Historiador das ideias, François Dosse faz amplo panorama da era de ouro do pensamento francês
Bolívar Torres / O Globo, 25/09/2021
RIO — François
Dosse é o que se convencionou chamar de “historiador das ideias”, um
campo de estudos recente que trata da evolução das ideias ao longo dos anos.
Após biografar diversos grandes intelectuais franceses, como Paul Ricoeur,
Pierre Nora e a dupla Deleuze-Guattari,
ele se lançou em um desafio monumental: reconstruir cinco décadas de
inteligência francesa em seu livro “A
saga dos intelectuais franceses (1944-1989)”.
O primeiro volume, que sai no Brasil pela
Estação Liberdade, começa na véspera do fim da Segunda Guerra e vai até o
disruptivo ano de 1968, revisitando personalidades como Simone
Beauvoir e Albert
Camus. O segundo, com previsão de lançamento para 2022, termina em 1989,
com a queda do Muro de Berlim. Entre os protagonistas desta era estão nomes
como Gilles Deleuze, Jacques Derrida e, claro, Foucault.
Quando foi professor de Emmanuel Macron no
Instituto de Estudos Políticos de Paris (Sciences Po Paris), em 1998, ele o
apresentou ao filósofo Pierre Nora, que acabou virando uma
espécie de mentor do futuro presidente. Dosse escreveu um livro, “Le
Philosophe et le président” (2017), detalhando a troca intelectual dos dois.
O que significa exatamente
uma História das ideias?
Tendo há mais de 30 anos como objeto de estudo a vida das ideias, analisei o funcionamento delas sob diferentes ângulos, tanto seus fracassos quanto seus sucessos. Nesse novo livro, tentei dar uma visão mais panorâmica, global e sintética dos últimos 50 anos do século XX. O que me interessa nesta saga, é o desdobramento cronológico da vida intelectual entre dois polos. O polo da história das ideias, da história filosófica, de um lado, e o pólo da sociologia das ideias, do outro. Você tem que pensar neles juntos. Em vez de separar a descrição das escolas de pensamento, as relações sociais e a análise dos textos, procuro correlacionar, em conjunção significante, os textos e seu contexto.
Qual é o modelo de
intelectual que se destaca logo após a Segunda Guerra?
No imediato pós-guerra, dominava a figura
do intelectual profético, onisciente. Sartre era o símbolo. Ele se dirigia à
Humanidade inteira, pretendia apreender o sentido da história, o que não o
impediu de se deixar cegar por seus entusiasmos. Sua filosofia da liberdade e
do engajamento, o existencialismo, correspondeu a um momento de otimismo histórico
ao longo do qual se pensava que a história tinha uma direção, a da emancipação
inelutável da Humanidade. Segundo Sartre, o homem devia então afirmar a sua
humanidade se engajando para fazer triunfar a emancipação coletiva.
Como a figura do intelectual
evoluiu até o fim do século?
Meu livro traça a jornada de ilusões
perdidas, de uma crença teleológica que se desvaneceu em um novo regime de
historicidade. Ao longo dos anos 1970, ao longo de sucessivos desencantamentos,
esta figura do intelectual onisciente foi aos poucos cedendo à do intelectual
específico, que, mais modestamente, colocou as suas aptidões, os seus saberes a
serviço da cidade e dos seus. O intelectual específico lança luz sobre as
questões de seu tempo e inspira as decisões a serem tomadas pelos líderes
políticos. Michel Foucault e Gilles Deleuze definiram essa nova tarefa para o
intelectual, e a criação por Foucault do Grupo de Informação Prisional (GIP) é
emblemática de uma postura mais pragmática, mais modesta da função do
intelectual.
Qual foi o papel das revistas
de ideias no século XX, como Les temps modernes, capitaneada por Sartre?
Les temps modernes foi um modelo de jornal
generalista e de vanguarda. Pierre Nora, que criou o jornal Le Débat em 1980,
disse certa vez que a vida intelectual sem esses periódicos seria como um
encefalograma plano. Na verdade, o verdadeiro coração que bate nesta saga dos
intelectuais não é tanto o dos indivíduos, que contam muito, é claro, nem o da
lógica dos campos dos discípulos de Bourdieu, mas o das revistas, de seus
projetos, de seus colaboradores, seu lugar nas polêmicas. Eles são de todas as
convicções, esquerda e direita, seculares ou confessionais, e todas desempenham
um papel importante na vida das ideias que elas se esforçam para refletir,
incitar e declinar.
A partir dos anos 1980, o
palco do intelectual mais midiático migra para a TV e, hoje, as redes sociais.
Quais são as possibilidades e limitações desta mídia?
A internet promove uma democracia menos
hierárquica, menos acadêmica e mais horizontal. No entanto, essa falta de
diferenciação na expressão de pontos de vista tem efeitos perversos, com
manipulações conspiratórias. Promove um pensamento de imediatismo, só que a
complexidade dos problemas que enfrentamos exige cada vez mais reflexão. Nesse
sentido, os intelectuais veem seu papel e sua responsabilidade aumentados, pois
são os mediadores designados entre a opinião, a doxa (uma espécie de senso comum) e
o saber adquirido dos especialistas, e essa mediação é fundamental para o
funcionamento de uma democracia cidadã.
Qual é o papel de um
intelectual hoje?
Seja na França ou no Brasil, o intelectual
entrou na beirada do século XX como órfão de um projeto de emancipação. Mesmo
sem bússola, ele não deveria ceder à tentação do ceticismo ou do decadentismo.
Ele não apenas tem um papel maior, que é redefinir um projeto para sair dessa
paisagem de ruínas, como deve também dar conta dos erros do passado. Ao
revisitar a segunda metade século XX, ele pode aprender e redescobrir
possibilidades não comprovadas, e a partir daí desempenhar um papel de
vigilância, para nos lembrar como essa herança nos permite pensar diferente.
Emmanuel Macron se manteve
fiel ao legado de seu mestre, Pierre Nora?
Macron foi meu aluno e o achei muito brilhante e simpático. O filósofo Paul Ricoeur procurava um jovem para ajudar a finalizar o seu grande livro “Memória, história, esquecimento”. Coloquei-os em contato, o que deu origem a quatro anos de discussões muito frutíferas entre eles. Hoje, infelizmente, avalio o quanto o exercício do poder de Macron se distanciou dos principais ensinamentos de Ricoeur e estou preparando uma nova obra, agora crítica, para o início de 2022. Se é inevitável que haja lacunas entre um programa e sua implementação, o contraste é tal entre as ambições do candidato presidencial e a eficácia de sua política que podemos opor o que nele vem da conquista do poder e o que vem do exercício do poder.
Nenhum comentário:
Postar um comentário