O Estado de S. Paulo
A decantada 'união nacional' dependerá
muito do que vier a fazer o novo governo. Mas não nascerá somente dele. As
forças democráticas, seja onde quer que estejam, precisarão dar sua
contribuição.
Foi duro, sofrido, apertado, muito mais do
que se imaginava e do que esperavam as torcidas. Mas Lula venceu a disputa e
será o novo presidente da República a partir de janeiro de 2023.
As urnas apontaram muitas coisas. Uma
sociedade dividida como nunca dantes, um novo padrão de disputa política, uma
direita extremada aguerrida e forte, um desejo pulsante de democracia.
Apontaram também a resiliência de ambos os
candidatos.
Lula, com sua trajetória épica, revelou uma recuperação que há 4 anos se imaginava impossível. Ele nunca esteve “morto”, mas foi alvejado por potentes petardos, que poderiam ter alquebrado seu espírito e manchado sua reputação. Mostrou que continua mais vivo do que nunca, com uma extraordinária capacidade de empolgar partes importantes da população.
Mesmo Bolsonaro, depois de quatro anos
trágicos, nos quais exibiu rara incompetência governamental, muita maldade e
uma formidável capacidade de insuflar o que há de pior na vida nacional,
conseguiu sobreviver ao fracasso de seu governo e chegou às mentes de metade do
eleitorado. Mostrou que os estragos seriais que promoveu no País não foram
suficientes para alertar a população sobre os riscos reais que existiam em sua
recondução ao cargo.
Há muitas perguntas que valem um milhão.
Como será o próximo governo? Lula honrará o compromisso de fazer uma gestão que
esteja “além do PT”, com um ministério plural que inclua quadros de várias
formações políticas e ideológicas? Conseguirá convencer as bases de seu partido
de que não há mais lugar para revanchismo e “caça” à direita? Conseguirá, ele
próprio, se equilibrar entre os vários Lulas que existem em sua biografia
política?
Porque saíram das urnas as três personas
que encarnam a figura de Lula: o estadista, o ídolo popular e o líder
partidário. O estadista, hábil negociador, generoso com aliados e sincero de
propósitos, falou no hotel logo após a confirmação da vitória. “Não há dois
Brasil, é hora de baixar as armas”. Foi um discurso de alto nível, de Estado.
Horas depois, o Lula que surgiu na Avenida Paulista foi o líder partidário,
inteiramente entregue à corrente magnética que se espalhava perante o palanque.
O orador vibrante, quase demagógico, disposto a religar os fios da história que
teriam sido rompidos pelos “golpistas” que “impicharam” Dilma Rousseff,
incendiou a avenida e deixou algumas interrogações soltas no ar. Ali, quase ao
final da noite, Lula foi mais “ameaçador” do que “pacificador”.
Claro está que essas três personas podem se
acomodar de modo equilibrado. Como Lula será presidente, o mais lógico é que o
estadista prevaleça e comande o ídolo popular e o líder partidário. Se isso
acontecer, cumprirá a promessa de que todo esforço será feito para superar as
polarizações funestas e paralisantes que intoxicam o País.
É importante ponderar duas coisas.
A decantada “união nacional” dependerá
muito do que vier a fazer o novo governo. Mas não nascerá somente dele. As
forças democráticas, seja onde quer que estejam, precisarão dar sua
contribuição. Ajudando o governo ou, no mínimo, fazendo uma oposição
construtiva e leal.
Um País somente será unido se contar com
uma população disposta à união, livre de fantasmas e fantasias divisionistas.
Nos últimos anos, o brasileiro foi muito massacrado por antagonismos
destrutivos tipo “nós” x “eles”. Precisa ser chamado para outro território. Ser
convencido, persuadido, de que uma sociedade dividida é uma sociedade fraca,
que não se autogoverna, que retorna sempre aos mesmos lugares e convive com os
mesmos problemas de sempre. Trata-se de uma operação que se dedique
intensamente a recuperar algumas doses adicionais de confiança nas instituições
e nos políticos.
Um novo ciclo se abrirá. Há uma expectativa
social de que saibamos aproveitar essa nova chance que há para o Brasil. Em boa
medida, o mundo espera que isso aconteça. Torcidas são importantes. Mas o
decisivo mesmo será a conduta prática do próximo governo, sua composição
ministerial, os planos com que governará e o discurso que nele prevalecerá.
*Professor titular de Teoria Política da
Unesp
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