Valor Econômico
Presidente Lula começará seu governo já tendo
que propor respostas para resolver endividamento das famílias
Com a aterrissagem da covid-19 em solo
brasileiro, a necessidade das quarentenas e do fechamento da maior parte do
setor de serviços acabou gerando enorme impacto no orçamento das famílias,
especialmente nas de baixa renda. É verdade que o Auxílio Emergencial chegou a
mais do que compensar a perda de renda do salário durante certo período, mas
foi concedido de maneira descontínua e incerta. Pressionadas pelas condições
econômicas adversas, as famílias se endividaram. Assim, houve uma espécie de
corrida por crédito para garantir a sobrevivência na severa crise sanitária,
ainda mais diante da redução dos juros à época.
Contudo, com o passar do tempo a pandemia acabou trazendo em sua esteira substancial aumento da inflação. Com intuito de debelar a cavalgada inflacionária para a casa de dois dígitos, o Banco Central agiu rápido e promoveu alta expressiva da taxa de juros, revertendo o cenário anterior. Com o crédito mais caro, e por estar superendividada, a população com menor nível de renda sentiu o golpe e passou a enfrentar grandes dificuldades financeiras.
Por causa disso, o sistema financeiro
nacional enfrenta o nível recorde de 68,4 milhões de pessoas inadimplentes,
segundo dados do Serasa Experian de setembro deste ano. Não à toa, o
superendividamento das famílias virou tema de primeira linha na pauta socioeconômica
do embate eleitoral que acaba de se encerrar.
Pesquisadores do Boletim Macro do FGV Ibre
realizaram uma radiografia detalhada dessa onda de endividamento das famílias
brasileiras a partir da base de dados do Banco Central conhecida como Sistema
Central de Riscos (SCR). Trata-se de um banco de dados com informações
remetidas mensalmente por todas as instituições financeiras - bancos e fintechs
- ao Banco Central, referente às operações de crédito acima de R$ 200,
abrangendo empréstimos, financiamentos, avais e fianças.
Com base nessa rica base de dados, a turma
do Boletim Macro levantou o percurso traçado para o superendividamento das
famílias mais pobres nas modalidades mais onerosas de crédito, levando à
disparada da inadimplência, bem mais concentrada nas faixas de renda mais
baixas do que nas mais altas. Para fins de análise, os pesquisadores
consideraram como “baixa renda” os tomadores de crédito na faixa que vai dos
sem rendimento aos que ganham um máximo de dois salários mínimos. Já a “alta renda”
é composta pelo grupo com renda de cinco salários mínimos para cima.
No período compreendido entre janeiro de
2020, pouco antes da pandemia, e julho de 2022, no segmento da baixa renda
houve aumento de 68,5% no endividamento em cartão de crédito e de 131% no
empréstimo pessoal sem garantias. Em julho deste ano, as operações com cartões
para a baixa renda atingiram saldo de R$ 114,3 bilhões, e as de empréstimo
pessoal chegaram a R$ 46,9 bilhões. Já a inadimplência da baixa renda nessas
duas modalidades oscilou bastante desde o início da pandemia, mas vem subindo
preocupantemente no período mais recente. A do cartão de crédito saiu de 7% em
maio de 2021 (mínima mais recente) para 13% em julho de 2022. E a dos
empréstimos pessoais foi de 6% em outubro de 2021 para 10% em julho de 2022.
Fundamental notar que, dentre as disponíveis no país, essas duas linhas de
crédito são as mais onerosas para os tomadores.
O panorama na alta renda é distinto. No
mesmo período acima considerado, o crescimento da dívida nas modalidades de
cartão de crédito e empréstimos pessoal sem garantias foi de, respectivamente,
56% e 62%, atingindo os níveis de R$ 187,9 bilhões e R$ 120,6 bilhões. Já a
inadimplência trafegou em níveis mais baixos do que os relativos aos da baixa
renda, a despeito de ter tido alta recente. A inadimplência referente a cartões
de crédito saiu de 2% para 3% entre janeiro e julho de 2022, enquanto a do
crédito pessoal seguiu a mesma trajetória, mas a partir de fevereiro deste ano.
Como sintetizam pesquisadores do FGV Ibre,
apesar de representarem apenas cerca de um quinto do volume de crédito para as
pessoas físicas, os clientes de baixa renda hoje são responsáveis por quase
dois quintos da inadimplência. Para esse segmento, é bastante comum renegociar
dívidas, mas agora isso está sendo feito num ambiente de juros muito mais
altos, o que deve criar superendividamento persistente, com efeitos
macroeconômicos adversos como a inibição do consumo.
Frente ao quadro de elevada inadimplência
no mercado de crédito, o presidente Lula começará seu governo já tendo que
propor respostas para esse grande imbróglio. As políticas a serem apresentadas
devem contemplar dois aspectos em especial. Primeiramente, é importante
incentivar os tomadores de crédito a honrar seus compromissos. Caso contrário,
será criado um ambiente de estímulo ao calote de dívidas, que, sem a menor
dúvida, será extremamente nocivo ao bom funcionamento do mercado. Em segundo
lugar, para contornar, ou pelo menos reduzir, o problema, é provável que subsídios
venham a ser concedidos. Isso certamente complicará ainda mais o quadro já
bastante difícil das contas públicas em 2023.
Se levarmos em conta que os gastos públicos
já contratados para o próximo ano, inexoravelmente, furarão o teto de gastos,
esse adicional de recursos a serem injetados para “administrar” a elevada
inadimplência deve ser ministrado de forma extremamente meticulosa. Afinal, os
montantes envolvidos para reverter o quadro no mercado de crédito são muito
significativos.
Em síntese, o superendividamento das
famílias, com destaque para as de menor poder aquisitivo, significa um
prolongamento dos custos da pandemia, agravados pela severidade do ciclo de
aperto da política monetária. Desarmar mais essa bomba deixada pela crise
sanitária requererá o uso de recursos públicos que, devido ao momento fiscal
extremamente delicado pelo qual passa o Brasil, deverão ser disponibilizados
com extrema acurácia.
*Luiz Schymura é pesquisador do FGV
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