Valor Econômico
Smith ‘despolitiza’ as relações sociais,
buscando afirmar a autorregulação da sociedade econômica
Diriam os da antiga: reler o livro
“Economic Sentiments” de Emma Rothschild é bálsamo para a alma. A erudição e os
cuidados históricos e conceituais da autora também podem balançar os neurônios
dos interessados nos avanços e recuos da outrora chamada Economia Política,
hoje proclamada urbi et orbi como Ciência Econômica.
Entre tantas admiráveis passagens, escolhi
o capítulo 5, “The Bloody and Invisible Hand”.
Emma começa por suspeitar que Adam Smith
não estimava especialmente a mão invisível. Diz ela que a imagem da mão
invisível deveria ser interpretada como uma ironia. Em sua caminhada para
desvendar os significados que Smith teria emprestado à expressão Mão Invisível,
a autora encontra três sentidos em ocasiões bastante diferentes.
“O
primeiro uso, em sua ‘História da Astronomia’ (que se acredita ter sido escrita
na década de 1750, mas foi preservada por Smith para publicação póstuma), é
claramente irônico. Smith está falando sobre a credulidade das pessoas em
sociedades politeístas, que atribuem “os eventos irregulares da natureza”, como
trovões e tempestades, a “seres inteligentes, embora invisíveis - a deuses,
demônios, bruxas, gênios, fadas”. Não atribuem apoio divino ao “curso ordinário
das coisas”: “O fogo arde e a água refresca; corpos pesados descem, e
substâncias mais leves voam para cima, pela necessidade de sua própria
natureza; nem a mão invisível de Júpiter foi necessária para ser empregada
nesses assuntos”.
O segundo uso, diz Emma, está na “Teoria dos Sentimentos Morais”, em uma passagem publicada em 1759, e mantida inalterada ao longo das revisões subsequentes da obra por Smith. O irônico está aqui de uma maneira diferente. Smith está descrevendo alguns proprietários ricos particularmente desagradáveis, que não estão preocupados com a humanidade ou a justiça, mas que, em “seu egoísmo natural e rapacidade”, perseguem apenas “seus próprios desejos vãos e insaciáveis”. Empregam, no entanto, milhares de trabalhadores pobres para produzir mercadorias de luxo: “Eles são conduzidos por uma mão invisível a (...) sem querer, sem saber, promovem o interesse da sociedade”.
O terceiro uso da mão invisível por Smith
está na “Riqueza das Nações”, em um capítulo dedicado ao comércio
internacional. Ele argumenta fortemente contra as restrições às importações e
contra os comerciantes e fabricantes que apoiam tais restrições, formando “um
exército permanentemente superpovoado” que “em muitas ocasiões intimida o
Legislativo”. Os monopólios domésticos, diz ele, são vantajosos para indústrias
específicas, mas não para a “indústria geral da sociedade”. Se não houvesse
restrições à importação, no entanto, o comerciante ainda preferiria apoiar a
indústria nacional, no interesse de “sua própria segurança”. Promoverá, assim,
o interesse “da sociedade”: “Ele está neste, como em muitos outros casos,
conduzido por uma mão invisível para promover um fim que não fazia parte de sua
intenção”.
Peço licença ao leitor para algumas
modestas considerações já exaradas em outra ocasião.
Na “Teoria dos Sentimentos Morais”, Adam
Smith dispõe-se a refutar Hobbes e sua “tão odiosa doutrina e provar que,
anteriormente a qualquer lei ou instituição positiva, a mente estava dotada
naturalmente da faculdade que permitia distinguir, em certas ações e afeições,
as qualidades do certo, do louvável e do virtuoso, e, em outras, aquelas do
errado, do condenável e do vicioso... É através da razão que descobrimos estas
regras gerais de justiça que regulam nossas ações”.
Adam Smith faz nascer do casulo moral e
político do Iluminismo a crisálida da sociedade mercantil. É a troca de
mercadorias que torna os indivíduos privados interdependentes, definindo a
natureza da nova “sociabilidade”. Na “Riqueza das Nações”, os indivíduos,
produtores independentes de mercadorias, buscando o seu interesse, “constituem”
a sociedade. Smith se aventura a proceder à “despolitização” das relações
sociais, buscando afirmar a autorregulação da sociedade econômica.
O caráter natural e “espontâneo” do
intercâmbio de mercadorias se revela na sabedoria providencial e impessoal da
Mão Invisível, cujos movimentos, é bom insistir, conformam o comportamento e as
decisões dos indivíduos isolados.
Hesitações à parte, a “Riqueza das Nações”
empenha-se em argumentar contra as teorias econômicas do mercantilismo.
Enquanto há uma dependência do “político”, não é possível pensar a economia
como um sistema governado por leis naturais. Essas leis naturais estão
amparadas na “razão” que move os indivíduos, mas paradoxalmente, essa razão
paira acima das peculiaridades dos interesses individuais.
Esta é a “razão” das ambiguidades da Mão
Invisível nas três versões de Smith, ambiguidades apontadas brilhantemente por
Emma Rothschild. A economia surge, portanto, com a pretensão de se constituir
numa esfera privilegiada da convivência, em que a liberdade é uma imposição das
leis que regem a natureza humana. Tais leis devem seguir o seu curso,
desembaraçadas da interferência e do arbítrio da política.
No momento em que desabrocha a Economia
Política eram onipresentes os cânones da física newtoniana, paradigma
científico que vai se manter incólume ao longo do processo de evolução desse
campo do conhecimento, ou, como querem alguns, dessa ciência. Não por acaso, os
economistas estão permanentemente perquirindo as leis da sociedade dos
indivíduos envolvidos no intercâmbio generalizado de mercadorias. As leis que
regem a natureza humana, tal como as leis naturais da física, levam sempre ao
equilíbrio.
A despeito de seu naturalismo e
equilibrismo, Smith celebrou os Navigation Acts, entendidos por ele como
afirmação do poder nacional. Aqui, se insinua, sorrateira, a Mão Visível da
Política: “talvez a mais sábia de todas as regulamentações comerciais da
Inglaterra”. Em outra passagem Smith argumenta: “Se alguma manufatura
particular é necessária para a defesa da sociedade, não é sempre prudente
depender da oferta de nossos vizinhos”.
*Luiz Gonzaga Belluzzo é professor titular do Instituto de Economia da Unicamp e professor emérito da Universidade Federal de Goiás.
3 comentários:
Perfeito
Lendo e aprendendo.
Galipolo foi mais objetivo.
MAM
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