O Globo
Polícia Civil e MP-RJ empacaram na
investigação sobre mandante e motivação do assassinato de Marielle
Nesta semana, quase cinco anos e meio
depois da execução da vereadora carioca Marielle
Franco e do motorista Anderson Gomes, o Brasil foi levado de
volta à noite de 14 de março de 2018, às horas que antecederam o crime, aos
dias seguintes. A entrada da Polícia Federal no caso, que deu na delação
premiada do ex-policial Élcio Queiroz, confirmou a autoria do duplo assassinato
e, sobretudo, descortinou a dinâmica de operação e a cadeia de conexões dos
assassinos de aluguel no Rio de Janeiro. Só muita cumplicidade de autoridades e
agentes da lei manteria atividade tão macabra quanto numerosa por tanto tempo
oculta, disfarçada, livre.
Élcio Queiroz contou que Marielle estava jurada de morte muitos meses antes da quarta-feira em que foi emboscada minutos depois de sair de uma reunião com jovens negras na Casa das Pretas, no Centro da capital fluminense. Teria ouvido de Ronnie Lessa, o PM reformado que puxou o gatilho de dentro do carro que o cúmplice dirigia, sobre uma tentativa frustrada em fins de 2017.
A informação surpreendeu a família e
pessoas próximas à vereadora. Confirmada, põe por terra uma hipótese que o
Ministério Público incluiu na denúncia apresentada contra os autores, em 2020.
Lessa teria começado a pesquisar, a partir de fevereiro de 2018, parlamentares
contrários à intervenção federal na Segurança Pública do Rio, decretada naquele
mesmo mês pelo então presidente Michel Temer. O interventor era o general Braga
Netto, mais tarde ministro da Casa Civil e da Defesa de Jair Bolsonaro,
eleito em outubro de 2018. Marielle fora escolhida relatora da comissão
instalada na Câmara de Vereadores do Rio para acompanhar e fiscalizar a
intervenção, duas semanas antes de ser executada.
Réu por duplo homicídio triplamente
qualificado (motivo torpe, emboscada e recurso que dificultou a defesa da
vítima), tentativa de homicídio contra a assessora Fernanda Chaves e
receptação, assim como Lessa, Élcio Queiroz tentou se livrar da imputação de
premeditação ao declarar que foi convocado para o crime na própria data da
execução. Na delação, ele aponta Maxwell Simões Correa — um ex-bombeiro de
patrimônio elevado já condenado por obstrução de justiça e ora preso em
Brasília — como o parceiro original de Lessa no monitoramento a Marielle.
Há verdades na delação de Élcio Queiroz,
todas elas muito inconvenientes para o Estado do Rio. O governador Cláudio
Castro, por sinal, era colega de Marielle na Câmara Municipal. Ambos
foram eleitos em 2016 para o primeiro mandato como vereadores. Tomaram posse em
2017. Na campanha de 2018, Castro foi eleito vice-governador na chapa com
Wilson Witzel, que estava num palanque com os também bolsonaristas Rodrigo
Amorim e Daniel Silveira quando quebraram a placa de rua em homenagem à
vereadora assassinada.
O governador, que substituiu Witzel,
afastado por impeachment, e foi reeleito em primeiro turno no ano passado, não
errou ao mencionar numa rede social que foram policiais fluminenses que
chegaram ao nome dos dois assassinos de Marielle e Anderson. Mas é verdade
também que tanto a Polícia Civil quanto o MP-RJ empacaram na investigação sobre
mandante e motivação, perguntas até hoje sem respostas. A esperança ressurgiu
com a entrada da PF no caso, por determinação do ministro da Justiça, Flávio
Dino. Ao ser empossado, diante de Anielle Franco, irmã de Marielle e hoje
ministra da Igualdade Racial de Lula, ele disse que esclarecer o assassinato
era “questão de honra”.
Detalhes da noite do crime foram
confirmados pelos investigadores em oito elementos de corroboração, incluindo o
motorista do táxi que levou os dois assassinos do local onde deixaram a arma,
no Méier, até a Barra, nas proximidades do condomínio Vivendas da Barra, onde
Lessa vivia até ser preso e onde o ex-presidente Jair Bolsonaro também residiu,
antes de chegar ao Planalto. São elementos que ratificam a autoria e levarão à
condenação de Queiroz e Lessa no tribunal do júri. No Instituto Marielle
Franco, a expectativa é que o julgamento ocorra ainda neste ano,
independentemente dos benefícios pela delação. Lessa já é condenado em segunda
instância na Justiça Federal por tráfico internacional de acessórios de armas e
no TJ-RJ por comércio ilegal de armas.
O relato de Queiroz, apenas no Anexo 2, o
único de teor conhecido, escancara o modus operandi da indústria da morte no
Rio. Envolve agentes da lei tornados criminosos, monitoramento e campana das
vítimas, descaracterização e posterior destruição de automóveis usados nas
execuções, comércio de armas extraviadas de instalações policiais ou
contrabandeadas, destruição de provas, execução de testemunhas e cúmplices,
pacto de silêncio. É uma rede que alcança autoridades, maus policiais e
bombeiros, grupos civis armados da milícia e do tráfico de drogas.
Afora a elucidação sobre mandante e motivo
do assassinato de Marielle, Dino afirmou que o novo eixo de investigação
renderá “desdobramentos sobre conexões e funcionamento do crime organizado no
Rio de Janeiro”. A morte de Marielle já resultou em inédita luta por justiça e
representatividade de mulheres negras nos espaços de poder político. Pode dar,
segundo o historiador Atila Roque, ex-diretor da Anistia Internacional Brasil,
no inquérito de maior impacto sobre relações do crime e das milícias com o
poder do Estado. Nas palavras dele, “quase um segundo tempo da CPI das
Milícias”, aquela que projetou (e pôs em risco) o então deputado estadual Marcelo
Freixo, com quem Marielle atuou na Alerj por uma década.
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