terça-feira, 15 de dezembro de 2020

Daniela Chiaretti - O Brasil fora do tabuleiro do clima

- Valor Econômico

O mundo ruma para a descarbonização, mas o Brasil se perde no caminho

O tabuleiro climático global está sendo preparado para 2021. A União Europeia é hoje o competidor mais forte e capacitado - aprovou uma meta de corte de emissões de gases de efeito estufa mais ambiciosa do que já tinha, pretende descarbonizar a economia em 30 anos e, muito importante, traçou um plano para chegar lá. A China é o país com mais potencial de virar o jogo - anunciou a neutralidade em carbono em 2060, o mais tardar, e o pico das emissões antes de 2030, o que quer dizer que depois disso irá emitir menos. Os Estados Unidos, a maior potência econômica mundial, volta ao jogo em 36 dias e, como no xadrez, tornará pública sua abertura nos próximos meses. Vizinhos latino-americanos - Argentina, Colômbia, Peru e Uruguai -além do Chile, estão bem posicionados. O Brasil, indiscutivelmente um dos jogadores mais brilhantes mesmo quando ficava na defesa, está fora do tabuleiro.

Foi este o recado que recebeu ao apresentar uma meta climática sem transparência e sem discussão com a sociedade brasileira, de empresários a banqueiros, grandes exportadores, cientistas, representantes da sociedade civil. A meta é para toda a economia só no comunicado à ONU? Plano? Estratégia? Políticas públicas? Se existem, estão bem guardadas. O anúncio atabalhoado produziu a desconfiança de que o Brasil usa uma linha de base de emissões que não corta gases-estufa, mas permite ao país emitir mais. É preciso algum tempo para entender se foi isso mesmo, se foi um equívoco ou se o governo esqueceu as regras do jogo.

O Brasil não vem apresentando boas credenciais para sentar à mesa. Os últimos dados de desmatamento e os incêndios no Pantanal estão na memória internacional. Não é uma questão de narrativa, como diz o governo, é de conteúdo mesmo. Na Cúpula de Ambição Climática de sábado, embora diplomatas do Itamaraty tenham batido em todas as portas possíveis, o vídeo do presidente Jair Bolsonaro foi barrado. A meta de descarbonizar a economia em 2060 é apenas indicativa, o corte de emissões brasileiro gerou dúvidas. Com a Natureza, já disse o anfitrião António Guterres, secretário-geral das Nações Unidas, não se negocia.

Guterres pediu sábado que o mundo todo declare Estado de Emergência Climática. Só 38 países já o fizeram. “Se não mudarmos o curso, podemos caminhar para um aumento catastrófico de temperatura de mais de 3 °C neste século”, seguiu. Guterres lembrou que membros do G 20 estão gastando 50% mais em seus pacotes de estímulo para setores ligados à produção e consumo de combustíveis fósseis do que em energias de baixo carbono. Energias renováveis estão cada vez mais baratas e a ação climática pode criar milhões de novos empregos. “Mas a transição tem que ser justa”, disse o secretário-geral da ONU.

Transição justa é um termo criado pelo movimento sindical americano há 30 anos. A expressão foi cunhada por Anthony Mazzocchi ao perceber que trabalhadores de setores ligados a produtos tóxicos -que prejudicavam sua saúde e o meio ambiente- perderiam também sua fonte de renda diante do endurecimento da legislação ambiental. Anos depois, ao ficar claro que a queima de combustíveis fósseis causava o aquecimento global, o movimento de trabalhadores atualizou o conceito à mudança do clima. Sindicatos começaram a trabalhar para criar padrões e regras junto à Organização Internacional do Trabalho, a OIT. “Com a descarbonização haverá uma mudança enorme em todos os setores da economia e todos os trabalhos serão afetados”, diz Samantha Smith, que coordena o Centro de Transição Justa da International Trade Union Confederation (ITUC), que representa 207 milhões de trabalhadores em 162 países. “Não se pode deixar esta responsabilidade ao mercado, que pode dizer ‘seu trabalho desapareceu por causa da mudança do clima, sinto muito’. É preciso ter políticas de emprego, de treinamento, garantir proteção social, adiantar-se ao problema”, diz. A face mais conhecida da transição justa é a preocupação do governo alemão com o futuro dos trabalhadores das últimas minas de carvão. No Brasil, contudo, este tema sequer está no radar.

Uma das evidências da pandemia é que as pessoas se arriscam para manter o trabalho. Ameaçam o futuro buscando garantir o presente. Será preciso investigar o que move a atitude, mas em boa parte deve ser desespero, ignorância e anestesia à situação. O número de mortes absurdo da covid-19 não consegue comover mais, a menos que, infelizmente, pessoas próximas estejam na estatística. Por fatalidade, a crise climática tem todas essas características, e muito ampliadas. É a maior ameaça à humanidade no futuro, que já se sente no presente. A ciência aponta constantemente o potencial de catástrofes, que produz desespero ou certa paralisia em quem escuta. Para piorar o que já é muito ruim, alguns países são governados por líderes de pouca inteligência, que acreditam que a Terra é plana, o aquecimento não é provocado pela ação humana, o multilateralismo é uma conspiração e Papai Noel vive no Polo Norte -que não está derretendo coisa nenhuma.

Clima e desigualdade

Em entrevista há poucos dias ao Valor, Laurent Fabius, o ex-primeiro-ministro francês que presidiu a CoP 21, disse que a luta contra a mudança do clima é uma luta contra as desigualdades. Fabius foi o artífice do Acordo de Paris, e antes dos derradeiros dias de negociação, em dezembro de 2015, havia escutado gente em todo o mundo e registrado seus dramas. A crise do clima não afeta mais os mais pobres por algum castigo divino, mas porque aumenta a intensidade das dificuldades existentes. Quem vive nas encostas e morre em deslizamentos provocados por chuvas cada vez mais fortes não tem condições de morar em lugar melhor. Quem morre pelas doenças disseminadas pela alta temperatura não tem recursos para acessar médicos, hospitais e remédios. Quem sofre de desnutrição em secas mais severas não tem o que comer desde sempre.

A ironia da mudança do clima é que os países do Sul, mais afetados e que menos contribuíram para o fenômeno (embora hoje em dia o Brasil seja o sexto maior emissor), estão em desvantagem com recursos e, muitas vezes, com lideranças.

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