segunda-feira, 24 de janeiro de 2022

Joaquim Ferreira dos Santos: O que Nara tem a ver com Elza

O Globo

Uma morou de frente para o mar de Copacabana e a outra chafurdou os pés da infância na brincadeira de caçar caranguejo no charco da Vila Vintém. No entanto, na todavia das águas cariocas, elas acabaram se parecendo e, semana passada, unidas pela misteriosa música do Destino, Nara Leão e Elza Soares encontraram-se novamente.

No mesmo momento em que Nara renasce, celebrada num documentário que a coloca no devido altar das deusas da canção, Elza se despede e parte para a eternidade. Uma cantava baixinho, a outra vibrava os mais altos tons da melodia. Cada uma no seu contracanto, “Lindoneia” e a “Maria da Vila Matilde”, ajudaram a inventar uma mulher brasileira.

Elas estavam juntas em 20 de maio de 1960, no palco do teatro da faculdade de arquitetura da Praia Vermelha, num dos primeiros shows da bossa nova, o movimento que em seguida desprezariam. Já dá para imaginar as duas se reencontrando agora, na nuvem bordada de sianinhas para onde vão as grandes cantoras, e, às gargalhadas, se perguntando o que, diabos, faziam naquele show?

A música brasileira teve irmãs de sangue como Aurora e Carmen Miranda, Linda e Dircinha Batista. Nara e Elza são de outra irmandade, aquela das cantoras corajosas que mudaram o disco e aproveitaram para avançar na rotação da vitrola feminista. Moviam-se pelo vento ateu de suas convicções.

 “Musa da bossa nova”, Nara deixou o papo de sol-sal-sul de lado e acendeu as velas, foi cantar a realidade social do sambista de morro. Trocou Ronaldo Bôscoli por Zé Kéti. “Mulata assanhada”, Elza passava com graça e tirava o sossego do homem branco, até perceber que era o rebolado da carne mais barata do mercado. Declarou-se então “a mulher do fim do mundo”.

Na vida real, Nara e Elza eram as duas faces da inflacionada moeda da desigualdade brasileira, duas mulheres de origem social muito diversa. A patricinha começou a se profissionalizar no show “Pobre menina rica”, apresentado entre as mesas de pratos cheios do chiquérrimo restaurante Au bom Gourmet, em Copacabana. Foi um pouquinho depois de a lavadeira cheia de filhos declarar, no primeiro microfone que viu à sua frente, estar chegando diretamente de uma civilização contrária – era uma ET do Planeta Fome. 

O mundo hoje ouve música no Spotify, pulando aflito para a próxima faixa sem que a anterior tenha avançado dos primeiros acordes. Procura-se o já assimilado pelas orelhas. Para esses apressados, os novos surdos digitais, Nara e Elza parecem ter em comum apenas o mesmo número de letras em seus lindos nomes próprios. E, no entanto, apesar de uma ter feito o último disco com hits dos musicais de Hollywood e a outra, com rap da periferia paulista, elas eram almas gêmeas. Cantaram a mesma música.

Nara e Elza estiveram juntas no mundo de fantasia das cantoras de rádio, e se de noite embalaram nossos sonhos com canções de amor, cheias de açúcar e com afeto, de manhã vieram nos acordar para o carcará da realidade. Dolores, Nora e Aracy já tinham sofrido divinamente todas as dores do amor. Chegava a hora de inventar a mulher que desse o troco e, ao falar da vida, protestasse contra as injustiças dela.

Nara foi a primeira a botar a palavra “liberdade” na capa de um disco. Elza inaugurou o black-power na cabeleira da afirmação racial. Tentaram melhorar, com arte genial e personalidade forte, o Planeta Desigualdade de onde vieram.

 

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