O
negacionismo de Bolsonaro funciona como sabotagem aos esforços governamentais
para conter a pandemia, inclusive os do Ministério da Saúde, cada vez mais
enrolado na própria burocracia
Não
há sanitarista no Brasil que não tenha estudado o caso da epidemia de meningite
ocorrida durante a década de 1970, em pleno regime militar, bem como a campanha
de vacinação que controlou a doença. A epidemia começou em Santo Amaro, na
Grande São Paulo, causando 2.500 mortes na capital paulista. Mesmo com a
incidência de casos saltando a cada ano, e com mortalidade oscilando de 12% a
14% dos doentes, o regime militar escondia os números da população e negava a
existência de epidemia, estabelecendo censura prévia aos veículos de
comunicação para que não divulgassem o que estava ocorrendo. Médicos e
sanitaristas não podiam dar entrevistas.
Só
a partir de 1974, quando a doença já grassava em áreas centrais de São Paulo, e
não havia mais como negar a situação, com hospitais em colapso, os generais
começaram a reconhecer o problema. Na época, o Brasil vivia o chamado “milagre
econômico” e os militares temiam que a divulgação da epidemia gerasse pânico na
população e prejudicasse as atividades econômicas.
Enquanto a meningite matava moradores da periferia, conseguiram abafar o assunto, mas, quando a epidemia atingiu bairros nobres de São Paulo, as autoridades foram obrigadas a admitir que havia uma crise de saúde. O estrago já estava feito. A incidência em São Paulo subiu de 2,16 casos por 100 mil habitantes, em 1970, para 5,90 casos em 1971. Em 1972, chegou a 15,64 diagnósticos por 100 mil habitantes e, em 1973, atingiu os 29,38 casos por 100 mil habitantes. A partir de 1974, houve uma explosão, motivada pela circulação do meningococo A, gerando uma sobreposição de surtos. Em 1974, a taxa de meningite chegou a 179,71 casos por 100 mil habitantes.
Com
a curva de casos em ascensão sobre áreas centrais do Sudeste e em Brasília, não
havia mais como impedir o fluxo da informação. Em março de 1974, o general
Ernesto Geisel assumiu o poder e reconheceu a existência do problema, criando a
Comissão Nacional de Controle de Meningite, que importou milhões de doses da
vacina. Somente em 1977, porém, a epidemia foi controlada. Havia se expandido
de tal forma que a campanha de vacinação teve de atingir 97% dos municípios
brasileiros. Se os nossos sanitaristas aprenderam com a epidemia de meningite,
parece que os militares no Ministério da Saúde esqueceram completamente a
experiência do passado, com a diferença de que, agora, vivemos numa democracia
e eles não têm mais como evitar a revelação dos fatos e a discussão dos
problemas.
Entretanto,
o presidente Jair Bolsonaro e o governador de São Paulo, João Dória, se
digladiam. É um jogo de perde-perde. O primeiro dispõe de recursos para vacinar
a população, mas não dispõe ainda de uma vacina, pois a de Oxford, já comprada
pelo governo brasileiro, não está pronta, e a da Pfizer, que havia sido
oferecida e fora desprezada, não está disponível, embora o governo federal
agora queira comprá-la. O segundo tem a vacina chinesa CoronaVac, produzida
pelo Instituto Butantan, mas precisa ainda de aprovação da Anvisa, que negaceia
os prazos e tenta mudar as regras do jogo.
Em
algum momento, a realidade falará mais alto. Com a velocidade com que a segunda
onda está se propagando, será inevitável a adoção de novas medidas de
distanciamento social, para evitar o colapso do sistema hospitalar. O reiterado
negacionismo de Bolsonaro, porém, funciona como uma espécie de sabotagem aos
esforços governamentais para conter a pandemia, inclusive os do próprio
Ministério da Saúde, cada vez mais enrolado na própria burocracia. Uma campanha
de vacinação em massa precisa de mobilização da sociedade, de convencimento da
necessidade e da eficácia da vacina. Retardar a aprovação da vacina produzida
pelo Butantan, porque seria um êxito de Doria, e desacreditar sua eficácia, em
razão de sua procedência chinesa, é um tiro no próprio pé.
Ontem, a Anvisa divulgou uma nota mudando de 72 horas para 10 dias o prazo de aprovação das vacinas, além de fazer referência a supostas implicações geopolíticas de cada vacina, que precisariam ser analisadas, o que levou o governo de São Paulo a desistir de pedir o uso emergencial da vacina e apostar na sua iminente aprovação definitiva, pela agência reguladora da China. É um contrassenso sob todos os aspectos: praticamente todas as vacinas que estão sendo desenvolvidas no mundo têm algum nível de participação da China, pois foram os cientistas chineses que forneceram o sequenciamento genético utilizados nas pesquisas.
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