Se o noticiário da imprensa desviar desse tema para, por exemplo, manter
acesa a chama do espantalho golpista, ajudará aquilo que, dentro dos limites de
cognição que alcanço, posso interpretar como tática da extrema-direita para
renovar a aposta populista. Para as forças vencedoras da eleição é hora de
governar, não de disputar. Se quiserem mesmo neutralizar as manifestações
golpistas, que persistem, a primeira coisa a fazer é desmontar os palanques e
povoar o noticiário com a agenda positiva da política. Ela agora é, em grande
medida, discussão pública, sem alinhamentos maniqueístas, da minuta da PEC que
tramitará no Congresso. O fato de o governo de transição ter jogado a encomenda
no colo do Legislativo deve ser encarado, por esse último, como ocasião de aceitar
e chance de fazer contraponto ao populismo que ecoa dos palanques de anteontem;
de guardar no armário a retórica eleitoral e manter viva, das eleições, só a
mensagem objetiva dada pelos eleitores, ao escolherem um congresso e um
presidente adversários. O recado
inequívoco é: entendam-se! como políticos, não como compadres.
Na sexta-feira, 18.11, passou do breu das tocas ao noticiário uma
cogitação que, caso prospere, fará o governo Lula se ver em maus lençóis logo
no seu ponto de partida nesse quesito relevante das relações (factuais, não conceituais)
entre Executivo e Legislativo. Comenta-se estar em marcha uma pressão de
congressistas partidários da situação atual sobre os da base do futuro governo para
condicionar a aprovação do presente teor do anteprojeto da PEC de transição (que
prevê liberdade extraorçamentária ao Executivo, por quatro anos, ou até de modo
permanente), à fixação explícita, na mesma PEC, da imperatividade da execução das
controversas “emendas do relator”, porta de entrada de uma constitucionalização
do “orçamente secreto”, antes que a ministra Rosa Weber o anule.
O balão de ensaio apareceu numa entrevista maliciosa do Deputado
Ricardo Barros, líder do governo Bolsonaro na Câmara. Ele interpreta, com base
num trecho do texto da minuta entregue pelo vice-presidente eleito ao Congresso,
que a equipe da transição já teria “assimilado” a legitimidade das emendas do
relator e dos procedimentos recentes que as converteram em biombo para o
atendimento de apaniguados, com a devida extensão do arco de beneficiários para
gerar uma rede de cumplicidade. A partir dessa suposta naturalização do
problema, por parte dos seus adversários, o desenvolto parlamentar governista animou-se
a insinuar - já aí nos bastidores - a sugestão de um acordo nesses termos. Até
aqui não há notícia de aval de porta-vozes da equipe de transição ou da base
parlamentar do futuro governo a essa virtual constitucionalização preventiva do
orçamento secreto. Mas preocupa o silêncio mantido pelos respectivos atores
políticos após a veiculação dessa hipótese na imprensa.
Por outro lado, há, dentro e fora da política, vozes apelando à providencial
intervenção da ministra do STF, com o argumento de que é preciso cortar o mal
logo e pela raiz. Geralmente tenho reservas quanto a propostas que pretendam
eliminar algo em política de uma vez por todas, por mais nocivo que esse algo seja.
Nesse caso especifico temo que se a medida de Rosa Weber, sem dúvida saneadora,
se consumar, seja mais um episódio de judicialização da política, um freio de arrumação,
de duração curta.
É bom, antes de pensar que a simples judicialização pode resolver
também questões de natureza política, não perder de vista que a autoridade
moral do Judiciário não anda em alta, seja pela campanha de desgaste movida
contra ele - com algum sucesso, conforme pesquisas indicam – pelo bolsonarismo,
civil e filo-militar, seja por deslizes institucionais que são, por vezes,
cometidos no seu âmbito. Sem entrar aqui no mérito de episódios polêmicos, convenhamos
que, para além das críticas da extrema-direita, parte da opinião pública passou
a não encarar decisões judiciais como isentas. Esse fato basta para relativizar
a percepção pública do Judiciário como capaz de prover o país da boa política
que essa mesma percepção pública julga faltar nos poderes governantes. O
cuidado da política com a sua própria imagem é intransferível. O cardápio
preparado pela omissão perante dilemas éticos é ovo de serpente
Qual a melhor conduta? Pedir a Rosa Weber para ser mais rápida no
gatilho e começar o novo governo sob a tutela - em tese benévola - do STF, ou apostar
num entendimento e numa negociação política em bases mais razoáveis, com atores
institucionalmente mais responsáveis, em especial partidos políticos? Uma das
principais arenas da longa batalha pelo resgate da política são as relações entre
Executivo e Legislativo. Complicado? Perigoso? Certamente, mas não há outro
caminho para solução sustentável do problema, ainda que a solução possível seja
incremental, como é de habito ocorrer em democracias.
Em português claro, não será melhor e mais sério, da parte da
equipe da transição e sua base parlamentar, em vez de bater pé na folga extraorçamentária
por quatro anos aceitar a redução do prazo dessa folga para um ano (como é
natural que o Congresso, enquanto Poder, deseje), ou mesmo tentar mantê-lo em
quatro anos, se possível, em troca da fixação, já na própria PEC, de uma nova
âncora fiscal, como propôs, por exemplo, a senadora Simone Tebet? Os “custos de transação”, para o país e para
um governo cioso do objetivo de
governar e do propósito de cumprir compromissos de campanha, tendem a ser bem
menores do que os decorrentes de se permitir, em nome de uma barganha
imediata mais favorável, embutir, em nome do social, o orçamento secreto e
outros jabutis menores, na Constituição.
A escolha é sobre quem será o interlocutor preferencial: se o
campo liberal, defensor de limitações de natureza fiscal (mas pacificado quanto
à prioridade ao social, desde que definida pelo emergencial) ou se a turma do
dito centrão, cuja sensibilidade social pode, no geral, ser medida pelas
compensações que obtiver na captura corporativa e individual de verbas do
orçamento. E nesse ponto é bom sublinhar que não estamos falando de uma escolha
excludente e irrealista, mas de escolha criteriosa. Ainda que seja necessário
negociar com o centrão no varejo, uma coisa é fazer isso para completar os
votos que faltam após se celebrar uma coalizão no atacado político. Outra bem
diferente – e bem conhecida – é fazer do varejão o eixo principal do
entendimento. Eis a diferença entre uma política de coalizão, que pode tornar
real o acenado governo de frente ampla e a mera política de cooptação e
captação.
Duas explicações adicionais são necessárias. Falar em varejão é não
falar de um monolito. Negociar com Arthur Lira não é o mesmo que com Ricardo
Barros. O interesse central do primeiro
é sua reeleição. O objetivo do segundo é blindar o orçamento secreto na Carta.
Se o móvel principal da equipe da transição e sua base parlamentar é o
interesse político bem compreendido, convergente ou conciliado com o interesse
público no bom governo, basta um mínimo de bom senso para não ter dúvidas de
que o preço político de Lira é mais módico que o de Barros. Outro critério distintivo é que o primeiro
tem tropa mais numerosa, o segundo não se sabe até que ponto blefa. Também por
aí aparece razão para repelir a sugestão maliciosa do líder do atual governo,
sendo estranho que isso não tenha sido feito de imediato.
A segunda explicação tem a ver com números relativos a bancadas
partidárias. São forçosamente aproximados, pois entre políticos profissionais (e
não há democracia sem eles) cálculos individuais são rebeldes a filiações
institucionais, daí que a orientação de várias bancadas não pode ser traduzida
em números de votos exatos, mas dá para fazer certas afirmações que amparem o
raciocínio aqui exposto.
Comecemos pelo Senado, primeiro estágio da PEC. Se considerado o
total de bancadas dos 14 partidos que já têm assento no conselho político da
transição para o novo governo, 42 dos 81 atuais senadores (que são os que
discutirão e votarão a PEC) formam a presumível base parlamentar com que poderia
contar, de saída, o presidente eleito, desde que o teor da matéria seja
suficientemente pacificado entre essas bancadas. Em tese, restariam 7 votos
para se chegar aos três quintos necessários à aprovação de uma PEC. Se dos 39
senadores restantes excluíssemos os 18 que compõem as bancadas de partidos que
apoiaram a campanha pela reeleição de Bolsonaro, restariam 21 senadores (6 do
PSDB, 6 do União Brasil, além de 8 do Podemos e um sem partido) para dentre
eles buscar-se a ampliação de apoios. Se é verdade que o número de senadores a
princípio tidos como favoráveis pelo critério partidário será, na realidade,
menor, quando se considerar posicionamentos pessoais, o inverso também é
verdadeiro, isto é, entre os 18 dados como resistentes à aprovação por razões
partidárias é mais que provável diversos aderirem, seja por vocação governista
mesmo, ou por dificuldade em se opor a uma matéria que, afinal, viabilizará um
auxilio emergencial para os mais vulneráveis. É possível dizer, sem muito receio,
que no Senado uma boa costura entre os partidos da base potencial (onde está a
senadora Simone Tebet) e mais um acordo com o PSDB, onde está o senador Tasso
Jereissati, seria suficiente, em tese, para se chegar ao número mágico de 49
senadores, com o auxílio luxuoso, já em curso, do presidente Rodrigo Pacheco. Entendimentos
com o União Brasil e/ou com bancadas dos partidos do centrão seriam medidas de
segurança para garantir mais concretização ao que já é uma tese plausível. De
modo que, com base nos parâmetros de negociação da PEC dados pela situação no
Senado, os articuladores só não irão por esse caminho se houver restrição
política a uma coalizão que de fato concretize a frente ampla.
Na Câmara parece que será necessário mais trabalho e um arco de
entendimento mais amplo, que não poderá dispensar a inclusão de parte das
bancadas do centrão. Assim, há ali alguma brecha para a oposição bolsonarista
interferir, senão para impedir a aprovação (algo politicamente custoso, dado o
teor da matéria) ao menos para influir no texto final, de que é exemplo a
sugestão de Ricardo Barros. Ainda assim a dependência tende a não ser tão
radical como se tem pintado. O total das bancadas dos 14 partidos da presumivelmente
originária base parlamentar do futuro governo soma, no plenário atual, 237
deputados, restando, em tese, 71 votos para se alcançar o número mágico que, no
caso da Câmara, é 308. As bancadas atuais dos partidos que apoiaram Bolsonaro
na eleição somam 192 e se fossem excluídas da negociação direta, os 71 votos
complementares teriam que ser buscados entre os 84 deputados que compõem as
bancadas do União Brasil, PSDB e Podemos. Fica claro que seria uma margem de
manobra muito estreita, trazendo alto risco de insucesso, ainda mais quando se
observa, na composição interna de cada uma dessas três bancadas, divergências
políticas maiores com a agenda do novo governo. Portanto, na Câmara, o centrão
é interlocutor obrigatório, mas o quadro não obriga Lula a engolir um combo, ao
contrário, permite entendimento criterioso para atender compromissos de
campanha do novo governo sem comprometer a sanidade das contas públicas. No
jargão corrente, unir responsabilidades social e fiscal, como agora todos
afirmam querer, inclusive o futuro presidente.
Comenta-se que esses entendimentos serão atravessados também por
aqueles que se dão em torno da renovação das mesas diretoras das duas casas. Especialmente
a reeleição de Artur Lira, que pode ter perdido algum consenso no centrão em
razão da turbinagem bolsonarista da bancada do PL. Convém, a respeito, pontuar
que as duas sucessões, embora tratadas desde já, serão resolvidas só na próxima
legislatura. No Senado a renovação do plenário será de cerca de um quarto e na
Câmara de 40%. Ainda é cedo para prever
com segurança os alinhamentos políticos, mas um dado sugestivo é que a soma das
bancadas dos partidos já envolvidos na transição ao novo governo será discretamente
inferior no Senado (passará dos atuais 42 para 37) e praticamente a mesma na
Câmara, onde no lugar do total atual de 237 haverá 234 deputados. A força dos
partidos do centrão (PL, PP, Republicanos, PTB) aumenta no Senado, graças à
eleição de senadores que tendem a ser uma oposição ancorada no bolsonarismo,
mas se mantém praticamente intacta na Câmara (passa de 192 para 195), pois o
crescimento do PL foi em parte neutralizado por recuos discretos nos tamanhos das
bancadas dos demais partidos do bloco.
Isso tudo - e mais as evidências de que a reeleição de Rodrigo
Pacheco está mais encaminhada do que a de Lira - quer dizer duas coisas, em
relação à discussão da PEC e a revisão da LOA. Primeiro que no Senado há mais
razões pragmáticas para os articuladores do futuro governo quererem resolver
logo agora, na aprovação da PEC, alguns dos principais nós da equação que
envolve responsabilidades social e fiscal. Assim, é possível que ali as críticas à minuta
caminhem mais na direção de um entendimento para moderar a proposta original,
através de soluções mais duradouras, como a inclusão de uma âncora fiscal
permanente no corpo da própria PEC, em troca de
um maior prazo de excepcionalidade para gastos e investimentos por parte do
futuro governo. Já na Câmara atual será
preciso uma maior cautela contra a inclusão de jabutis ligados não só ao
interesse de manter a lógica do orçamento secreto, (ainda que o segredo se
atenue) como também ao de distribuir recursos voltados à disputa da sucessão.
Há uma avenida à frente da articulação do futuro governo e a rota
segura parece ser apostar fundo numa negociação consistente no Senado, que ligue
o varejo a um pacto partidário e previna resvalo para más práticas políticas na
Câmara. O entendimento passa pela manutenção do decidido apoio que forças do
centro democrático deram, no segundo turno, a uma candidatura que fez da pauta
social dirigida aos mais pobres o seu foco principal. A contrapartida política desse avanço do centro
a uma agenda de centro-esquerda é a autocontenção do PT e de seus tradicionais
parceiros na esquerda diante da realidade de que Lula governará um país cujo
eleitorado é majoritariamente conservador em questões caras ao identitarismo de
esquerda e crescentemente receptivo a valores liberais em economia. O novo Congresso eleito não é bolsonarista nem
diferente do atual no sentido estritamente partidário. Mas expressa mais
claramente essa atitude que, na falta de outro termo, pode-se tomar como de
centro-direita. As negociações entre o novo governo e parlamentares da
legislatura findante não podem perder de vista que, em fevereiro, 219 novos
deputados e 21 novos senadores assumirão mandatos tão legítimos como o do
presidente eleito. Foi a esse novo Congresso e não ao atual que os eleitores
confiaram a missão de decidir, junto com Lula, os rumos para o Brasil durante
os quatro próximos anos. A boa prática democrática deve por isso baixar a bola
durante a transição. Embora exista mandato legal, falta às mais de duas
centenas de parlamentares que se despedirão em dezembro, legitimidade política
e autoridade moral para tomar decisões que ultrapassem o estritamente
emergencial.
Além do mais, depois de derrotar Bolsonaro seria um péssimo começo
para o novo governo manter a gramática política imediatista e pródiga do
antecessor, confiando apenas no STF para deter a farra. Nesse caso incorreria
numa passividade cúmplice, como aconteceu, na boca da urna, com todo o campo
democrático, no caso da PEC kamikaze. Ali havia, além da fome de milhões, uma
eleição agonística a justificar (ainda que mal) a conivência. Agora o exemplo a
seguir é o daquela atitude, então solitária, do senador José Serra. Se os
absurdos de Bolsonaro começarem a ser alegados para desculpar eventuais
licenças éticas do novo bloco de governo, a república seguirá em marcha batida
a um beco esburacado.
Se Rosa Weber intervier será no sentido correto. Mas à custa, mais
uma vez, da desmoralização da política. Desmoralização contínua, que consiste
no fato da elite política permitir que seus deveres republicanos mais
comezinhos necessitem ser judicializados porque ela, por si mesma, é incapaz de
cumpri-los. Isso quer dizer que por aí não se deterá, de fato, a erosão da
democracia. Espera-se que as bases políticas do futuro governo tomem a
iniciativa, com a cobertura e aval do presidente eleito, de impedir a
empulhação que seria a conjugação de constitucionalização de liberdade fiscal
ilimitada e patrimonialismo político sem peias. A frente ampla formada na
campanha, caso se estenda ao governo, terá poder para isso. Desde que o novo
governo não queira garantir o seu, mandando a política à breca.
Em suma, a política precisa cumprir seu dever. Sem que ela rejeite
manobras dos artífices do orçamento secreto, de pouco adiantará Rosa Weber
salvar a pátria dessa situação particular. Haverá outras pois a criatividade do
fisiologismo é inesgotável. A hora é delicada demais para trocar o caminho
principal por um atalho. O problema existe, é sério e é compreensível que não
possa ser sanado de uma vez. Mas há que avançar em algo e não permitir seu
agravamento. A constitucionalização do obscurantismo orçamentário é um passo a
mais que ainda não foi dado e precisa ser impedido. E só o será se o presidente
eleito e sua equipe de articulação parlamentar trabalharem em sintonia para
formar maioria distinta da que formaria/formará se fizesse/fizer um acordo na
linha do que insinuou Ricardo Barros.
O governo Lula - se for de frente ampla e valorizador das instituições
- e uma oposição civilizada que se faça a ele têm chance de virarem juntos,
agora, a chave do cadeado protetor das instituições, que táticas patrimonialistas
de cooptação econômica para apoio congressual afrouxaram, que a fronda lava-jatista
arrombou, abrindo portas a um aventureiro que as sequestrou e saqueou, mas não
conseguiu destruir.
O resgate de uma atitude republicana por sua elite política é
parte tão nobre da reconstrução do Brasil quanto a da reversão do quadro da
fome e de exclusão social. A primeira sem a segunda leva a uma república de
privilegiados; a segunda sem a primeira a um populismo despótico. Entre os três
poderes, pede-se relação republicana (e não só - mas também - liberal, por sua
separação harmônica) nos costumes políticos, que é necessária à reconexão e agregação das duas partes hostis
em que o Brasil se parte há quase uma década. Agregação para a pluralidade,
não para a unanimidade, de modo algum!
*Cientista político e professor da UFBa.
Um comentário:
Artigo longo demais.
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