terça-feira, 4 de julho de 2023

Luiz Gonzaga Belluzzo* - Adam Smith e a mão invisível

Valor Econômico

Smith ‘despolitiza’ as relações sociais, buscando afirmar a autorregulação da sociedade econômica

Diriam os da antiga: reler o livro “Economic Sentiments” de Emma Rothschild é bálsamo para a alma. A erudição e os cuidados históricos e conceituais da autora também podem balançar os neurônios dos interessados nos avanços e recuos da outrora chamada Economia Política, hoje proclamada urbi et orbi como Ciência Econômica.

Entre tantas admiráveis passagens, escolhi o capítulo 5, “The Bloody and Invisible Hand”.

Emma começa por suspeitar que Adam Smith não estimava especialmente a mão invisível. Diz ela que a imagem da mão invisível deveria ser interpretada como uma ironia. Em sua caminhada para desvendar os significados que Smith teria emprestado à expressão Mão Invisível, a autora encontra três sentidos em ocasiões bastante diferentes.

 “O primeiro uso, em sua ‘História da Astronomia’ (que se acredita ter sido escrita na década de 1750, mas foi preservada por Smith para publicação póstuma), é claramente irônico. Smith está falando sobre a credulidade das pessoas em sociedades politeístas, que atribuem “os eventos irregulares da natureza”, como trovões e tempestades, a “seres inteligentes, embora invisíveis - a deuses, demônios, bruxas, gênios, fadas”. Não atribuem apoio divino ao “curso ordinário das coisas”: “O fogo arde e a água refresca; corpos pesados descem, e substâncias mais leves voam para cima, pela necessidade de sua própria natureza; nem a mão invisível de Júpiter foi necessária para ser empregada nesses assuntos”.

O segundo uso, diz Emma, está na “Teoria dos Sentimentos Morais”, em uma passagem publicada em 1759, e mantida inalterada ao longo das revisões subsequentes da obra por Smith. O irônico está aqui de uma maneira diferente. Smith está descrevendo alguns proprietários ricos particularmente desagradáveis, que não estão preocupados com a humanidade ou a justiça, mas que, em “seu egoísmo natural e rapacidade”, perseguem apenas “seus próprios desejos vãos e insaciáveis”. Empregam, no entanto, milhares de trabalhadores pobres para produzir mercadorias de luxo: “Eles são conduzidos por uma mão invisível a (...) sem querer, sem saber, promovem o interesse da sociedade”.

O terceiro uso da mão invisível por Smith está na “Riqueza das Nações”, em um capítulo dedicado ao comércio internacional. Ele argumenta fortemente contra as restrições às importações e contra os comerciantes e fabricantes que apoiam tais restrições, formando “um exército permanentemente superpovoado” que “em muitas ocasiões intimida o Legislativo”. Os monopólios domésticos, diz ele, são vantajosos para indústrias específicas, mas não para a “indústria geral da sociedade”. Se não houvesse restrições à importação, no entanto, o comerciante ainda preferiria apoiar a indústria nacional, no interesse de “sua própria segurança”. Promoverá, assim, o interesse “da sociedade”: “Ele está neste, como em muitos outros casos, conduzido por uma mão invisível para promover um fim que não fazia parte de sua intenção”.

Peço licença ao leitor para algumas modestas considerações já exaradas em outra ocasião.

Na “Teoria dos Sentimentos Morais”, Adam Smith dispõe-se a refutar Hobbes e sua “tão odiosa doutrina e provar que, anteriormente a qualquer lei ou instituição positiva, a mente estava dotada naturalmente da faculdade que permitia distinguir, em certas ações e afeições, as qualidades do certo, do louvável e do virtuoso, e, em outras, aquelas do errado, do condenável e do vicioso... É através da razão que descobrimos estas regras gerais de justiça que regulam nossas ações”.

Adam Smith faz nascer do casulo moral e político do Iluminismo a crisálida da sociedade mercantil. É a troca de mercadorias que torna os indivíduos privados interdependentes, definindo a natureza da nova “sociabilidade”. Na “Riqueza das Nações”, os indivíduos, produtores independentes de mercadorias, buscando o seu interesse, “constituem” a sociedade. Smith se aventura a proceder à “despolitização” das relações sociais, buscando afirmar a autorregulação da sociedade econômica.

O caráter natural e “espontâneo” do intercâmbio de mercadorias se revela na sabedoria providencial e impessoal da Mão Invisível, cujos movimentos, é bom insistir, conformam o comportamento e as decisões dos indivíduos isolados.

Hesitações à parte, a “Riqueza das Nações” empenha-se em argumentar contra as teorias econômicas do mercantilismo. Enquanto há uma dependência do “político”, não é possível pensar a economia como um sistema governado por leis naturais. Essas leis naturais estão amparadas na “razão” que move os indivíduos, mas paradoxalmente, essa razão paira acima das peculiaridades dos interesses individuais.

Esta é a “razão” das ambiguidades da Mão Invisível nas três versões de Smith, ambiguidades apontadas brilhantemente por Emma Rothschild. A economia surge, portanto, com a pretensão de se constituir numa esfera privilegiada da convivência, em que a liberdade é uma imposição das leis que regem a natureza humana. Tais leis devem seguir o seu curso, desembaraçadas da interferência e do arbítrio da política.

No momento em que desabrocha a Economia Política eram onipresentes os cânones da física newtoniana, paradigma científico que vai se manter incólume ao longo do processo de evolução desse campo do conhecimento, ou, como querem alguns, dessa ciência. Não por acaso, os economistas estão permanentemente perquirindo as leis da sociedade dos indivíduos envolvidos no intercâmbio generalizado de mercadorias. As leis que regem a natureza humana, tal como as leis naturais da física, levam sempre ao equilíbrio.

A despeito de seu naturalismo e equilibrismo, Smith celebrou os Navigation Acts, entendidos por ele como afirmação do poder nacional. Aqui, se insinua, sorrateira, a Mão Visível da Política: “talvez a mais sábia de todas as regulamentações comerciais da Inglaterra”. Em outra passagem Smith argumenta: “Se alguma manufatura particular é necessária para a defesa da sociedade, não é sempre prudente depender da oferta de nossos vizinhos”.

*Luiz Gonzaga Belluzzo é professor titular do Instituto de Economia da Unicamp e professor emérito da Universidade Federal de Goiás.

3 comentários:

Mais um amador disse...

Perfeito

ADEMAR AMANCIO disse...

Lendo e aprendendo.

marcos disse...

Galipolo foi mais objetivo.

MAM