'A saga dos intelectuais franceses' e 'Roland Barthes: biografia' retratam a era de ouro do pensamento francês
Bolívar Torres / O Globo, 25/09/2021
RIO — Houve um tempo em que Jean-Paul
Sartre (1905-1980) enchia auditórios em todo o globo, arrastando multidões como
uma estrela de rock. E em que brasileiros aproveitavam a vinda de Michel
Foucault (1926-1984) ao país para perguntar ao autor de “Vigiar e punir” como
derrubar os militares no poder. Durante décadas, os pensadores franceses foram
uma espécie de oráculo, encarnando no imaginário social um modelo de pensar,
articular ideias e engajar-se politicamente. Tudo o que diziam virava manchete,
dos cafés parisienses para o mundo.
Dois livros recém-lançados por aqui dão uma dimensão da trajetória dessas figuras no passado, e seus resquícios em nosso tempo. Essencial para entender o século XX, o filósofo e semiólogo Roland Barthes tem sua trajetória esmiuçada pela crítica literária Tiphaine Samoyault. Através de materiais inéditos, “Roland Barthes: biografia” (Editora 34) propõe uma nova visão sobre aquele que é visto tanto como um pai quanto como um filho de seu próprio tempo (e que, por ironia, odiava biografias).
Já “A saga dos intelectuais franceses”, de François Dosse, é um ambicioso retrato cronológico das ideias construídas na nação de Sartre na segunda metade do século XX. O primeiro volume, que sai no Brasil pela Estação Liberdade, começa na véspera do fim da Segunda Guerra e vai até o disruptivo ano de 1968, revisitando personalidades como Simone Beauvoir e Albert Camus. O segundo, com previsão de lançamento para 2022, termina em 1989, com a queda do Muro de Berlim. Entre os protagonistas desta era estão nomes como a dupla Deleuze-Guattari, Jacques Derrida e, claro, Foucault.
Dosse reconstrói um percurso de ilusões
perdidas. Mostra como o modelo sartreano de pensador universal que opina sobre
tudo, consolidado logo após a guerra, vai sofrendo mutações após sucessivas
decepções políticas no plano internacional, como as intervenções no Pacto de
Varsóvia em 1968. Ainda que se encerre no fim dos anos 1980, o livro é uma
referência para repensar hoje o papel e o lugar do intelectual, que muitos veem
em crise em um mundo atacado pelo anti-intelectualismo e o terraplanismo.
— Que seja na França ou no Brasil, o
intelectual entrou na beirada do século XX como órfão de um projeto de
emancipação — diz Dosse, em entrevista ao GLOBO. — Mesmo sem bússola, ele não
deveria ceder à tentação do ceticismo ou do decadentismo. Ele não apenas tem um
papel maior, que é redefinir um projeto para sair dessa paisagem de ruínas,
como deve também dar conta dos erros do passado.
Para Dosse, vale a pena olhar — criticamente — para o século XX, em busca de soluções. Mas, após tantas mutações, o que restou da velha figura do pensador francês nos dias de hoje? A que ponto ela pode ainda nos inspirar?
Segundo o professor de filosofia da USP, Vladimir Safatle, é preciso
levar em consideração que este modelo não é mais francês, pois teria migrado
para os Estados Unidos. Quem, na visão dele, encarnaria hoje a figura do
intelectual clássico é a americana Judith Butler, por seu engajamento em temas
políticos e sua articulação entre o saber da universidade e a sociedade. Por
outro lado, Safatle acredita que a intelectualidade não está em crise — ela, na
verdade, sempre esteve.
— A própria ideia de crise é um elemento
constitutivo dessa figura, que sempre vê o presente com inquietude — diz o
filósofo, que é professor convidado da Universidade Paris X, na França. — O próprio
Sartre encarnou isso. Esse intelectual é um espaço de contradição, que briga
contra si mesmo. Os bons sempre encaram a crise.
Outra mudança significativa em nosso tempo
é o fim de revistas como a “Les temps modernes”, capitaneada por Sartre, que
foram fundamentais na divulgação das ideias no século XX. Elas são personagens
dessa saga de 50 anos tanto quanto as personalidades que publicaram em suas
páginas. O filósofo Pierre Nora, que criou a a revista “Le Débat”, disse certa
vez que a vida intelectual sem essas publicações se assemelhariam a um
encefalograma plano.
Nos final dos anos 1980, o palco do debate
migrou para os estúdios de TV, pavimentando o caminho para um tipo de
intelectual midiático, sem grande background na universidade, e que não apenas
foi criado pela mídia como também “existe só para ela”, segundo Safatle. Desse
contexto saíram nomes como Bernard-Henri Lévy, que vivem sob os holofotes e têm
bom trânsito com políticos (ele, por exemplo, foi uma influência de peso na
decisão do ex-presidente Nicolas Sarkozy de invadir a Líbia em 2007).
Agora, com a emergência da internet, as
redes sociais se tornaram o “fator determinante” para um novo deslocamento do
lugar do pensador, acredita o filósofo Francisco Bosco. A figura do influencer
seria um último capítulo deste esvaziamento do intelectual?
— As redes democratizaram a opinião e
tornaram qualquer pessoa, independente de sua formação, um possível intelectual
público — diz ele. — Dessa confluência surgiram personagens como um Felipe
Neto, por exemplo, cujas posições políticas têm uma incidência muito maior do
que a dos intelectuais públicos propriamente ditos, isto é, pessoas com
histórico de trabalho conceitual, voltado à intervenção no debate mais amplo.
É difícil imaginar um Sartre tuitando, ou
um Roland Barthes se convertendo em tiktoker. Ainda assim, a arena agora é a
mesma para todo mundo, com phd ou não. Muitas vezes, vence não quem tem os
melhores argumentos, mas quem fala mais alto — ou faz as melhores dancinhas.
Autora de “O luto entre clínica e política”, escrita a partir da filosofia de
Judith Butler, a pesquisadora Carla Rodrigues acredita que o ambiente diluído e
ruidoso da internet trouxe uma “disputa de legitimidade”. Para ela, nesse
cenário, o intelectual viciado em holofotes cumpre um “desserviço”, porque se
descompromete da crítica em nome da popularidade.
— Para se tornar uma grande referência,
esse intelectual abandona a função de incomodar, porque não dá para ser popular
e incomodar ao mesmo tempo — diz Rodrigues. — O ato de questionar é o que
mantém vivo o debate. Infelizmente, muitos desses debatedores se encantaram
pela própria voz.
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