terça-feira, 4 de julho de 2023

Merval Pereira - A hora da verdade

O Globo

Seria trágico se a nomeação de Nísia Trindade para a pasta da Saúde, como resposta à sociedade pelos anos perversos que vivemos, fosse agora neutralizada pelo anseio de parlamentares que invejam a verba a que o setor tem direito pela Constituição

É irrealista exigir que o presidente Lula, ou qualquer outro presidente da República, trombe com o Congresso a cada reivindicação fisiológica que surja, especialmente agora que os parlamentares foram empoderados com emendas impositivas e com o orçamento secreto, que teima em não morrer, apesar da decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de considerá-lo inconstitucional.

Mas existe uma diferença entre atender às demandas dos parlamentares e a interesses que desvirtuem um projeto de governo em área vital, como o Ministério da Saúde. Depois de todos os transtornos que vivemos como nação durante a pandemia, com ministros da Saúde caindo um atrás do outro para satisfazer às idiossincrasias do presidente Bolsonaro, seria trágico se a nomeação de Nísia Trindade para a pasta da Saúde, como resposta à sociedade pelos anos perversos que vivemos, fosse agora neutralizada pelo anseio de parlamentares que invejam a verba a que o setor tem direito pela Constituição.

Somente no Ministério da Saúde, as sobras das emendas de relator (nome oficial do orçamento secreto) totalizam R$ 3 bilhões, dos quais R$ 600 milhões já foram liberados para projetos cadastrados por municípios nas áreas de atenção primária à saúde e de média e alta complexidade. Pela decisão do STF, essa verba deve ser alocada nos programas definidos como prioritários pelo ministério, e os parlamentares têm de adequar seus pedidos de verba a esses programas.

Mais difícil é pedir uma verba para uma ação numa região já assistida, ou para um projeto de interesse do curral eleitoral do parlamentar, mas que não se encaixa nas prioridades do ministério. Um exemplo das dificuldades é a vacina japonesa liberada pela Anvisa contra a dengue. Setores alegadamente nacionalistas entravam a importação pelo Sistema Único de Saúde (SUS) porque o Instituto Butantan está trabalhando na pesquisa. Mas levaria de um a dois anos para que uma vacina brasileira estivesse pronta. A preferência para a indústria nacional é louvável, mas não em casos como a dengue, que tem provocado recordes de casos e mortes. As clínicas particulares já podem vender a vacina japonesa, o que aumentará a desigualdade no tratamento.

As críticas que a ministra tem recebido são uma tentativa de enfraquecê-la para assumir o controle de verbas num ministério que tem sido aparelhado nos últimos governos. A Saúde, neste primeiro semestre, já relançou o Farmácia Popular, anunciou o novo Mais Médicos e o movimento nacional pela vacinação, como a ministra repete a cada entrevista. A retomada do Programa Nacional de Imunizações é fundamental para prevenir até mesmo antigas doenças que estão de volta graças ao retrocesso num setor em que o Brasil era exemplar. O risco é o retorno de doenças já erradicadas, como a poliomielite (o sarampo já está de volta).

Se o presidente Lula atender às pressões do Centrão e abrir mão de uma nomeação tão simbólica, será mais uma demonstração de que o governo de centro democrático insinuado na campanha não passou de uma farsa eleitoral. Ministérios como Saúde e Educação não poderiam entrar na mesa política como moeda de troca. A diferença entre a retórica eleitoral e a prática do governo é crucial para medir o grau de credibilidade de um candidato.

Seria possível acreditar em centro democrático se Lula tivesse dito certas coisas na campanha? “Democracia é um conceito relativo” (na Rádio Gaúcha); “Querem nos ofender nos chamando de comunistas, mas não sabem que não nos ofende; até temos orgulho disso” (no Foro de SP); “Aqui enfrentamos o discurso da família, dos costumes e do patriotismo. Enfrentamos os discursos que a gente aprendeu historicamente a combater” (no Foro de SP).

 

2 comentários:

EdsonLuiz disse...

■Merval Pereira escreveu::
▪" Seria trágico se a nomeação de Nísia Trindade para a pasta da Saúde, como resposta à sociedade pelos anos perversos que vivemos, fosse agora neutralizada pelo anseio de parlamentares que invejam a verba a que o setor tem direito pela Constituição. ".

>Pena que seja um trecho tão grande para escrever com letras bem gritadas pelos muros do país !

ADEMAR AMANCIO disse...

O congresso nacional é sua lambança generalizada.