Valor Econômico
Levar a discussão sobre a reeleição das
presidências do Legislativo para o Supremo, mesmo existindo norma
constitucional sobre o tema, corrói democracia
Há pouco mais de um ano o ex-presidente
Jair Bolsonaro comentou que “ninguém conhecia ou se lembrava de Marielle até
sua morte”.
A frase, desrespeitosa à memória da
vereadora Marielle Franco, como aliás têm sido praticamente todas as
referências feitas por ele à política carioca assassinada em 2018, incute
apesar disso um fundo de verdade.
Marielle de fato ganhou uma dimensão que não tinha em vida, ao ser vítima, ao que tudo indica, da milicianização do Rio de Janeiro. Os vivos por vezes são governados pelos mortos, para lembrar o filósofo positivista Auguste Comte, e Marielle morta influi no debate político brasileiro. Esta influência subiu um degrau desde a posse do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, e a delação premiada de um dos seus executores sugere que ela crescerá.
Não existe nada que tenha vindo à público
que ligue de alguma maneira o grupo político de Jair Bolsonaro à execução da vereadora
nos idos de março de 2018, mas isso não basta para blindá-lo politicamente.
A cada novo fato que se traz à tona se
reforça um clima desfavorável ao bolsonarismo. Os tiros que mataram Marielle
ricochetearam em Bolsonaro, por todo o conjunto de circunstâncias que o caso
encerra.
São muitos símbolos reunidos numa pessoa só
e em um único episódio: a mulher mãe, negra, favelada, homossexual e de
esquerda morta por ex-policiais militares vinculados ao submundo do Rio. Seu
assassinato na sequência de uma agenda pública, derivada do exercício de seu
mandato parlamentar, feriu a própria institucionalidade democrática que o
ex-presidente relativizou diversas vezes.
Ronnie Lessa, o atirador, ex-policial
militar, foi vizinho de porta de Bolsonaro e seu tiete declarado. Macalé, o
agenciador, segundo o relato do delator, também ex-policial militar, foi
assassinado em 2021 em circunstâncias que não foram esclarecidas. Caminhava em
direção ao seu veículo, uma BMW.
O assassinato de Marielle é um mito com
tração própria que assombra o bolsonarismo apenas pela carga simbólica que
comporta. Antes caminhava sozinho, mas agora ganhou asas no governo Lula. O
presidente colocou o crime não esclarecido no centro do tabuleiro ao chamar
Anielle Franco, irmã de Marielle, para a pasta de Igualdade Racial. A tradução
da prioridade dada ao caso em termos práticos ficou clara com o anúncio do
ministro da Justiça, Flávio Dino, da federalização do caso, assim que tomou
posse.
Esta semana o ministro veio à público
anunciar o avanço da apuração do caso com o encerramento da primeira fase da
investigação, a definição dos executores. A presença de Flávio Dino no anúncio
chama a atenção, já que as informações reveladas estão longe de representarem
uma surpresa ou uma reviravolta no que se conhecia do crime.
Na realidade, a autoria do assassinato já
estava assentada desde março de 2019, quando Ronnie Lessa, o pistoleiro, e
Elcio Queiroz, o motorista e delator, foram presos e denunciados por homicídio
qualificado pelo Ministério Público, denúncia esta que foi acatada pela Justiça
no ano seguinte. O bombeiro militar Maxwell Corrêa, proprietário de uma BMW e
de uma mansão triplex no Recreio dos Bandeirantes, preso esta semana por
cumplicidade com a dupla na ação criminosa, já havia sido condenado em 2021 por
obstrução da Justiça.
A Polícia Civil do Rio, muito criticada
pela inação e pelo desnorteio, conseguiu ainda durante a intervenção federal de
2018 resposta à pergunta sobre quem matou Marielle. Não houve solução para
dúvida sobre o mando do crime e sua motivação. A investigação passou a rodar em
falso nos últimos quatro anos, coincidência ou não durante a era Bolsonaro. A
condução do inquérito trocou de mão diversas vezes e há suspeitas fortes de
interferência na investigação, com a plantação de pistas falsas.
O que o anúncio do ministro teve de mais
relevante foi a sugestão de que a delação será um gatilho para novas
revelações. “Nas próximas semanas provavelmente haverá novas operações
derivadas das provas colhidas hoje”, afirmou Dino na segunda-feira.
Consultores políticos ouvidos pelo mercado
perceberam que o engajamento do governo neste tema pode estar dentro de uma
estratégia para isolar e enfraquecer ainda mais o ex-presidente Jair Bolsonaro,
tornado inelegível no mês passado. “Não é à toa que a ofensiva neste assunto
chega junto com outros temas na mesma seara, como a revisão da legislação sobre
armamentos e o fim das escolas cívico-militares", disse Rafael Cortez, da
Tendências.
O caso Marielle também afeta o balanço do
poder dentro do governo. Nenhum dos 37 ministros de Lula se propõe a atingir de
maneira tão implacável o coração do bolsonarismo como Flávio Dino demonstra. O
8 de janeiro só aumentou a munição do ministro. Se o governo depende do sucesso
da política econômica para chegar como favorito no jogo eleitoral de 2026, o
que dá protagonismo ao ministro da Fazenda, Fernando Haddad, a oposição para se
manter competitiva parece longe de quebrar a dependência em relação a
Bolsonaro, que tem Dino como seu algoz.
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