O Globo
Confrontar a inelegibilidade de Bolsonaro à
elegibilidade eterna de Maduro faz materializar os princípios sólidos — não
relativizáveis — da democracia.
Por favor, não use conceitos da ciência
política para defender a relativização da democracia segundo Lula. O presidente
se referia à Venezuela, uma autocracia, e sua formulação — “o conceito de
democracia é relativo para você e para mim” — apenas pretendeu acarinhar um
regime amigo. Coisa de compadres. De Hugo Chávez a Nicolás Maduro.
Sem novidade. Veio para nos salvar de Jair
Bolsonaro — o das joias da ditadura árabe — o outrora camarada de Muamar
Kadafi. Tudo previsível.
Razão por que, a propósito, será falso — talvez mesmo carinhoso — acusar Lula de haver cometido “estelionato eleitoral”. Ninguém pode ter sido pego de surpresa. Não faltou transparência — nem na campanha — sobre relações (históricas) de amizade fraternal com autocratas e outros ortegas.
Razão por que, ainda a propósito, ficará
ridículo — ante a impossibilidade afetiva de criticar Lula — dar-lhe conselhos.
Por favor, não. O homem sabe muito bem o que faz. É experiente; sobretudo um
prático:
— Eu gosto da democracia porque a
democracia é que me fez chegar à Presidência da República pela terceira vez.
(Está aí a resposta para o autoritário
Arthur Lira, o democratizador do orçamento secreto, o que se sente à vontade
para discursar sobre democracia em Lisboa: o presidente virá para a quarta
vez.)
Compreensões utilitárias de democracia são
também instrumentos. Não raro ferramentas contra a democracia. A ocorrência
periódica de eleições sendo frequentemente a primeira desculpa-defesa sacada
pelo autocrata quando acusado de ditador.
O sujeito barbariza, asfixia a democracia
representativa, assalta a Corte Constitucional, empastela jornais, mantém
presos de natureza política, mas garante essa condição dilapidadora disputando
— e, claro, vencendo — eleições. É o que se chama de democracia meramente eleitoral,
o voto como fachada, um arranjo publicitário para encobrir a corrosão de
instituições logo incapazes de assegurar o exercício da liberdade. Incapazes de
oferecer as garantias para o que ora escrevo poder ser publicado hoje na
Venezuela.
A realização de eleições é somente uma das
condições para a existência de democracia. A realização de eleições é, cada vez
mais, a única memória de democracia em países que se apregoam democráticos.
Há eleições na Venezuela? Sim. (Mais que no
Brasil, de acordo com Lula.) O que, porém, dirá sobre a democracia venezuelana
— sobre a qualidade do processo democrático eleitoral daquele país — o fato de
o governante poder se reeleger indefinidamente?
Atropelada a saúde republicana própria à
alternância de poder, estaria Nicolás Maduro legitimado a declarar algo mais ou
menos assim:
— Eu gosto da democracia porque a
democracia é que me fez poder ser eleito presidente da República para sempre.
Não sei se há fraudes no sistema eleitoral
da Venezuela. O estágio atual da coisa provavelmente impede qualquer aferição.
Sabe-se que fraudado será um processo eleitoral em que o governante dispute
aprofundando progressivamente, desde dentro, a disparidade de armas. Até não
haver mais armas para desafiantes. Até não haver mais concorrentes. E, ainda
assim, haverá eleições. Democracia.
As possibilidades reeleitorais de Maduro
compõem a própria definição de abuso de poder político e econômico. O instituto
da reeleição indefinida estabelece como permanentes — infinitos mesmo — os
meios para o governante fundear a própria continuação na cadeira. Abuso
aterrador.
É conveniente refletir a respeito na semana
seguinte à inelegibilidade de Jair Bolsonaro, punido por abuso de poder
político praticado à véspera de concorrer à reeleição. Não fosse tão magoado
com o sistema (dentro do qual constituiu poderosa empresa
familiar-parlamentar), o ex-presidente talvez pudesse ser justo, quiçá grato:
— Eu gosto da democracia porque a
democracia permitiu que um tipo como eu chegasse à Presidência da República.
Confrontar a inelegibilidade de Bolsonaro à
elegibilidade eterna de Maduro faz materializar os princípios sólidos — não
relativizáveis — da democracia. Pode demorar, mas a democracia — vigentes as
engrenagens reguladoras da República — impõe limites. O poder simbólico do
chefe de Estado, o peso influente de sua palavra, afinal não admitido como para
degradar a confiança da sociedade na República. Palavras resultam.
Confrontar a inelegibilidade do
ex-presidente brasileiro com a elegibilidade eterna do ditador venezuelano faz
também ver por inteiro, absolutamente, o cinismo do argumento de Lula:
— Quem quiser derrotar o Maduro, derrote
nas próximas eleições.
Cooptados os órgãos fiscalizadores republicanos, tomadas as Forças Armadas como facções milicianas, não será mais factível vencer Maduro nos termos da democracia venezuelana. A eleição na Venezuela transformada em propaganda de normalidade — que o presidente do Brasil difunde.
Nenhum comentário:
Postar um comentário