O Globo
Durante um ano, escrevi todos os dias sobre
a pandemia do coronavírus. Com a chegada da vacina, voltei a viajar e pensava
que estávamos caminhando para o fim de toda a tragédia.
A vacina funcionou para mim como uma
centelha de esperança. E, como dizia Albert Camus, “depois que a menor centelha
de esperança se tornou possível, acabou o domínio da peste”.
Para muitos de nós, esta pandemia é uma experiência
única. Não há mais sobreviventes da Espanhola. O ebola foi contido na África
Ocidental e vencido nos últimos meses de 2015.
De certa forma, tivemos sorte. Na chegada
do vírus, os cientistas já haviam passado por quatro fases, a julgar pelo livro
“O gene: uma história íntima”, de Siddhartha Mukherjee.
Já se conhecia a base celular da
hereditariedade, os cromossomos. Em seguida, definiu-se a base molecular da
hereditariedade: a dupla hélice de DNA. Antes de sequenciar o genoma humano,
foi possível desenvolver o mecanismo pelo qual as células leem as informações
contidas em genes.
Os cientistas aprenderam a fazer o mesmo, com a invenção da tecnologia de clonagem e sequenciamento do DNA recombinante. Na minha visão de leigo, consigo imaginar que daí foi possível produzir uma mensagem para que nossas células combatessem o vírus.
Com essa base de conhecimento, dificilmente
outro vírus não terá como antídoto essa nova maneira de fazer vacina. Vivemos
um triunfo da ciência, e não me refiro ao debate com o terraplanismo, que teve
tanto peso no Brasil.
Penso em algo mais amplo, no crescimento da
terceira cultura, por meio da qual cientistas e pensadores vão substituindo o
pensamento tradicional na definição do que somos e de quem somos.
Tenho algumas léguas a andar, antes de
chegar a grandes conclusões sobre isso. Esquematicamente, vejo que a religião
perdeu importância num certo momento histórico, e o mundo desencantou. A
política tomou seu lugar, deslocando o paraíso celeste para as possibilidades
de um mundo terreno.
Com o declínio da política, a ciência
avança para ocupar o lugar e pode preencher o espaço que a religião ocupou no
passado. Claro que, por suas características, ela abre margem para crítica e
contestação desse papel.
Sei apenas que a pandemia precipitou um
processo que já era visível, até nas livrarias, com o êxito dos títulos de
divulgação científica: o mundo está sendo reexplicado pela terceira cultura,
destinada a preencher essa lacuna entre intelectuais literários e cientistas.
Essas coisas me vêm à cabeça meio
desordenadamente, mas tenho minhas razões. Sempre considerei que o grupo de
risco diante do coronavírus era definido biologicamente, idosos ou portadores
de algumas doenças.
Mas, examinando as pesquisas da Oxfam,
mostrando como os pobres ficaram mais pobres na pandemia e os muitos ricos
enriqueceram, lembrei-me da incidência da Covid-19 em áreas populares e pensei:
o nível de renda é um forte critério para definir grupo de risco.
Em vez de pensar na religião,política e
ciência como etapas estanques, imagino que talvez um diálogo entre as três
pudesse nos levar mais adiante.
E olha que não fomos tão longe. No
princípio da pandemia, pensávamos que surgiria dela um mundo mais solidário. Ao
chegarmos à fase quase terminal, constatamos que as diferenças se acentuaram.
O mundo em 2015 se uniu para conter e
derrotar o ebola na África Ocidental. Agora, com a Covid-19, ele se contraiu no
nacionalismo de vacinas: enquanto alguns países têm excesso, outros não têm nem
geladeiras para armazená-las.
Na pandemia de nossas vidas, vejo cada vez
mais próximo o cenário do filme “Blade Runner”, onde miséria e alta tecnologia
convivem com naturalidade.
É muito perturbador.
Nenhum comentário:
Postar um comentário