Piora universitária reflete mais que corte de verbas
O Globo
Queda no ranking das melhores do mundo
resulta de deficiências crônicas da pesquisa acadêmica brasileira
Das 2 mil melhores universidades do mundo,
só 54 estão no Brasil, segundo a avaliação de 2023 do Center for World
University Rankings (CWUR). Entre as
brasileiras mais bem colocadas, 29 perderam posições, 23 subiram no ranking e
duas mantiveram o mesmo patamar. É um resultado ruim para um
país que depende da produção de conhecimento para crescer e se desenvolver.
Mesmo a USP, líder na América Latina e 109º lugar no mundo, caiu seis posições. Perdeu pontos em qualidade do ensino, empregabilidade e qualidade do corpo docente, embora tenha melhorado em pesquisa. A UFRJ desceu 15 posições, ficando em 376º, atrás da Unicamp, que subiu duas, passando ao 344º lugar. Completam a lista das cinco melhores brasileiras a Unesp, em 424º, e a UFRGS, em 467º.
De modo geral, a queda se deveu ao
desempenho pior em pesquisa, indicador que tem maior peso no levantamento e
questão essencial para qualquer instituição de ensino superior. O argumento de
que faltam recursos é legítimo, mas explica apenas parte do problema. Todo
mundo sabe que as universidades passaram os últimos anos à míngua, enfrentando
sucessivos cortes e contingenciamentos que sufocaram não apenas as pesquisas,
mas serviços básicos para seu funcionamento. Estima-se que, entre 2014 e 2022,
o setor de Ciência e Tecnologia perdeu quase R$ 100 bilhões em verbas. O tombo
era previsível.
Mas esse foi um problema circunstancial.
Nossa academia padece de deficiências estruturais mais relevantes e insidiosas.
A realidade mostra grande distanciamento entre as universidades e a economia
real, de onde poderiam vir recursos capazes de suprir a penúria do Estado.
Muitas vezes, o empresário volta as costas para a academia, tal a distância
entre o que se pesquisa e a vida cotidiana. Não se trata de condenar a pesquisa
em ciência pura, muito menos de contestar a autonomia acadêmica, mas de
constatar o óbvio: as universidades precisam estar a serviço da sociedade, não
apenas ser sustentadas por ela. É preciso reduzir essa distância histórica para
que o país deslanche na geração de conhecimento vital para atingir o
desenvolvimento. Quanto mais próxima estiver a pesquisa do setor produtivo,
maiores os benefícios.
No mundo, há inúmeros exemplos de pesquisas
acadêmicas capazes de redesenhar o panorama econômico e social, do programa
espacial ao Vale do Silício, onde nasceram dentro de universidades dezenas de
corporações bilionárias. No Brasil, os únicos casos notáveis são Embrapa e
Embraer. Mais exemplos desse tipo ajudariam os próprios acadêmicos a convencer
as empresas da relevância de suas pesquisas.
O atual governo aumentou o orçamento das
universidades federais e do Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e
Tecnológico (FNDCT), principal financiador de pesquisas acadêmicas. A medida é
importante, mas não basta para levar as universidades brasileiras a outro
patamar. Elas precisam, antes de pedir mais verbas, aperfeiçoar a gestão de
seus recursos para melhorar o desempenho em indicadores de produção científica,
como obtenção de patentes, publicação de estudos etc. A falta de dinheiro
aflige a educação brasileira
em todos os níveis, em especial no ensino básico, que jamais recebeu do Estado
tratamento comparável ao dado ao ensino superior. É óbvio que, se a educação
começa mal, dificilmente terminará bem.
Regulação de apostas esportivas transcende
a questão tributária
O Globo
Governo parece encarar o escândalo no
futebol apenas como oportunidade de aumentar arrecadação de impostos
O escândalo da manipulação de resultados no
futebol demonstra a urgência de regular e fiscalizar sites e casas de apostas.
A CPI das Apostas no Congresso promete trazer propostas para isso. A intenção
do governo, já expressa, é criar uma secretaria no Ministério da Fazenda para
certificar esses ambientes, além de acompanhar o volume de dinheiro movimentado
e a arrecadação de impostos. Mas é duvidoso que essa seja a melhor estratégia
para o país.
Permitidas a partir de 2018, as apostas
movimentam, pelas estimativas do próprio governo, entre R$ 120 bilhões e R$ 150
bilhões (para ter uma base de comparação, as loterias da Caixa Econômica
faturaram R$ 23 bilhões em 2022). De acordo com algumas estimativas, já operam
algo como mil sites para apostar em partidas de futebol, cujos servidores e
sedes ficam longe do alcance da Receita Federal. Não é à toa que o governo
esteja de olho na dinheirama que passa ao largo de qualquer fiscalização.
Mas a visão meramente fiscalista da
regulamentação das apostas on-line seria um erro. Criar um apêndice da Receita
Federal no Ministério da Fazenda não basta para dar conta do desafio
regulatório. A pasta é historicamente voltada para garantir a arrecadação e
formular políticas econômicas. Não tem a cultura adequada para abrigar em sua
estrutura um órgão destinado a lidar não apenas com as máfias tentando burlar
regras para ganhar dinheiro fácil, mas com um universo que mistura saúde,
tecnologia digital e esportes.
O governo poderá até ficar satisfeito com a
receita tributária dos jogos, e mesmo assim o futebol brasileiro continuar a
perder credibilidade. Qualquer lance duvidoso alimenta discussões
intermináveis. Se a fiscalização das casas de apostas não garantir que sejam
confiáveis, haverá dúvida sobre a manipulação do resultado dos jogos.
Torcedores se afastarão de estádios e transmissões, e o futebol brasileiro
entrará numa crise inédita.
É necessário cercar a questão por todos os
lados. A regulação precisa estabelecer controles para identificar contas com
movimentações atípicas, que possam estar relacionadas a apostas em partidas
fraudadas. De acordo com o advogado Pedro Simões, do escritório Duarte Garcia,
Serra Netto e Terra, o Coaf, organismo que monitora transações financeiras,
seria indicado para atuar nesse campo. Ele sugere ainda um valor máximo para as
apostas mais sujeitas a fraude, como número de cartões ou pênaltis numa partida.
Há quem defenda uma agência específica, com a participação de Polícia Federal, Ministério Público, CBF e clubes. Na Espanha e na Alemanha, jogadores podem denunciar tentativas de aliciamento ou qualquer movimento suspeito em torno de um jogo, sob absoluto sigilo, por meio de um aplicativo. O importante é governo, CBF e clubes entenderem que no mundo das apostas no futebol e em qualquer outro jogo não se pode deixar brecha para a fraude, porque a credibilidade é o maior ativo do esporte.
A Amazônia e o calor
Folha de S. Paulo
Veto a ação da Petrobras na região mostra
nova direção no debate sobre o clima
Foi coincidência o Ibama negar
autorização para a Petrobras explorar petróleo da foz do Amazonas no
mesmo dia em que a Organização Meteorológica Mundial, entidade da ONU, anunciou
que o aquecimento global deve ultrapassar 1,5º C nos próximos cinco anos.
Coincidência eloquente, porém.
Esse limiar
de temperatura adicional havia sido fixado em 2015, no Acordo de Paris. Acima
dele, dizem projeções de especialistas, eventos climáticos extremos como a
tragédia de fevereiro em São Sebastião (SP) ou a seca de três anos na Argentina
se tornarão mais intensos, frequentes e devastadores.
Do ângulo da mudança do clima, não faz
sentido abrir frentes de extração de combustíveis fósseis (carvão mineral, óleo
e gás). Sua queima seguirá emitindo gases do efeito estufa e realimentando o
aumento da temperatura.
Para não cruzar de modo perene o teto de
1,5º C, que tem por referência a média das décadas 1850 a 1900, a economia
mundial precisa cortar 43% das emissões nos próximos sete anos. E, ainda mais
desafiador, reduzi-las a zero até 2050. Elas seguem em alta, entretanto.
O calor adicionado à atmosfera por
atividades humanas já ultrapassou 1,1º C, na comparação com o período
pré-industrial. A previsão de que alcançará 1,5º C até 2027 não significa que
ficará acima disso de maneira permanente e desastrosa, apenas que seguimos no
rumo direto para o abismo climático.
Causam apreensão as indicações de que um
novo El Niño está a se formar, pois esse aquecimento das águas superficiais do
Pacífico faz subir a temperatura global. Os últimos três anos presenciaram o
fenômeno oposto, La Niña, que vinha contrabalançando a tendência de alta.
Os últimos oito anos foram os mais quentes
já registrados na Terra. Verdade que o forte El Niño de 2016 contribuiu muito
para isso; nesse intervalo, todavia, ocorreu a pandemia que quase paralisou a
atividade econômica no planeta.
O Brasil não precisa frear o próprio
desenvolvimento para contribuir para a mitigação da crise do clima, só
reorientá-lo. Nossa maior fonte de carbono está na derrubada de florestas, que
o novo governo promete reduzir drasticamente.
Não será fácil. A administração anterior,
de Jair Bolsonaro (PL), deu carta branca para grileiros, madeireiros e
garimpeiros avançarem na destruição da Amazônia e do cerrado. Em paralelo,
manietou e sucateou o Ibama, comprometendo sua capacidade de coibir crimes
ambientais.
A decisão de rejeitar a extração de
petróleo em blocos na foz do Amazonas, acatando parecer técnico, indica que uma
chave foi girada. O Brasil não é mais o vilão das negociações sobre o clima.
Peneira contra o sol
Folha de S. Paulo
Novo pacote argentino tenta amenizar
resultados de política econômica insensata
Alta na taxa de juros para 97% ao ano,
intervenções no mercado de câmbio e aumento em benefícios sociais.
ssas são algumas medidas
do novo pacote do governo argentino para conter impactos sociais da inflação,
estabilizar o valor do peso e dar uma resposta ao rápido agravamento da
conjuntura econômica, que ocorre a poucos meses da eleição presidencial.
À dramática escassez de divisas e aos
preços em disparada somou-se o choque da seca na produção da grãos. Os números
impressionam, com retração de 45% na colheita de soja e 50% na do milho.
O impacto para a economia se revela, além
da perda direta de renda em setor tão importante, no aumento do déficit público
e na piora da disponibilidade de dólares, a ponto de praticamente zerar as já
parcas reservas do país e forçar o governo à busca desesperada por novas fontes
de financiamento.
É nesse contexto que surgem tratativas em
torno de crédito brasileiro para o comércio exterior, por ora inconclusas, e de
trocas com a China na moeda do país asiático.
O objetivo é preservar o acesso à única
fonte remanescente de divisas para Buenos Aires. O Fundo Monetário
Internacional (FMI) acaba de liberar a quarta rodada de crédito, mais US$ 5,4
bilhões, totalizando US$ 28,9 bilhões como parte do acordo fechado em 2022.
A contrapartida à nova liberação é que o
país continue a implementar o programa de ajuste, que em 2023 prevê redução de
gastos como subsídios de energia, para diminuir o déficit público e seu
financiamento por emissão de moeda.
Ademais, buscam-se garantir juros acima da
inflação de modo a não espantar o que resta de crédito doméstico e salvaguardar
as reservas obtidas recentemente com vedações a novas intervenções no mercado
paralelo de câmbio.
Mesmo com o novo auxílio do FMI, contudo, o
quadro para este ano é de recessão, com queda do PIB de 2% a 3%, segundo
estimativas do setor privado —uma virada em relação ao crescimento de 5,4%
observado em 2022.
Com recessão, queda de receitas do governo,
falta de dólares, inflação acima de 100% e em aceleração, é difícil enxergar
qualquer alívio na conjuntura argentina.
Não à toa há esforços crescentes por parte do governo brasileiro para ajudar seu aliado ideológico. A percepção é que a crise deve se agravar e favorecer candidatos à direita, como aliás já se observa em outros países sul-americanos.
A revanche como política de governo
O Estado de S. Paulo
Se Lula se inclina cada vez mais a apelar à
emoção, ao passado e à polarização, não é só por ressentimento, mas para
disfarçar sua falta de rumo, de ideias novas e de base parlamentar
O governo tem imensos desafios, porque o
País tem imensos desafios: o desafio conjuntural, de cicatrizar feridas abertas
pela pandemia na educação, na saúde ou no mercado de trabalho; o estrutural, de
criar condições para um desenvolvimento sustentável; e o político, cuja
superação é precondição para enfrentar os outros, de apaziguar as tensões que
dilaceram o debate público pelo menos desde 2013.
Há sinais de sensibilidade para esses
desafios nos recessos da consciência do presidente Lula da Silva. Sua principal
promessa de campanha, recorde-se, foi governar com uma “frente ampla
democrática”. “Nosso governo não será um governo do PT”, disse ainda no segundo
turno. “Não existem dois Brasis”, declarou logo depois de eleito. “Não há tempo
para vingança, para raiva, para ódio. O tempo é de governar.”
Mas há um abismo entre esta sensibilidade e
a ação. Primeiro, porque falta um plano inovador de governo. Mas, sobretudo,
porque dos recessos mais obscuros da consciência do presidente brota forte um
sentimento que obnubila o planejamento e a articulação política e sufoca os
ânimos conciliatórios que ele diz ter: o ressentimento.
Ante a decisão da Justiça Eleitoral de
cassar o mandato do deputado Deltan Dallagnol, por supostamente não atender aos
requisitos da legislação eleitoral, um lacônico “nada a declarar” seria a única
resposta desejável de um governo responsável e cônscio de que não há tempo a
perder para congregar forças aptas a enfrentar os desafios do País. Mas, ao
invés disso, o governo petista, como se fosse liderado por crianças
pirracentas, encontrou tempo para empregar a máquina do Estado para fabricar
memes tripudiando seu desafeto.
Ao invés de jogar água na fervura, o
governo sopra a brasa. Mas, muito mais que um desabafo, a euforia juvenil ante
os revezes de adversários como Dallagnol sugere nervosismo e até mais: uma
estratégia calculada. O governo se inclina cada vez mais a apelar à emoção, ao
passado e à polarização para justificar sua presença no Planalto como um muro
de contenção à barbárie bolsonarista. Mas essa cortina de fumaça não disfarça a
realidade da falta de rumo, de ideias novas e de base. Neste vácuo, o
revanchismo se consolida cada vez mais como política de governo.
A educação, por exemplo, precisa de planos
para compensar o déficit gerado pela pandemia, de soluções para fortalecer a
aprendizagem e a formação dos professores e de um sistema de cursos técnicos e
profissionalizantes para enfrentar as transformações do mercado de trabalho.
Mas a principal medida do governo foi suspender a reforma do ensino médio. A
maior chaga social do
Brasil, o saneamento básico, precisa de
investimentos e planos consistentes de parcerias público-privadas. Mas o
governo empenha-se em desconstruir o Marco do Saneamento.
O revanchismo é flagrante nos ataques à Lei
das Estatais ou das Agências Reguladoras, à independência do Banco Central ou
ao teto de gastos – marcos criados pelo Congresso justamente para pôr fim à
malversação de recursos públicos e à sangria fiscal que grassaram nas gestões
petistas, arrebentando a economia e desmoralizando a política.
Ao invés de oxigenar o País com novas
políticas, o governo se empenha em reciclar políticas passadas. Ao invés de
colocar o País na rota do futuro, enfrentando desafios inéditos do presente,
empenha-se em reescrever a história e apagar da memória nacional desmandos como
o mensalão, o petrolão ou a recessão, como se fossem mera narrativa e injustiça
da oposição. Ao invés de aprender com seus erros e caminhar para frente com o
Congresso, empenhase em desconstruir marcos criados pelo Congresso para sanar
esses erros. Mesmo sua proposta mais consistente para promover o crescimento
sustentável, o marco fiscal é mais ameaçado pelo próprio PT do que pela
oposição.
Qual a chance de se discutir a sério
políticas públicas que demandam um mínimo de coesão social e articulação
política quando a vingança domina os corações e mentes no governo? Se Lula quer
que esse mandato seja seu melhor, precisa refrear em si e na militância o
rancor e começar a fazer política de fato. Se, como ele mesmo disse, “é tempo
de governar”, então que o faça.l
Nem só punitivismo, nem só garantismo
O Estado de S. Paulo
É preciso rever os dados do sistema
carcerário e a quantidade e a qualidade do encarceramento, ampliar ofertas de
ressocialização e separar presos de alta e baixa periculosidade
O governo articula um censo para
uniformizar os dados sobre a situação carcerária no Brasil. O chamado Projeto
Mandela é urgente. Além da escassez de dados para se traçar perfis
socioeconômicos da população carcerária, há discrepâncias até nos números
absolutos. As diferenças entre as estatísticas do Ministério da Justiça e do
Conselho Nacional de Justiça, por exemplo, se contam na casa das dezenas de
milhares. Mas um diagnóstico preciso é só o primeiro passo.
Diz-se que o Brasil “prende muito e prende
mal”. A segunda afirmação é consensual. Mas, até por isso, a primeira é
relativa.
Por um lado, o Brasil prende pouco. Mais de
60% dos homicídios ficam sem esclarecimento. Há centenas de milhares de
mandados de prisão não cumpridos. Além disso, contrariando o poder constituinte
(que exigiu tratamento diferenciado dos presos conforme seu grau de
periculosidade) e usurpando o Legislativo, o Supremo Tribunal Federal eliminou,
em 2006, o regime integral fechado para condenados por crimes hediondos e
assemelhados. A partir daí se acumularam os casos escandalosos de abrandamento
de pena e saídas temporárias de condenados por crimes brutais.
Ao mesmo tempo, o Brasil prende muito. O
País tem a terceira maior população carcerária do mundo, só atrás de China e
EUA. Mas, se nesses países a taxa está estável ou declinante, no Brasil ela
cresce aceleradamente. Entre 2000 e 2014, por exemplo, a população carcerária
cresceu em média 7% ao ano, ante 1,1% do conjunto da população.
Certo é que o Brasil prende mal. Cerca de
40% dos presos são provisórios. Estes encarcerados e outros condenados por
crimes não hediondos ou violentos são obrigados a conviver com uma minoria de
presos de alta periculosidade e líderes de facções criminosas (cerca de 13%), a
quem têm de prestar vassalagem. Resultado: na esmagadora maioria das vezes o
sujeito entra ruim e sai pior. A taxa de reincidência chega a 70%, enquanto a
média na Europa e nos EUA é 16%.
O trabalho das facções de transformar os
presídios em usinas de criminosos é facilitado pelas condições sub-humanas do
cárcere. A superlotação chegou a beirar 2 presos para 1 vaga e em muitos
Estados ela ultrapassa essa proporção. Só 15% dos presos estudam e 18%
trabalham.
Uma infraestrutura maior e mais eficiente é
necessária tanto para oferecer condições dignas quanto para aumentar o
isolamento dos presos, que têm fácil acesso a celulares, drogas e armas. Os
recursos muitas vezes não são utilizados por falta de qualidade técnica das
gestões subnacionais. A superlotação e a exposição ao crime organizado também
devem ser enfrentadas se revendo o sistema de penas para criminosos de menor
periculosidade, que podem responder com penas alternativas, e também se
investindo no isolamento dos presos de alta periculosidade.
Um bom sistema carcerário deveria proteger
a sociedade isolando os criminosos, dissuadir potenciais delinquentes e
ressocializar os condenados. Se as disfunções do sistema não forem sanadas, ele
seguirá produzindo o exato oposto dessas metas. Mas, para tanto, será preciso
sanar disfunções culturais na compreensão do direito penal.
À direita, muitos escandalizados justamente
com a criminalidade querem indiscriminadamente menos leniência, em favor de
mais punição. À esquerda, muitos escandalizados justamente com as desigualdades
sociais querem indiscriminadamente menos punição, em favor de medidas
preventivas. Ambos estão em parte certos – mas em parte errados. Como se vê, no
Brasil convivem o excesso e a falta de repressão. O problema é que, aferrados
aos seus dogmas “punitivistas” e “garantistas”, ambos os lados negligenciam
evidências para discriminar os excessos e faltas das políticas carcerárias, com
resultados contraproducentes para ambos. Os excessos de repressão colaboram
para transformar os presídios em escolas do crime que subsidiam a violência que
horroriza a direita. Mas os excessos de impunidade também colaboram para
facilitar as operações do crime organizado e dos criminosos comuns que ameaçam
principalmente a população mais pobre que a esquerda jura defender.l
Inteligência artificial na mira
O Estado de S. Paulo
Europa avança na regulação, mostrando um
caminho para enfrentar os dilemas judiciais e éticos da IA
A União Europeia (UE) acaba de sinalizar
que pretende ser dura na regulação da inteligência artificial (IA), um desafio
que governos do mundo inteiro terão que enfrentar. Como noticiou a agência de
notícias Bloomberg, as comissões de Mercado Interno e Justiça do Parlamento
Europeu aprovaram proposta com uma série de exigências para as empresas
responsáveis pela criação de sistemas como o ChatGPT, da OpenAI, ou o Bard, do
Google. Uma delas determina que as empresas façam avaliações de risco dessas
novas tecnologias, enquanto outra prevê transparência no sentido de deixar
claro aos usuários que estão interagindo com uma máquina ou diante de conteúdo
gerado por IA.
A preocupação dos parlamentares europeus
ecoa a perplexidade global diante dos avanços recentes da inteligência
artificial, especificamente o chamado processamento de linguagem natural − que
habilita sistemas como o ChatGPT, que viralizou logo após seu lançamento em
novembro. A capacidade de produzir textos com a complexidade e a coerência de
um ser humano, a ponto de responder a questões e ser aprovado em exames
escolares e profissionais, acendeu um sinal de alerta em especialistas de
diversas áreas.
As implicações da IA, claro, permanecem
ignoradas em sua real extensão. Mas o que se viu até aqui permite antever
profundas transformações no mundo do trabalho e em setores como a educação. Um
perigo evidente diz respeito ao uso desses novos sistemas para a produção de
desinformação, dada a sua capacidade de gerar falsas notícias em escala
industrial e em tempo recorde, com enorme poder de convencimento − uma
verdadeira ameaça às democracias. Detalhe: não só na forma de texto, mas também
de imagens.
Não à toa, a proposta aprovada pelas duas
comissões determina que as empresas apresentem uma lista do material utilizado
para treinar os modelos de inteligência artificial. Não se trata apenas de
conter a desinformação: dependendo das fontes que abasteçam esses sistemas, há
um potencial assustador de difusão de preconceitos e de predomínio ou
silenciamento de vozes. Algo que desperta especial preocupação nos sistemas de
reconhecimento facial por inteligência artificial. Não surpreende, então, que a
proposta recém-aprovada proíba o uso de inteligência artificial para a
identificação de pessoas em áreas públicas.
Os pontos chancelados por vasta maioria de parlamentares até aqui ainda terão um longo caminho para virar lei. De acordo com a Bloomberg, o tema deverá ser votado em junho pelo plenário do Parlamento Europeu. O passo seguinte envolverá a negociação da versão final do texto com a Comissão Europeia e com os 27 países que integram a UE. Eis um debate que precisa avançar na Europa e em todo o mundo, incluindo o Brasil − onde uma comissão de especialistas se debruçou sobre o assunto e elaborou proposta que serviu de base ao Projeto de Lei 2.338/2023, recentemente apresentado pelo presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG). A inteligência artificial acena com inúmeros avanços, mas seus riscos não são nada desprezíveis, a começar por seus dilemas jurídicos e, principalmente, éticos. Por isso é imperativo que as democracias se mobilizem para enfrentá-los.
Política ambiental de Lula é posta em xeque
na Amazônia
Valor Econômico
Exploração de petróleo na Margem Equatorial
ameaça imagem externa propagandeada pelo governo
A prioridade do governo Lula para a agenda
ambiental será testada em breve depois que eclodiu uma divergência previsível
entre a Petrobras,
o Ministério das Minas e Energia, e Marina Silva, ministra do Meio Ambiente,
sobre a possibilidade de explorar petróleo na Margem Equatorial - faixa da
bacia da foz do rio Amazonas que abarca do litoral do Amapá ao do Rio Grande do
Norte, com 2.200 km de extensão. Se, por um lado, a margem é apontada como o
novo Eldorado do petróleo, equivalente ao pré-sal - com estimativa de 10 a 14
bilhões de barris -, de outro leva o risco de desastres ambientais para perto
da região amazônica, com sua comunidades indígenas, exuberante biodiversidade
marinha e os maiores manguezais do mundo. Não é um conflito fácil de resolver.
Ele exigirá a definição não apenas do que se quer da Petrobras na
transição energética, mas também até aonde o país quer se comprometer com a
proteção ambiental e sua determinação para fazê-lo.
Na quarta-feira, o Ibama negou autorização
para que a Petrobras fizesse
perfurações de pesquisa na área, apontando “graves inconsistências” que põem em
dúvida a segurança de operações em “nova fronteira exploratória de alta
vulnerabilidade socioambiental”. A Petrobras vai
recorrer da decisão. O Ibama já havia negado licença para a BP e a Total
Energies iniciarem exploração de blocos na região há quase 10 anos. As empresas
desistiram e os repassaram para a Petrobras.
O órgão analisa licenças para 21 blocos por ali (O Globo, 19 de maio), que
foram licitados em 2013, no governo de Dilma Rousseff.
Os combustíveis fósseis estão condenados,
se os governos quiserem deter o aquecimento global a menos de 2 C até o fim do
século - a fronteira segura dos 1,5 C está em vias de ser transposta. A matriz
brasileira, por seu lado, é limpa, especialmente no fornecimento de
eletricidade, com 80% dela gerada por hidrelétricas. Haverá petróleo suficiente
no Brasil para se chegar ao fim de uma era? E a que custo? A proteção do
ambiente ganhou primazia ante as chances sempre existentes de se obter bilhões
de dólares a mais arrancando petróleo de algum lugar.
As discussões no país já tomaram a senda
imediatista, como sempre com os interesses voltados para o curto prazo. O
senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP) deixará o partido de Marina Silva,
indignado com a decisão do Ibama por, entre outros motivos, não ter consultado
a população do Estado a respeito. Tomado de brios, o senador David Alcolumbre
(UB-AP), presidente da Comissão de Constituição e Justiça da Casa, padrinho de
três ministros da legenda no governo e um dos principais beneficiários do
orçamento secreto, disse que lutará até o fim contra a determinação do órgão.
No mesmo diapasão desses políticos, mas com outro argumento, o Ministério de
Minas e Energia divulgou cálculos de que, na Margem Equatorial, poderão ser investidos
US$ 56 bilhões, com perspectiva de arrecadação de US$ 200 bilhões, algo além de
tudo necessário porque o pico de produção de petróleo no país será alcançado no
último ano da década.
Não há dúvida de que o petróleo traz
bilhões de royalties para um pequeno número de municípios e jorra recursos para
os Estados, dinheiro que não promoveu distribuição equitativa de renda e
desenvolvimento sustentável às cidades e regiões que beneficia. Há pouca dúvida
também que com ele saem ganhando os políticos mais influentes - os que já
existem e os que se criam - nesses currais eleitorais.
A União Brasil é o elo menos confiável da
base governista e Marina terá agora contra si, além do influente Alcolumbre,
Randolfe, que é o líder do governo no Congresso. O presidente da Petrobras,
Jean Paul Prates, e o ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira (PSD), se
aliam a eles nessa empreitada. Forma-se um arco de forças que pode forçar um
desfecho semelhante ao que levou Marina Silva a deixar o governo em maio de
2008, quando Lula e sua chefe da Casa Civil, a desenvolvimentista Dilma
Rousseff, aprovaram o início das obras de grandes hidrelétricas no rio Madeira,
na Amazônia.
A situação agora, porém, é outra, bem
diferente. O presidente Lula faz propaganda mundo afora como defensor
intransigente da proteção da Amazônia e das causas ecológicas. A volta de
Marina a seu lado foi um pacto selado em prol dessas causas e da urgência de
reconstruir as instituições de fiscalização, regulação e vigilância, destruídas
pelo governo de Jair Bolsonaro. Explorar ou não a Margem Equatorial é uma
questão com peso suficiente para definir rumos vitais do governo. Não é pouca
coisa que está em jogo.
A Amazônia é peça chave para deter o
aquecimento global. Isso por si só endossaria a possibilidade, nada radical (já
tomada, por exemplo, pelos EUA em algumas regiões), de proibir toda e qualquer
atividade extrativista que a pudesse prejudicar. A solução intermediária seria
possibilitar à Petrobras,
desde que cumprisse todas as exigências técnicas do Ibama, examinar o potencial
petrolífero da região - a Guiana nada em petróleo, mas o Suriname ao lado, não.
Há um marco divisório a ser desenhado a partir da questão. A fragilidade do
governo no Congresso não traz bons augúrios.
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