O Estado de S. Paulo
As palavras democracia, justiça, direito e
liberdade são indefiníveis. Não passam de aspirações que o cidadão comum alimenta,
imagina e pacientemente aguarda
Em rasgo de sinceridade – atitude que lhe é
incomum –, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva declarou que o regime
democrático se caracteriza pela relatividade.
Examinando os fatos da nossa história e a
afirmação feita pelo presidente Lula, devemos concluir que o regime militar
(1964-1985) foi ditadura relativa, ou, em sentido contrário, democracia
relativa.
Lendo o Ato Institucional de 9 de abril de 1964, a conclusão não poderia ser outra. Afinal, no documento determinavam os integrantes do Comando Supremo da Revolução que mantinham a Constituição de 1946, limitando-se “a modificá-la, apenas na parte relativa aos poderes do presidente da República, a fim de que este possa cumprir a missão de restaurar no Brasil a ordem econômica e financeira e tomar as urgentes medidas no sentido de drenar o bolsão comunista, cuja purulência já se havia infiltrado não só na cúpula do governo, como nas suas dependências administrativas”. Já ferida de morte, congelava-se o cadáver da Constituição, instituindo-se o modelo da democracia relativa.
A Constituição de 1967, discutida e
aprovada em prazo marcado, pela Câmara dos Deputados e pelo Senado, convertidos
pelo presidente Castelo Branco em Assembleia Constituinte, também implantou
democracia relativa, na medida em que manteve o Poder Judiciário e o Poder
Legislativo, ambos em precário estado de funcionamento. Excluiu, todavia, de
apreciação judicial os atos praticados pelo Comando Supremo da Revolução de 31
de março de 1964 e todos os demais cometidos com base nos Atos Institucionais
números 1, 2, 3 e 4, além de outras medidas de arbítrio relacionadas no Art.
173.
Na opinião de Lula, as ditaduras de Nicolás
Maduro, de Daniel Ortega e de Cuba devem ser democracias ou ditaduras
relativas. Idêntica avaliação deve fazer da Rússia de Vladimir Putin, o criminoso
invasor da Ucrânia, e da República Popular da China, governada por Xi Jinping
desde 2013 com poderes absolutos.
Embora o preâmbulo da Constituição de 1988
diga que os “representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembleia Nacional
Constituinte”, ali se encontravam para “instituir um Estado Democrático,
destinado a assegurar os direitos sociais e individuais, a liberdade, a
segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores
supremos (...)”, há muito deixamos de ser a democracia dos nossos sonhos.
O filósofo e historiador político italiano
Norberto Bobbio (1909-2004) consome páginas do precioso Dicionário de Política
(Ed. UNB, Brasília, DF, 1994) sem conseguir nos oferecer definição objetiva de
democracia. Para ele, “na teoria política contemporânea as definições de
democracia tendem a resolver-se e a esgotar-se num elenco mais ou menos amplo,
segundo os autores, de regras de jogo, ou, como se diz, de ‘procedimentos
universais’” (vol. 1, página 326).
Segundo o professor Ricardo Peake Braga, no
recente livro Juristocracia e o Fim da Democracia, “nem a etimologia da palavra
democracia (poder/governo do povo) impediu a apropriação indébita do termo para
que designasse regimes em que, claramente, o povo não tinha qualquer influência
ou participação no exercício efetivo do poder. Exemplos dessa incongruência
foram as chamadas ‘democracias populares’, como se intitularam os regimes
comunistas de inspiração soviética no século 20” (Ed. E.D.A., Londrina, PR, 2021,
página 41).
Estou convencido de que as palavras
democracia, justiça, direito e liberdade são indefiníveis. Não passam de
aspirações que o cidadão comum, impotente diante do arbítrio dos agentes do
Estado, alimenta, imagina e pacientemente aguarda.
Nas eleições de 1986, sob o manto da Emenda
Constitucional n.º 1/1969, os eleitores ignoravam que elegeriam deputados e
senadores com poderes constituintes. A conversão do Poder Legislativo em Poder
Constituinte foi iniciativa do presidente José Sarney, no exercício de
prerrogativa concedida pela Emenda Constitucional n.º 26, de 17/11/1985, para
saldar compromisso de campanha do dr. Tancredo Neves.
A Assembleia Constituinte se deixou dominar
por clima de revanchismo festivo, impregnado de forte componente anárquico.
Produziu a segunda maior Constituição do mundo, com 245 artigos, secundados
pelo Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, com outros 70, aos quais
o Poder Legislativo acrescentou 44 por conta própria.
A Constituição está desfigurada por 126 emendas.
A mais recente, em tramitação, trata da reforma tributária. Outras mais virão,
informadas pela crença no poder sobrenatural da palavra. Muitos dispositivos
aguardam regulamentação. Outros são fontes de intrigas e de intermináveis
disputas, causadas pela impossibilidade de racional interpretação. É o caso do
art. 142, sobre as Forças Armadas, colocadas “sob a autoridade suprema do
presidente da República”. Admite, porém, a possibilidade (jamais tentada) de um
dos Três Poderes convocá-las para garantia da lei e da ordem.
Entenderam? Eu não.
*Advogado, autor de ‘Greve – o grevismo na nova República’, foi ministro do Trabalho e Presidente do Tribunal Superior do Trabalho
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