O Globo
Dizer que ‘tá no sangue’ ou que negros são
naturalmente atléticos e vocacionados para as artes é racismo
O Brasil conta com mais ou menos 118
milhões de pessoas negras. Isso quer dizer, na prática, que existe um número
infinito de estilos de vida e modos de enxergar o mundo, o que deveria gerar
algumas reflexões e conclusões.
A primeira delas é que recorrer a estereótipos é também reforçar uma faceta do racismo, que acaba coletivizando algumas características e elimina a ideia de indivíduo. Em outras palavras, dizer que “tá no sangue” ou que negros devem saber jogar bola e sambar é racismo. Afirmar que negros são naturalmente atléticos e vocacionados para as artes, idem. Na verdade, quando se toma esse tipo de entendimento como verdade, vemos a base do trabalho braçal (escravo) para negros e trabalho intelectual para brancos, dividindo a sociedade entre uma comunidade domesticada, útil ao entretenimento e à servidão, e uma outra que gera luz, desenvolvimento e progresso para todos.
O mesmo raciocínio deve ser considerado
para visões políticas de mundo. Não é matematicamente racional querer que 118
milhões de pessoas pensem da mesma maneira sobre tudo. Dessa forma, é mais do
que natural termos negros de direita, de centro e de esquerda, progressistas ou
conservadores, bolsonaristas, lulistas ou nem-nem. Impor uma única linha de
pensamento é querer novamente moldar comportamentos, o que remonta ao tempo do regime
escravocrata.
Ao desconsiderar nossas origens e visões
diversas, nos é negada a humanidade. Precisamos romper com a lógica
artificialmente posta de que uma pessoa, por ter a pele escura, não merece ser
reconhecida como um indivíduo com suas vontades próprias.
Certa vez, Luiz Gama recebeu um negro
escravizado em seu escritório, que pretendia ser alforriado. Seu senhor entrou
logo depois e perguntou por que queria a liberdade, se era tão bem cuidado,
correndo o risco de ser infeliz nessa nova vida, e perguntou o que mais lhe
faltava. O negro escravizado nada disse, mas Luiz Gama respondeu por ele:
— Falta-lhe o direito de ser infeliz onde,
quando e como queira.
O ponto principal é que não podemos pegar
alguém pelo todo e vice-versa. Se falarmos de um homem branco, inglês, nascido
em 1948, que vive num castelo, sendo famoso e rico, podemos nos referir ao rei
Charles III ou a Ozzy Osbourne.
No campo das avaliações, é necessário
também desmistificar fatos. Quando negros chegam a algum ponto de destaque intelectual,
seu desempenho servirá de referência para toda a comunidade negra: se for bem,
será apesar de ser negro; se for mal, é porque é da raça. Em contrapartida, o
inverso não ocorre com a população branca. O indivíduo pode ser quem ele mesmo
é, sem que isso respingue nos demais.
Um bom exemplo disso foram as mentiras nos
currículos de ministros do atual governo. Enquanto autoridades brancas foram
mantidas nos seus cargos, o negro não só foi exonerado, como sua carreira foi
destruída, resultado completamente oposto ao de seus pares, recentemente
eleitos para o Congresso com votações expressivas. Foram dois pesos e duas
medidas aplicadas pelo governo e pela própria sociedade.
Assim, segue muito importante a igualdade de tratamento, mas acompanhada de liberdade e independência para a população negra.
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