sexta-feira, 28 de julho de 2023

César Felício - Marielle influi no cenário político

Valor Econômico

Levar a discussão sobre a reeleição das presidências do Legislativo para o Supremo, mesmo existindo norma constitucional sobre o tema, corrói democracia

Há pouco mais de um ano o ex-presidente Jair Bolsonaro comentou que “ninguém conhecia ou se lembrava de Marielle até sua morte”.

A frase, desrespeitosa à memória da vereadora Marielle Franco, como aliás têm sido praticamente todas as referências feitas por ele à política carioca assassinada em 2018, incute apesar disso um fundo de verdade.

Marielle de fato ganhou uma dimensão que não tinha em vida, ao ser vítima, ao que tudo indica, da milicianização do Rio de Janeiro. Os vivos por vezes são governados pelos mortos, para lembrar o filósofo positivista Auguste Comte, e Marielle morta influi no debate político brasileiro. Esta influência subiu um degrau desde a posse do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, e a delação premiada de um dos seus executores sugere que ela crescerá.

Não existe nada que tenha vindo à público que ligue de alguma maneira o grupo político de Jair Bolsonaro à execução da vereadora nos idos de março de 2018, mas isso não basta para blindá-lo politicamente.

A cada novo fato que se traz à tona se reforça um clima desfavorável ao bolsonarismo. Os tiros que mataram Marielle ricochetearam em Bolsonaro, por todo o conjunto de circunstâncias que o caso encerra.

São muitos símbolos reunidos numa pessoa só e em um único episódio: a mulher mãe, negra, favelada, homossexual e de esquerda morta por ex-policiais militares vinculados ao submundo do Rio. Seu assassinato na sequência de uma agenda pública, derivada do exercício de seu mandato parlamentar, feriu a própria institucionalidade democrática que o ex-presidente relativizou diversas vezes.

Ronnie Lessa, o atirador, ex-policial militar, foi vizinho de porta de Bolsonaro e seu tiete declarado. Macalé, o agenciador, segundo o relato do delator, também ex-policial militar, foi assassinado em 2021 em circunstâncias que não foram esclarecidas. Caminhava em direção ao seu veículo, uma BMW.

O assassinato de Marielle é um mito com tração própria que assombra o bolsonarismo apenas pela carga simbólica que comporta. Antes caminhava sozinho, mas agora ganhou asas no governo Lula. O presidente colocou o crime não esclarecido no centro do tabuleiro ao chamar Anielle Franco, irmã de Marielle, para a pasta de Igualdade Racial. A tradução da prioridade dada ao caso em termos práticos ficou clara com o anúncio do ministro da Justiça, Flávio Dino, da federalização do caso, assim que tomou posse.

Esta semana o ministro veio à público anunciar o avanço da apuração do caso com o encerramento da primeira fase da investigação, a definição dos executores. A presença de Flávio Dino no anúncio chama a atenção, já que as informações reveladas estão longe de representarem uma surpresa ou uma reviravolta no que se conhecia do crime.

Na realidade, a autoria do assassinato já estava assentada desde março de 2019, quando Ronnie Lessa, o pistoleiro, e Elcio Queiroz, o motorista e delator, foram presos e denunciados por homicídio qualificado pelo Ministério Público, denúncia esta que foi acatada pela Justiça no ano seguinte. O bombeiro militar Maxwell Corrêa, proprietário de uma BMW e de uma mansão triplex no Recreio dos Bandeirantes, preso esta semana por cumplicidade com a dupla na ação criminosa, já havia sido condenado em 2021 por obstrução da Justiça.

A Polícia Civil do Rio, muito criticada pela inação e pelo desnorteio, conseguiu ainda durante a intervenção federal de 2018 resposta à pergunta sobre quem matou Marielle. Não houve solução para dúvida sobre o mando do crime e sua motivação. A investigação passou a rodar em falso nos últimos quatro anos, coincidência ou não durante a era Bolsonaro. A condução do inquérito trocou de mão diversas vezes e há suspeitas fortes de interferência na investigação, com a plantação de pistas falsas.

O que o anúncio do ministro teve de mais relevante foi a sugestão de que a delação será um gatilho para novas revelações. “Nas próximas semanas provavelmente haverá novas operações derivadas das provas colhidas hoje”, afirmou Dino na segunda-feira.

Consultores políticos ouvidos pelo mercado perceberam que o engajamento do governo neste tema pode estar dentro de uma estratégia para isolar e enfraquecer ainda mais o ex-presidente Jair Bolsonaro, tornado inelegível no mês passado. “Não é à toa que a ofensiva neste assunto chega junto com outros temas na mesma seara, como a revisão da legislação sobre armamentos e o fim das escolas cívico-militares", disse Rafael Cortez, da Tendências.

O caso Marielle também afeta o balanço do poder dentro do governo. Nenhum dos 37 ministros de Lula se propõe a atingir de maneira tão implacável o coração do bolsonarismo como Flávio Dino demonstra. O 8 de janeiro só aumentou a munição do ministro. Se o governo depende do sucesso da política econômica para chegar como favorito no jogo eleitoral de 2026, o que dá protagonismo ao ministro da Fazenda, Fernando Haddad, a oposição para se manter competitiva parece longe de quebrar a dependência em relação a Bolsonaro, que tem Dino como seu algoz.

 

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