segunda-feira, 22 de maio de 2023

O que a mídia pensa - Editoriais / Opiniões

Piora universitária reflete mais que corte de verbas

O Globo

Queda no ranking das melhores do mundo resulta de deficiências crônicas da pesquisa acadêmica brasileira

Das 2 mil melhores universidades do mundo, só 54 estão no Brasil, segundo a avaliação de 2023 do Center for World University Rankings (CWUR). Entre as brasileiras mais bem colocadas, 29 perderam posições, 23 subiram no ranking e duas mantiveram o mesmo patamar. É um resultado ruim para um país que depende da produção de conhecimento para crescer e se desenvolver.

Mesmo a USP, líder na América Latina e 109º lugar no mundo, caiu seis posições. Perdeu pontos em qualidade do ensino, empregabilidade e qualidade do corpo docente, embora tenha melhorado em pesquisa. A UFRJ desceu 15 posições, ficando em 376º, atrás da Unicamp, que subiu duas, passando ao 344º lugar. Completam a lista das cinco melhores brasileiras a Unesp, em 424º, e a UFRGS, em 467º.

De modo geral, a queda se deveu ao desempenho pior em pesquisa, indicador que tem maior peso no levantamento e questão essencial para qualquer instituição de ensino superior. O argumento de que faltam recursos é legítimo, mas explica apenas parte do problema. Todo mundo sabe que as universidades passaram os últimos anos à míngua, enfrentando sucessivos cortes e contingenciamentos que sufocaram não apenas as pesquisas, mas serviços básicos para seu funcionamento. Estima-se que, entre 2014 e 2022, o setor de Ciência e Tecnologia perdeu quase R$ 100 bilhões em verbas. O tombo era previsível.

Mas esse foi um problema circunstancial. Nossa academia padece de deficiências estruturais mais relevantes e insidiosas. A realidade mostra grande distanciamento entre as universidades e a economia real, de onde poderiam vir recursos capazes de suprir a penúria do Estado. Muitas vezes, o empresário volta as costas para a academia, tal a distância entre o que se pesquisa e a vida cotidiana. Não se trata de condenar a pesquisa em ciência pura, muito menos de contestar a autonomia acadêmica, mas de constatar o óbvio: as universidades precisam estar a serviço da sociedade, não apenas ser sustentadas por ela. É preciso reduzir essa distância histórica para que o país deslanche na geração de conhecimento vital para atingir o desenvolvimento. Quanto mais próxima estiver a pesquisa do setor produtivo, maiores os benefícios.

No mundo, há inúmeros exemplos de pesquisas acadêmicas capazes de redesenhar o panorama econômico e social, do programa espacial ao Vale do Silício, onde nasceram dentro de universidades dezenas de corporações bilionárias. No Brasil, os únicos casos notáveis são Embrapa e Embraer. Mais exemplos desse tipo ajudariam os próprios acadêmicos a convencer as empresas da relevância de suas pesquisas.

O atual governo aumentou o orçamento das universidades federais e do Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT), principal financiador de pesquisas acadêmicas. A medida é importante, mas não basta para levar as universidades brasileiras a outro patamar. Elas precisam, antes de pedir mais verbas, aperfeiçoar a gestão de seus recursos para melhorar o desempenho em indicadores de produção científica, como obtenção de patentes, publicação de estudos etc. A falta de dinheiro aflige a educação brasileira em todos os níveis, em especial no ensino básico, que jamais recebeu do Estado tratamento comparável ao dado ao ensino superior. É óbvio que, se a educação começa mal, dificilmente terminará bem.

Regulação de apostas esportivas transcende a questão tributária

O Globo

Governo parece encarar o escândalo no futebol apenas como oportunidade de aumentar arrecadação de impostos

O escândalo da manipulação de resultados no futebol demonstra a urgência de regular e fiscalizar sites e casas de apostas. A CPI das Apostas no Congresso promete trazer propostas para isso. A intenção do governo, já expressa, é criar uma secretaria no Ministério da Fazenda para certificar esses ambientes, além de acompanhar o volume de dinheiro movimentado e a arrecadação de impostos. Mas é duvidoso que essa seja a melhor estratégia para o país.

Permitidas a partir de 2018, as apostas movimentam, pelas estimativas do próprio governo, entre R$ 120 bilhões e R$ 150 bilhões (para ter uma base de comparação, as loterias da Caixa Econômica faturaram R$ 23 bilhões em 2022). De acordo com algumas estimativas, já operam algo como mil sites para apostar em partidas de futebol, cujos servidores e sedes ficam longe do alcance da Receita Federal. Não é à toa que o governo esteja de olho na dinheirama que passa ao largo de qualquer fiscalização.

Mas a visão meramente fiscalista da regulamentação das apostas on-line seria um erro. Criar um apêndice da Receita Federal no Ministério da Fazenda não basta para dar conta do desafio regulatório. A pasta é historicamente voltada para garantir a arrecadação e formular políticas econômicas. Não tem a cultura adequada para abrigar em sua estrutura um órgão destinado a lidar não apenas com as máfias tentando burlar regras para ganhar dinheiro fácil, mas com um universo que mistura saúde, tecnologia digital e esportes.

O governo poderá até ficar satisfeito com a receita tributária dos jogos, e mesmo assim o futebol brasileiro continuar a perder credibilidade. Qualquer lance duvidoso alimenta discussões intermináveis. Se a fiscalização das casas de apostas não garantir que sejam confiáveis, haverá dúvida sobre a manipulação do resultado dos jogos. Torcedores se afastarão de estádios e transmissões, e o futebol brasileiro entrará numa crise inédita.

É necessário cercar a questão por todos os lados. A regulação precisa estabelecer controles para identificar contas com movimentações atípicas, que possam estar relacionadas a apostas em partidas fraudadas. De acordo com o advogado Pedro Simões, do escritório Duarte Garcia, Serra Netto e Terra, o Coaf, organismo que monitora transações financeiras, seria indicado para atuar nesse campo. Ele sugere ainda um valor máximo para as apostas mais sujeitas a fraude, como número de cartões ou pênaltis numa partida.

Há quem defenda uma agência específica, com a participação de Polícia Federal, Ministério Público, CBF e clubes. Na Espanha e na Alemanha, jogadores podem denunciar tentativas de aliciamento ou qualquer movimento suspeito em torno de um jogo, sob absoluto sigilo, por meio de um aplicativo. O importante é governo, CBF e clubes entenderem que no mundo das apostas no futebol e em qualquer outro jogo não se pode deixar brecha para a fraude, porque a credibilidade é o maior ativo do esporte.

A Amazônia e o calor

Folha de S. Paulo

Veto a ação da Petrobras na região mostra nova direção no debate sobre o clima

Foi coincidência o Ibama negar autorização para a Petrobras explorar petróleo da foz do Amazonas no mesmo dia em que a Organização Meteorológica Mundial, entidade da ONU, anunciou que o aquecimento global deve ultrapassar 1,5º C nos próximos cinco anos. Coincidência eloquente, porém.

Esse limiar de temperatura adicional havia sido fixado em 2015, no Acordo de Paris. Acima dele, dizem projeções de especialistas, eventos climáticos extremos como a tragédia de fevereiro em São Sebastião (SP) ou a seca de três anos na Argentina se tornarão mais intensos, frequentes e devastadores.

Do ângulo da mudança do clima, não faz sentido abrir frentes de extração de combustíveis fósseis (carvão mineral, óleo e gás). Sua queima seguirá emitindo gases do efeito estufa e realimentando o aumento da temperatura.

Para não cruzar de modo perene o teto de 1,5º C, que tem por referência a média das décadas 1850 a 1900, a economia mundial precisa cortar 43% das emissões nos próximos sete anos. E, ainda mais desafiador, reduzi-las a zero até 2050. Elas seguem em alta, entretanto.

O calor adicionado à atmosfera por atividades humanas já ultrapassou 1,1º C, na comparação com o período pré-industrial. A previsão de que alcançará 1,5º C até 2027 não significa que ficará acima disso de maneira permanente e desastrosa, apenas que seguimos no rumo direto para o abismo climático.

Causam apreensão as indicações de que um novo El Niño está a se formar, pois esse aquecimento das águas superficiais do Pacífico faz subir a temperatura global. Os últimos três anos presenciaram o fenômeno oposto, La Niña, que vinha contrabalançando a tendência de alta.

Os últimos oito anos foram os mais quentes já registrados na Terra. Verdade que o forte El Niño de 2016 contribuiu muito para isso; nesse intervalo, todavia, ocorreu a pandemia que quase paralisou a atividade econômica no planeta.

O Brasil não precisa frear o próprio desenvolvimento para contribuir para a mitigação da crise do clima, só reorientá-lo. Nossa maior fonte de carbono está na derrubada de florestas, que o novo governo promete reduzir drasticamente.

Não será fácil. A administração anterior, de Jair Bolsonaro (PL), deu carta branca para grileiros, madeireiros e garimpeiros avançarem na destruição da Amazônia e do cerrado. Em paralelo, manietou e sucateou o Ibama, comprometendo sua capacidade de coibir crimes ambientais.

A decisão de rejeitar a extração de petróleo em blocos na foz do Amazonas, acatando parecer técnico, indica que uma chave foi girada. O Brasil não é mais o vilão das negociações sobre o clima.

Peneira contra o sol

Folha de S. Paulo

Novo pacote argentino tenta amenizar resultados de política econômica insensata

Alta na taxa de juros para 97% ao ano, intervenções no mercado de câmbio e aumento em benefícios sociais.

ssas são algumas medidas do novo pacote do governo argentino para conter impactos sociais da inflação, estabilizar o valor do peso e dar uma resposta ao rápido agravamento da conjuntura econômica, que ocorre a poucos meses da eleição presidencial.

À dramática escassez de divisas e aos preços em disparada somou-se o choque da seca na produção da grãos. Os números impressionam, com retração de 45% na colheita de soja e 50% na do milho.

O impacto para a economia se revela, além da perda direta de renda em setor tão importante, no aumento do déficit público e na piora da disponibilidade de dólares, a ponto de praticamente zerar as já parcas reservas do país e forçar o governo à busca desesperada por novas fontes de financiamento.

É nesse contexto que surgem tratativas em torno de crédito brasileiro para o comércio exterior, por ora inconclusas, e de trocas com a China na moeda do país asiático.

O objetivo é preservar o acesso à única fonte remanescente de divisas para Buenos Aires. O Fundo Monetário Internacional (FMI) acaba de liberar a quarta rodada de crédito, mais US$ 5,4 bilhões, totalizando US$ 28,9 bilhões como parte do acordo fechado em 2022.

A contrapartida à nova liberação é que o país continue a implementar o programa de ajuste, que em 2023 prevê redução de gastos como subsídios de energia, para diminuir o déficit público e seu financiamento por emissão de moeda.

Ademais, buscam-se garantir juros acima da inflação de modo a não espantar o que resta de crédito doméstico e salvaguardar as reservas obtidas recentemente com vedações a novas intervenções no mercado paralelo de câmbio.

Mesmo com o novo auxílio do FMI, contudo, o quadro para este ano é de recessão, com queda do PIB de 2% a 3%, segundo estimativas do setor privado —uma virada em relação ao crescimento de 5,4% observado em 2022.

Com recessão, queda de receitas do governo, falta de dólares, inflação acima de 100% e em aceleração, é difícil enxergar qualquer alívio na conjuntura argentina.

Não à toa há esforços crescentes por parte do governo brasileiro para ajudar seu aliado ideológico. A percepção é que a crise deve se agravar e favorecer candidatos à direita, como aliás já se observa em outros países sul-americanos.

A revanche como política de governo

O Estado de S. Paulo

Se Lula se inclina cada vez mais a apelar à emoção, ao passado e à polarização, não é só por ressentimento, mas para disfarçar sua falta de rumo, de ideias novas e de base parlamentar

O governo tem imensos desafios, porque o País tem imensos desafios: o desafio conjuntural, de cicatrizar feridas abertas pela pandemia na educação, na saúde ou no mercado de trabalho; o estrutural, de criar condições para um desenvolvimento sustentável; e o político, cuja superação é precondição para enfrentar os outros, de apaziguar as tensões que dilaceram o debate público pelo menos desde 2013.

Há sinais de sensibilidade para esses desafios nos recessos da consciência do presidente Lula da Silva. Sua principal promessa de campanha, recorde-se, foi governar com uma “frente ampla democrática”. “Nosso governo não será um governo do PT”, disse ainda no segundo turno. “Não existem dois Brasis”, declarou logo depois de eleito. “Não há tempo para vingança, para raiva, para ódio. O tempo é de governar.”

Mas há um abismo entre esta sensibilidade e a ação. Primeiro, porque falta um plano inovador de governo. Mas, sobretudo, porque dos recessos mais obscuros da consciência do presidente brota forte um sentimento que obnubila o planejamento e a articulação política e sufoca os ânimos conciliatórios que ele diz ter: o ressentimento.

Ante a decisão da Justiça Eleitoral de cassar o mandato do deputado Deltan Dallagnol, por supostamente não atender aos requisitos da legislação eleitoral, um lacônico “nada a declarar” seria a única resposta desejável de um governo responsável e cônscio de que não há tempo a perder para congregar forças aptas a enfrentar os desafios do País. Mas, ao invés disso, o governo petista, como se fosse liderado por crianças pirracentas, encontrou tempo para empregar a máquina do Estado para fabricar memes tripudiando seu desafeto.

Ao invés de jogar água na fervura, o governo sopra a brasa. Mas, muito mais que um desabafo, a euforia juvenil ante os revezes de adversários como Dallagnol sugere nervosismo e até mais: uma estratégia calculada. O governo se inclina cada vez mais a apelar à emoção, ao passado e à polarização para justificar sua presença no Planalto como um muro de contenção à barbárie bolsonarista. Mas essa cortina de fumaça não disfarça a realidade da falta de rumo, de ideias novas e de base. Neste vácuo, o revanchismo se consolida cada vez mais como política de governo.

A educação, por exemplo, precisa de planos para compensar o déficit gerado pela pandemia, de soluções para fortalecer a aprendizagem e a formação dos professores e de um sistema de cursos técnicos e profissionalizantes para enfrentar as transformações do mercado de trabalho. Mas a principal medida do governo foi suspender a reforma do ensino médio. A maior chaga social do

Brasil, o saneamento básico, precisa de investimentos e planos consistentes de parcerias público-privadas. Mas o governo empenha-se em desconstruir o Marco do Saneamento.

O revanchismo é flagrante nos ataques à Lei das Estatais ou das Agências Reguladoras, à independência do Banco Central ou ao teto de gastos – marcos criados pelo Congresso justamente para pôr fim à malversação de recursos públicos e à sangria fiscal que grassaram nas gestões petistas, arrebentando a economia e desmoralizando a política.

Ao invés de oxigenar o País com novas políticas, o governo se empenha em reciclar políticas passadas. Ao invés de colocar o País na rota do futuro, enfrentando desafios inéditos do presente, empenha-se em reescrever a história e apagar da memória nacional desmandos como o mensalão, o petrolão ou a recessão, como se fossem mera narrativa e injustiça da oposição. Ao invés de aprender com seus erros e caminhar para frente com o Congresso, empenhase em desconstruir marcos criados pelo Congresso para sanar esses erros. Mesmo sua proposta mais consistente para promover o crescimento sustentável, o marco fiscal é mais ameaçado pelo próprio PT do que pela oposição.

Qual a chance de se discutir a sério políticas públicas que demandam um mínimo de coesão social e articulação política quando a vingança domina os corações e mentes no governo? Se Lula quer que esse mandato seja seu melhor, precisa refrear em si e na militância o rancor e começar a fazer política de fato. Se, como ele mesmo disse, “é tempo de governar”, então que o faça.l

Nem só punitivismo, nem só garantismo

O Estado de S. Paulo

É preciso rever os dados do sistema carcerário e a quantidade e a qualidade do encarceramento, ampliar ofertas de ressocialização e separar presos de alta e baixa periculosidade

O governo articula um censo para uniformizar os dados sobre a situação carcerária no Brasil. O chamado Projeto Mandela é urgente. Além da escassez de dados para se traçar perfis socioeconômicos da população carcerária, há discrepâncias até nos números absolutos. As diferenças entre as estatísticas do Ministério da Justiça e do Conselho Nacional de Justiça, por exemplo, se contam na casa das dezenas de milhares. Mas um diagnóstico preciso é só o primeiro passo.

Diz-se que o Brasil “prende muito e prende mal”. A segunda afirmação é consensual. Mas, até por isso, a primeira é relativa.

Por um lado, o Brasil prende pouco. Mais de 60% dos homicídios ficam sem esclarecimento. Há centenas de milhares de mandados de prisão não cumpridos. Além disso, contrariando o poder constituinte (que exigiu tratamento diferenciado dos presos conforme seu grau de periculosidade) e usurpando o Legislativo, o Supremo Tribunal Federal eliminou, em 2006, o regime integral fechado para condenados por crimes hediondos e assemelhados. A partir daí se acumularam os casos escandalosos de abrandamento de pena e saídas temporárias de condenados por crimes brutais.

Ao mesmo tempo, o Brasil prende muito. O País tem a terceira maior população carcerária do mundo, só atrás de China e EUA. Mas, se nesses países a taxa está estável ou declinante, no Brasil ela cresce aceleradamente. Entre 2000 e 2014, por exemplo, a população carcerária cresceu em média 7% ao ano, ante 1,1% do conjunto da população.

Certo é que o Brasil prende mal. Cerca de 40% dos presos são provisórios. Estes encarcerados e outros condenados por crimes não hediondos ou violentos são obrigados a conviver com uma minoria de presos de alta periculosidade e líderes de facções criminosas (cerca de 13%), a quem têm de prestar vassalagem. Resultado: na esmagadora maioria das vezes o sujeito entra ruim e sai pior. A taxa de reincidência chega a 70%, enquanto a média na Europa e nos EUA é 16%.

O trabalho das facções de transformar os presídios em usinas de criminosos é facilitado pelas condições sub-humanas do cárcere. A superlotação chegou a beirar 2 presos para 1 vaga e em muitos Estados ela ultrapassa essa proporção. Só 15% dos presos estudam e 18% trabalham.

Uma infraestrutura maior e mais eficiente é necessária tanto para oferecer condições dignas quanto para aumentar o isolamento dos presos, que têm fácil acesso a celulares, drogas e armas. Os recursos muitas vezes não são utilizados por falta de qualidade técnica das gestões subnacionais. A superlotação e a exposição ao crime organizado também devem ser enfrentadas se revendo o sistema de penas para criminosos de menor periculosidade, que podem responder com penas alternativas, e também se investindo no isolamento dos presos de alta periculosidade.

Um bom sistema carcerário deveria proteger a sociedade isolando os criminosos, dissuadir potenciais delinquentes e ressocializar os condenados. Se as disfunções do sistema não forem sanadas, ele seguirá produzindo o exato oposto dessas metas. Mas, para tanto, será preciso sanar disfunções culturais na compreensão do direito penal.

À direita, muitos escandalizados justamente com a criminalidade querem indiscriminadamente menos leniência, em favor de mais punição. À esquerda, muitos escandalizados justamente com as desigualdades sociais querem indiscriminadamente menos punição, em favor de medidas preventivas. Ambos estão em parte certos – mas em parte errados. Como se vê, no Brasil convivem o excesso e a falta de repressão. O problema é que, aferrados aos seus dogmas “punitivistas” e “garantistas”, ambos os lados negligenciam evidências para discriminar os excessos e faltas das políticas carcerárias, com resultados contraproducentes para ambos. Os excessos de repressão colaboram para transformar os presídios em escolas do crime que subsidiam a violência que horroriza a direita. Mas os excessos de impunidade também colaboram para facilitar as operações do crime organizado e dos criminosos comuns que ameaçam principalmente a população mais pobre que a esquerda jura defender.l

Inteligência artificial na mira

O Estado de S. Paulo

Europa avança na regulação, mostrando um caminho para enfrentar os dilemas judiciais e éticos da IA

A União Europeia (UE) acaba de sinalizar que pretende ser dura na regulação da inteligência artificial (IA), um desafio que governos do mundo inteiro terão que enfrentar. Como noticiou a agência de notícias Bloomberg, as comissões de Mercado Interno e Justiça do Parlamento Europeu aprovaram proposta com uma série de exigências para as empresas responsáveis pela criação de sistemas como o ChatGPT, da OpenAI, ou o Bard, do Google. Uma delas determina que as empresas façam avaliações de risco dessas novas tecnologias, enquanto outra prevê transparência no sentido de deixar claro aos usuários que estão interagindo com uma máquina ou diante de conteúdo gerado por IA.

A preocupação dos parlamentares europeus ecoa a perplexidade global diante dos avanços recentes da inteligência artificial, especificamente o chamado processamento de linguagem natural − que habilita sistemas como o ChatGPT, que viralizou logo após seu lançamento em novembro. A capacidade de produzir textos com a complexidade e a coerência de um ser humano, a ponto de responder a questões e ser aprovado em exames escolares e profissionais, acendeu um sinal de alerta em especialistas de diversas áreas.

As implicações da IA, claro, permanecem ignoradas em sua real extensão. Mas o que se viu até aqui permite antever profundas transformações no mundo do trabalho e em setores como a educação. Um perigo evidente diz respeito ao uso desses novos sistemas para a produção de desinformação, dada a sua capacidade de gerar falsas notícias em escala industrial e em tempo recorde, com enorme poder de convencimento − uma verdadeira ameaça às democracias. Detalhe: não só na forma de texto, mas também de imagens.

Não à toa, a proposta aprovada pelas duas comissões determina que as empresas apresentem uma lista do material utilizado para treinar os modelos de inteligência artificial. Não se trata apenas de conter a desinformação: dependendo das fontes que abasteçam esses sistemas, há um potencial assustador de difusão de preconceitos e de predomínio ou silenciamento de vozes. Algo que desperta especial preocupação nos sistemas de reconhecimento facial por inteligência artificial. Não surpreende, então, que a proposta recém-aprovada proíba o uso de inteligência artificial para a identificação de pessoas em áreas públicas.

Os pontos chancelados por vasta maioria de parlamentares até aqui ainda terão um longo caminho para virar lei. De acordo com a Bloomberg, o tema deverá ser votado em junho pelo plenário do Parlamento Europeu. O passo seguinte envolverá a negociação da versão final do texto com a Comissão Europeia e com os 27 países que integram a UE. Eis um debate que precisa avançar na Europa e em todo o mundo, incluindo o Brasil − onde uma comissão de especialistas se debruçou sobre o assunto e elaborou proposta que serviu de base ao Projeto de Lei 2.338/2023, recentemente apresentado pelo presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG). A inteligência artificial acena com inúmeros avanços, mas seus riscos não são nada desprezíveis, a começar por seus dilemas jurídicos e, principalmente, éticos. Por isso é imperativo que as democracias se mobilizem para enfrentá-los.

Política ambiental de Lula é posta em xeque na Amazônia

Valor Econômico

Exploração de petróleo na Margem Equatorial ameaça imagem externa propagandeada pelo governo

A prioridade do governo Lula para a agenda ambiental será testada em breve depois que eclodiu uma divergência previsível entre a Petrobras, o Ministério das Minas e Energia, e Marina Silva, ministra do Meio Ambiente, sobre a possibilidade de explorar petróleo na Margem Equatorial - faixa da bacia da foz do rio Amazonas que abarca do litoral do Amapá ao do Rio Grande do Norte, com 2.200 km de extensão. Se, por um lado, a margem é apontada como o novo Eldorado do petróleo, equivalente ao pré-sal - com estimativa de 10 a 14 bilhões de barris -, de outro leva o risco de desastres ambientais para perto da região amazônica, com sua comunidades indígenas, exuberante biodiversidade marinha e os maiores manguezais do mundo. Não é um conflito fácil de resolver. Ele exigirá a definição não apenas do que se quer da Petrobras na transição energética, mas também até aonde o país quer se comprometer com a proteção ambiental e sua determinação para fazê-lo.

Na quarta-feira, o Ibama negou autorização para que a Petrobras fizesse perfurações de pesquisa na área, apontando “graves inconsistências” que põem em dúvida a segurança de operações em “nova fronteira exploratória de alta vulnerabilidade socioambiental”. A Petrobras vai recorrer da decisão. O Ibama já havia negado licença para a BP e a Total Energies iniciarem exploração de blocos na região há quase 10 anos. As empresas desistiram e os repassaram para a Petrobras. O órgão analisa licenças para 21 blocos por ali (O Globo, 19 de maio), que foram licitados em 2013, no governo de Dilma Rousseff.

Os combustíveis fósseis estão condenados, se os governos quiserem deter o aquecimento global a menos de 2 C até o fim do século - a fronteira segura dos 1,5 C está em vias de ser transposta. A matriz brasileira, por seu lado, é limpa, especialmente no fornecimento de eletricidade, com 80% dela gerada por hidrelétricas. Haverá petróleo suficiente no Brasil para se chegar ao fim de uma era? E a que custo? A proteção do ambiente ganhou primazia ante as chances sempre existentes de se obter bilhões de dólares a mais arrancando petróleo de algum lugar.

As discussões no país já tomaram a senda imediatista, como sempre com os interesses voltados para o curto prazo. O senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP) deixará o partido de Marina Silva, indignado com a decisão do Ibama por, entre outros motivos, não ter consultado a população do Estado a respeito. Tomado de brios, o senador David Alcolumbre (UB-AP), presidente da Comissão de Constituição e Justiça da Casa, padrinho de três ministros da legenda no governo e um dos principais beneficiários do orçamento secreto, disse que lutará até o fim contra a determinação do órgão. No mesmo diapasão desses políticos, mas com outro argumento, o Ministério de Minas e Energia divulgou cálculos de que, na Margem Equatorial, poderão ser investidos US$ 56 bilhões, com perspectiva de arrecadação de US$ 200 bilhões, algo além de tudo necessário porque o pico de produção de petróleo no país será alcançado no último ano da década.

Não há dúvida de que o petróleo traz bilhões de royalties para um pequeno número de municípios e jorra recursos para os Estados, dinheiro que não promoveu distribuição equitativa de renda e desenvolvimento sustentável às cidades e regiões que beneficia. Há pouca dúvida também que com ele saem ganhando os políticos mais influentes - os que já existem e os que se criam - nesses currais eleitorais.

A União Brasil é o elo menos confiável da base governista e Marina terá agora contra si, além do influente Alcolumbre, Randolfe, que é o líder do governo no Congresso. O presidente da Petrobras, Jean Paul Prates, e o ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira (PSD), se aliam a eles nessa empreitada. Forma-se um arco de forças que pode forçar um desfecho semelhante ao que levou Marina Silva a deixar o governo em maio de 2008, quando Lula e sua chefe da Casa Civil, a desenvolvimentista Dilma Rousseff, aprovaram o início das obras de grandes hidrelétricas no rio Madeira, na Amazônia.

A situação agora, porém, é outra, bem diferente. O presidente Lula faz propaganda mundo afora como defensor intransigente da proteção da Amazônia e das causas ecológicas. A volta de Marina a seu lado foi um pacto selado em prol dessas causas e da urgência de reconstruir as instituições de fiscalização, regulação e vigilância, destruídas pelo governo de Jair Bolsonaro. Explorar ou não a Margem Equatorial é uma questão com peso suficiente para definir rumos vitais do governo. Não é pouca coisa que está em jogo.

A Amazônia é peça chave para deter o aquecimento global. Isso por si só endossaria a possibilidade, nada radical (já tomada, por exemplo, pelos EUA em algumas regiões), de proibir toda e qualquer atividade extrativista que a pudesse prejudicar. A solução intermediária seria possibilitar à Petrobras, desde que cumprisse todas as exigências técnicas do Ibama, examinar o potencial petrolífero da região - a Guiana nada em petróleo, mas o Suriname ao lado, não. Há um marco divisório a ser desenhado a partir da questão. A fragilidade do governo no Congresso não traz bons augúrios.

 

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