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O Globo
Outros horizontes surgem diante de nós, com conceitos menos
culpados de liberdade
A
visão e revisão, na televisão, do espetáculo dirigido por Bárbara Paz, com
Lirinha, músico e poeta pernambucano, me levou, por oposição, a algumas ideias
sobre a cultura popular cultivada no Brasil, em meados do século passado. Não
vou voltar ao rico espetáculo, sobre o qual escrevi na semana passada. Mas ele
representou, para mim, alguma coisa que, partindo daquela tradição de mais de
60 anos, nos envia a novos horizontes de uma cultura nacional.
Para
os que não sabem ou não se lembram, a cultura popular da segunda metade do
século XX se tornou um estilo de criação, como tinha sido o Modernismo, anos
antes. Mais que isso, ela foi tratada, por nossos mais finos intelectuais, como
instrumento de conhecimento e transformação do país, nos revelando o que não
sabíamos sobre nosso povo e servindo de rumo para o que seríamos com o fim à
vista do subdesenvolvimento social e econômico. Inventores da poesia neoconcreta
se tornavam cordelistas, músicos de vanguarda compunham hinos de mobilização
política, gênios do teatro de costumes se dedicavam a esquetes de shows
sindicais.
A
cultura popular foi, no Brasil daquela geração, o que seria a contracultura nos
países do Primeiro Mundo, uma revolução cultural sincronizada ao que acontecia
em nossa política partidária e ideológica. Uma troca de Marcuse por Gramsci. O
que chamávamos de cultura popular adquiriu tal força de expressão entre nós que
se tornou a representação mais generosa do que era e do que pretendia ser o
país. Ela não só representava com pertinência o que se passava, como ainda se
tornava fundadora de novos costumes capazes de nos organizar como nação.
É
claro que, do bolero ao forró, da bossa nova ao tropicalismo, a canção popular
exerceu um papel de destaque e, às vezes, de liderança no desenrolar dessa
história. Mas a chama da cultura popular pegou fogo nos mais variados formatos
e plataformas, das artes plásticas ao cinema, da arquitetura ao teatro, da ficção
à poesia. Passando sobretudo pela recuperação de tradições esquecidas, do
folhetim e do rádio, das caravanas circenses e do teatro de revista, das quais
nós não nos lembrávamos que amávamos tanto e que foram reordenadas pela então
recente televisão. Mesmo que houvesse eventuais conflitos entre essas
manifestações, cada uma delas se julgava o cerne fértil da sociedade brasileira
daquele momento, a origem de uma nova nação.
De
tal modo essa ideia de cultura popular radical e construtiva se instalou entre
nós, que os sucessivos fracassos políticos, econômicos e sociais de nossos
governos passaram quase despercebidos, voluntária ou magicamente disfarçados
pelo que era, para os criadores e seu público, o Brasil de verdade. Só
recentemente nos demos conta da mediocridade do conjunto de homens públicos, de
direita ou de esquerda, que temos merecido, dos enganos a que eles nos levaram
em nome de ideias que não se traduziram, na prática, em bem-estar, justiça e
progresso permanentes para todos.
A
cultura popular acabava sendo o lugar de nossas queixas pelo fracasso de nossos
projetos. Navegantes embarcados em canoas sem rumo, alimentando a pretensão de
uma relevância que não tínhamos, não percebíamos a distância entre povo e
nação. Do horror da ditadura militar, passamos a uma democratização de
circunstâncias e compromissos, até chegar à tragédia que vivemos hoje. A
tragédia de um país sendo destruído pelo fascismo, para o qual a cultura é
inimiga prioritária, porque ela é movimento e aponta direções.
Não
digo que isso esteja mudando ou que vá necessariamente mudar, que encontramos
enfim o caminho que a bússola política descompensada do passado não nos
permitia encontrar. Mas outros horizontes surgem diante de nós, com conceitos
menos culpados de liberdade, uma fé maior em nossas ilusões pessoais, a certeza
de que somos responsáveis por todos mas não necessariamente por ninguém, que,
parodiando Baudrillard, somos produto do desejo e da necessidade. A diferença é
que, no passado do século passado, queríamos, sem saber que queríamos, que o
conjunto de nossas obras substituísse a nação. E hoje sabemos que cada um de
nós é uma nação.
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