domingo, 26 de setembro de 2021

Novos livros ajudam a repensar os modelos clássicos de intelectual em tempos midiáticos

'A saga dos intelectuais franceses' e 'Roland Barthes: biografia' retratam a era de ouro do pensamento francês

Bolívar Torres / O Globo, 25/09/2021

RIO — Houve um tempo em que Jean-Paul Sartre (1905-1980) enchia auditórios em todo o globo, arrastando multidões como uma estrela de rock. E em que brasileiros aproveitavam a vinda de Michel Foucault (1926-1984) ao país para perguntar ao autor de “Vigiar e punir” como derrubar os militares no poder. Durante décadas, os pensadores franceses foram uma espécie de oráculo, encarnando no imaginário social um modelo de pensar, articular ideias e engajar-se politicamente. Tudo o que diziam virava manchete, dos cafés parisienses para o mundo.

Dois livros recém-lançados por aqui dão uma dimensão da trajetória dessas figuras no passado, e seus resquícios em nosso tempo. Essencial para entender o século XX, o filósofo e semiólogo Roland Barthes tem sua trajetória esmiuçada pela crítica literária Tiphaine Samoyault. Através de materiais inéditos, “Roland Barthes: biografia” (Editora 34) propõe uma nova visão sobre aquele que é visto tanto como um pai quanto como um filho de seu próprio tempo (e que, por ironia, odiava biografias).

Já “A saga dos intelectuais franceses”, de François Dosse, é um ambicioso retrato cronológico das ideias construídas na nação de Sartre na segunda metade do século XX. O primeiro volume, que sai no Brasil pela Estação Liberdade, começa na véspera do fim da Segunda Guerra e vai até o disruptivo ano de 1968, revisitando personalidades como Simone Beauvoir e Albert Camus. O segundo, com previsão de lançamento para 2022, termina em 1989, com a queda do Muro de Berlim. Entre os protagonistas desta era estão nomes como a dupla Deleuze-Guattari, Jacques Derrida e, claro, Foucault.

Dosse reconstrói um percurso de ilusões perdidas. Mostra como o modelo sartreano de pensador universal que opina sobre tudo, consolidado logo após a guerra, vai sofrendo mutações após sucessivas decepções políticas no plano internacional, como as intervenções no Pacto de Varsóvia em 1968. Ainda que se encerre no fim dos anos 1980, o livro é uma referência para repensar hoje o papel e o lugar do intelectual, que muitos veem em crise em um mundo atacado pelo anti-intelectualismo e o terraplanismo.

— Que seja na França ou no Brasil, o intelectual entrou na beirada do século XX como órfão de um projeto de emancipação — diz Dosse, em entrevista ao GLOBO. — Mesmo sem bússola, ele não deveria ceder à tentação do ceticismo ou do decadentismo. Ele não apenas tem um papel maior, que é redefinir um projeto para sair dessa paisagem de ruínas, como deve também dar conta dos erros do passado.

Para Dosse, vale a pena olhar — criticamente — para o século XX, em busca de soluções. Mas, após tantas mutações, o que restou da velha figura do pensador francês nos dias de hoje? A que ponto ela pode ainda nos inspirar?

Segundo o professor de filosofia da USP, Vladimir Safatle, é preciso levar em consideração que este modelo não é mais francês, pois teria migrado para os Estados Unidos. Quem, na visão dele, encarnaria hoje a figura do intelectual clássico é a americana Judith Butler, por seu engajamento em temas políticos e sua articulação entre o saber da universidade e a sociedade. Por outro lado, Safatle acredita que a intelectualidade não está em crise — ela, na verdade, sempre esteve.

— A própria ideia de crise é um elemento constitutivo dessa figura, que sempre vê o presente com inquietude — diz o filósofo, que é professor convidado da Universidade Paris X, na França. — O próprio Sartre encarnou isso. Esse intelectual é um espaço de contradição, que briga contra si mesmo. Os bons sempre encaram a crise.

Outra mudança significativa em nosso tempo é o fim de revistas como a “Les temps modernes”, capitaneada por Sartre, que foram fundamentais na divulgação das ideias no século XX. Elas são personagens dessa saga de 50 anos tanto quanto as personalidades que publicaram em suas páginas. O filósofo Pierre Nora, que criou a a revista “Le Débat”, disse certa vez que a vida intelectual sem essas publicações se assemelhariam a um encefalograma plano.

Nos final dos anos 1980, o palco do debate migrou para os estúdios de TV, pavimentando o caminho para um tipo de intelectual midiático, sem grande background na universidade, e que não apenas foi criado pela mídia como também “existe só para ela”, segundo Safatle. Desse contexto saíram nomes como Bernard-Henri Lévy, que vivem sob os holofotes e têm bom trânsito com políticos (ele, por exemplo, foi uma influência de peso na decisão do ex-presidente Nicolas Sarkozy de invadir a Líbia em 2007).

Agora, com a emergência da internet, as redes sociais se tornaram o “fator determinante” para um novo deslocamento do lugar do pensador, acredita o filósofo Francisco Bosco. A figura do influencer seria um último capítulo deste esvaziamento do intelectual?

— As redes democratizaram a opinião e tornaram qualquer pessoa, independente de sua formação, um possível intelectual público — diz ele. — Dessa confluência surgiram personagens como um Felipe Neto, por exemplo, cujas posições políticas têm uma incidência muito maior do que a dos intelectuais públicos propriamente ditos, isto é, pessoas com histórico de trabalho conceitual, voltado à intervenção no debate mais amplo.

É difícil imaginar um Sartre tuitando, ou um Roland Barthes se convertendo em tiktoker. Ainda assim, a arena agora é a mesma para todo mundo, com phd ou não. Muitas vezes, vence não quem tem os melhores argumentos, mas quem fala mais alto — ou faz as melhores dancinhas. Autora de “O luto entre clínica e política”, escrita a partir da filosofia de Judith Butler, a pesquisadora Carla Rodrigues acredita que o ambiente diluído e ruidoso da internet trouxe uma “disputa de legitimidade”. Para ela, nesse cenário, o intelectual viciado em holofotes cumpre um “desserviço”, porque se descompromete da crítica em nome da popularidade.

— Para se tornar uma grande referência, esse intelectual abandona a função de incomodar, porque não dá para ser popular e incomodar ao mesmo tempo — diz Rodrigues. — O ato de questionar é o que mantém vivo o debate. Infelizmente, muitos desses debatedores se encantaram pela própria voz.

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