segunda-feira, 21 de novembro de 2022

Bruno Carazza* - Lula na mão de Lira

Valor Econômico

PEC da Transição reforça poder do líder do Centrão

Lula é o personagem central da política brasileira nas últimas quatro décadas. Desde 1989, esteve presente em seis eleições presidenciais (tendo vencido três) e foi muito influente nas outras três, como “padrinho” de Dilma Rousseff em 2010 e 2014 e sendo substituído por Fernando Haddad em 2018.

O carisma de Lula junto a parcela importante do eleitorado e sua capacidade de articulação, atraindo apoios que vão além do PT e da esquerda, levaram o cientista político André Singer a cunhar a expressão “lulismo”, fenômeno que seria mais forte até do que o petismo.

Todavia, o poder de Lula, expresso mais uma vez na vitória (ainda que apertada) da última eleição e nos acenos que o ex e futuro presidente tem recebido de lideranças de todo o espectro político, mascara graves erros de estratégia cometidos pelo ícone petista nas últimas décadas.

Uma vez no poder, Lula e o PT pecaram na construção e administração de sua base de governo - e os escândalos do mensalão e do petrolão deixaram marcas profundas na sua imagem junto à outra metade do eleitorado brasileiro. Escolhas erradas nas eleições para a presidência da Câmara em 2005, com a derrota para Severino Cavalcanti, e em 2015, para Eduardo Cunha, causaram grandes dores de cabeça para as administrações do próprio Lula e de Dilma Rousseff.

De volta à capital federal para um terceiro mandato, os primeiros movimentos na transição sinalizam que Lula pode estar semeando ventos para colher tempestade, colocando-se numa posição de fragilidade no jogo político de 2023.

Ao investir seu capital político na aprovação, antes mesmo de tomar posse, de uma PEC que lhe dê uma licença para gastar mais durante todo o seu mandato, o petista persegue dois objetivos políticos distintos.

De um lado, busca ampliar a legitimidade de seu governo, entregando desde já compromissos de campanha e agradando inclusive parcelas do eleitorado que votou em Bolsonaro. Numa outra frente, Lula tenta blindar sua gestão contra a necessidade de negociar um orçamento maior com Arthur Lira e demais lideranças do Centrão a cada ano, no próximo quadriênio.

Para isso, no entanto, é preciso combinar com os russos, para usar a surrada expressão atribuída a Garrincha, desculpável apenas porque estamos em tempos de Copa do Mundo.

Os russos, neste caso, são os políticos do Centrão, comandados por Arthur Lira.

Para garantir o pagamento do auxílio de R$ 600 a partir de janeiro, Lula precisará aprovar a PEC (e a Lei Orçamentária) até o dia 22 de dezembro, quando se encerra o ano legislativo.

Se tivesse que percorrer o trâmite constitucional e regimental, a PEC precisaria ser analisada pela Comissão de Constituição e Justiça e por uma Comissão Especial, além de debatida e votada em plenário em dois turnos, com intervalo de cinco sessões entre eles. Tudo isso tanto na Câmara quanto no Senado - e com uma Copa do Mundo no meio.

Para acelerar a tramitação da PEC, portanto, Lula e o PT terão que engolir todas as críticas que fizeram às manobras regimentais e ao “rolo compressor” de Arthur Lira na aprovação de medidas do governo Bolsonaro nos últimos dois anos. Será preciso enxertar o texto proposto em uma PEC com tramitação mais avançada, encurtar prazos, eliminar debates, suprimir destaques e outras artimanhas que a esquerda cansou de denunciar nos últimos tempos.

Mais do que o gostinho de vingança, Lira se sentirá legitimado para continuar se valendo dessas práticas autoritárias nos próximos dois anos. E pode fazer isso, inclusive, para aprovar pautas-bomba contra o interesse do próprio Lula.

Para piorar a situação, a PEC precisa ser aprovada por 308 deputados e por 49 senadores. A coligação que elegeu Lula tem apenas 120 deputados e 11 senadores - 139 e 15, se a eles somarmos os parlamentares do PDT. A diferença precisa vir dos partidos do centro e do Centrão.

Acontece que estamos no final da legislatura, e muitos parlamentares não foram reeleitos. Como pode ser visto no gráfico, 172 deputados das legendas de centro e de direita não foram reeleitos e, portanto, não terão ganho imediato algum com a aprovação dessa PEC.

Segundo a imprensa, Lira se comprometeu a colocar a PEC em votação no prazo e a se esforçar pela sua aprovação. Em troca, Lula teria prometido ao deputado do PP alagoano não interferir nos seus planos de reeleição para a presidência da Câmara e em buscar uma solução para a manutenção do orçamento secreto.

O acordo saiu barato para Lira. Reeleito, continuando a controlar os bilhões das emendas de relator e com seu jogo-sujo regimental ratificado por Lula, o líder do Centrão pode ser um problema para Lula nos próximos anos.

Em tempo: em 15/06/1958 o Brasil derrotou a União Soviética por 2 a 0 na Copa da Suécia. À época, Nelson Rodrigues disse que Garrincha estava tão inspirado naquele dia “que driblou até as barbas de Rasputin”.

Vamos ver como Lula entrará em campo em primeiro de janeiro de 2023.

*Bruno Carazza é mestre em economia e doutor em direito, é autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro” (Companhia das Letras)”. 

2 comentários:

Anônimo disse...

Muito sensata a análise do colunista! Parabéns a ele e ao blog que divulga seu trabalho. Carazza escreve com conhecimento de economia e uma cuidadosa e equilibrada visão política... Sabe o que é o mercado, e como são os políticos. Não fica apenas destilando preconceitos como uns e outros...

ADEMAR AMANCIO disse...

Bruno Carazza sabe das coisas.