, o Tesouro vai ter que seguir resgatando os títulos longos e colocando títulos curtos.” Para ele, o acúmulo desse risco é um alerta importante “para que o governo tenha juízo e retorne ao teto de gastos”. Os dados divulgados pelo Tesouro nos últimos dias mostram como o encurtamento da dívida pública vem ocorrendo de forma acelerada.

De dezembro para junho, o prazo médio da dívida baixou de 3,83 meses para 3,68 meses. Há pouco tempo atrás, o prazo médio da dívida era de 4,5 anos. Mas essa estatística deixa de fora a atuação do Banco Central por meio das operações compromissadas, que são operações de curtíssimo prazo que impactam a dívida bruta. No primeiro semestre, o déficit primário do governo central ficou em R$ 417,241 bilhões, em grande medida devido aos gastos extras e perda de arrecadação com a pandemia. Com forte volatilidade nos mercados, não foi possível ao Tesouro levantar dinheiro para financiar esses gastos. Desse déficit primário, apenas R$ 3,374 bilhões foram bancados com a emissão de dívida. A maior parte foi financiada por meio de operações compromissadas. Uma outra parte foi pela emissão de moeda, já que a população passou a demandar mais dinheiro em espécie na pandemia. No caso das compromissadas, não foi um financiamento direto do BC ao Tesouro. O Tesouro sacou dinheiro da conta única para pagar despesas e, em seguida, a autoridade monetária enxugou o excesso de dinheiro em circulação.

Do ponto de vista da dívida bruta, porém, faz pouca diferença. O débito aumentou e ficou com prazo mais curto. Os operações compromissadas de curtíssimo prazo subiram de 13% do PIB para 19% do PIB, enquanto que a dívida mobiliária subiu de 50,7% do PIB para 52,8% do PIB.

Na prática, o que aconteceu durante o primeiro semestre, num período de grande estresse, foi parecido com as operações de expansão quantitativa feitas por países desenvolvidos. O Banco Central ajudou a encurtar o prazo da dívida pública, tirando um pouco de pressão da curva de juros futuros. A diferença é que, no caso atual, o dinheiro para resgatar títulos do Tesouro veio da conta única. O Tesouro tem um bom fôlego para fazer essas operações, se necessário, já que a conta única tinha um saldo de R$ 997 bilhões em junho. Além disso, o Tesouro vai receber do BC um reforço dos lucros com operações com as reservas internacionais. Mas, se o quadro se prolongar e não houver recursos na conta única, em tese o Banco Central poderá comprar diretamente títulos em mercado, com os poderes que foram conferidos por uma emenda constitucional.

Um economista com longa experiência no Tesouro diz que uma dívida pública curta é sempre um problema, principalmente em um cenário de deterioração fiscal, dívida crescente e juros historicamente baixos. “Em 2002, o Tesouro teve que vender títulos pós-fixados de três meses com prêmios crescentes”, lembra. O Brasil tem alguns atenuantes importantes, como uma baixa participação de estrangeiros no financiamento da dívida e falta de opções de investimentos para investidores institucionais. Na época da hiperinflação, o governo conseguia rolar a dívida no overnight, mas pagava juros de 3% ao dia.

Agora, com os juros em 2,25% ao ano, o Tesouro já não tem a mesma facilidade de vender títulos pós-fixados.

O argumento de Arminio e Pastore é que o encurtamento do prazo da dívida pública pode ser uma estratégia para ganhar tempo enquanto são tomadas as medidas de ajuste fiscal. Mas esse tempo não pode ser desperdiçado. As medidas que podem sustentar o teto de gastos, como a PEC Emergencial e a reforma administrativa, parecem totalmente fora das prioridades do governo e do Congresso. Ao contrário, são muitas as forças para flexibilizar o teto de gastos.

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