Vantagem da Zona Franca desvirtua reforma
tributária
O Globo
Proposta de sobretaxar, no resto do país,
produtos fabricados em Manaus será prejudicial para a economia
A reforma tributária, em análise no Senado,
tem como objetivo simplificar a complexidade das regras de impostos, um freio
ao desenvolvimento do Brasil. Prevê a substituição de cinco tributos por dois:
o CBS (federal) e o IBS (estadual e municipal). Cria, além deles, um terceiro:
o Imposto Seletivo, cujo objetivo é inibir o consumo de mercadorias e serviços
prejudiciais à saúde, à segurança ou ao meio ambiente, caso de álcool, cigarro ou
armas. A proposta também tenta manter intacta uma das maiores distorções
tributárias do Brasil, a Zona Franca de Manaus.
Criada pelo presidente Juscelino Kubitschek em 1957, a Zona Franca tinha nos primeiros anos o objetivo de ser um porto livre voltado a armazenar e beneficiar produtos do exterior. Dez anos depois, na ditadura militar, tornou-se um centro industrial à custa de incentivos fiscais. O prazo inicial para as vantagens era 1997. Elas foram depois estendidas. Em 2014, uma Emenda Constitucional prorrogou a Zona Franca até 2073. O texto da reforma tributária aprovado na Câmara prevê manter o “diferencial competitivo assegurado à Zona Franca de Manaus”.
Empresas instaladas na Zona Franca usufruem,
entre outras vantagens, isenção do Imposto Sobre Produtos Industrializados
(IPI). Como esse é um dos tributos extintos pela reforma, manter o benefício
impõe aos legisladores um desafio. Uma das soluções propostas é criar um
remendo para satisfazer aos anseios das empresas ali instaladas: aumentar, no
resto do país, os impostos cobrados de produtos do mesmo gênero dos fabricados
na Zona Franca. Isso valeria para eletrônicos, TVs, bicicletas ou motocicletas.
A ideia do governo é “calibrar” a cobrança de IBS e CBS com alíquotas menores
na Zona Franca ou, para casos como as motocicletas, incluir entre os produtos
sujeitos ao Imposto Seletivo.
Chegou-se a noticiar que, para compensar
produtores da Zona Franca, o Imposto Seletivo poderia ser cobrado de
fabricantes de smartphones, TVs ou até bicicletas no resto do país. Não teria
cabimento. A natureza desse tributo é inibir o consumo de produtos nocivos, não
compensar a arrecadação ou oferecer vantagens a produtores desta ou daquela
região ou setor.
Outro problema está na própria manutenção,
sem nenhuma alteração, do “diferencial competitivo” da Zona Franca. O custo das
isenções na região é calculado em R$ 35 bilhões, ou 0,35% do PIB. O benefício
se concentra na própria Zona Franca. Ao cobrar tributos mais altos no resto do
país, fica mais caro produzir mercadorias essenciais ao desenvolvimento — como
computadores ou eletrônicos. O relator da reforma, senador Eduardo Braga
(MDB-AM), costuma argumentar que o fim da Zona Franca aumentaria o
desmatamento, pois não haveria alternativa de emprego para a população. Não há
evidência disso.
Seria perfeitamente possível prever na
reforma a harmonização progressiva dos impostos da região com o resto do país.
O subsídio concedido à Zona Franca poderia então ser empregado noutras
atividades em que a Amazônia tem vantagens comparativas, com o objetivo
explícito de desestimular o desmatamento. Mas as empresas e a classe política
beneficiadas nem querem ouvir falar de mudança. A questão não é escolher entre
manter subsídios ou destruir a floresta. O país precisa ter um debate franco e
robusto sobre o custo e o futuro da Zona Franca.
Proposta de reforma administrativa do governo
é passo na direção correta
O Globo
Sem alcançar os privilégios da elite do
funcionalismo, porém, qualquer mudança ficará incompleta
É louvável que um governo do PT,
partido com elo histórico com os sindicatos do funcionalismo, prepare um
projeto de reforma administrativa. A questão é fundamental para melhorar a
qualidade dos serviços prestados à população. E também para melhorar a
qualidade dos gastos públicos.
O Ministério da Gestão e Inovação acerta no
diagnóstico: é demais haver 150 carreiras distintas no serviço público. Mais da
metade delas está em extinção. Um estudo com dados de 2020 constatou que ainda
havia no Estado brasileiro cargos obsoletos como operador de videocassete ou
operador de linotipo. Havia naquele ano 440 rubricas salariais distintas, mais
de 350 sem correspondente no setor privado. A meta do ministério é reduzir as
carreiras para entre 20 e 30, um patamar razoável. Até o fim do ano, o governo
espera ter um mapa completo de carreiras. Para aumentar a diversidade, pretende
ampliar a cota racial de 20% para 30% das vagas.
A Constituição de 1988 tornou todos os
servidores estatutários, com direito à estabilidade no emprego. Isso engessou a
administração de recursos humanos no governo federal. Passados 35 anos, o
governo pretende conquistar um mínimo de flexibilidade. Uma boa medida será
permitir a contratação por meio da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT).
Celetistas, como são os empregados na iniciativa privada, se juntarão a
funcionários estatutários em órgãos auxiliares e na administração indireta.
Outra intenção sensata é reduzir o salário inicial do servidor para equipará-lo
ao da iniciativa privada. Com os aumentos reais ao longo da última década, a
remuneração do funcionalismo descolou da praticada no mercado.
Pela proposta em estudo, o enxugamento na
quantidade de carreiras, com eliminação e fusão de funções, respeitará regras
de transição, considerando o tempo de carreira do servidor. As mudanças atingirão
progressivamente do funcionário mais antigo ao mais novo. Os 6 mil servidores
selecionados pelo concurso unificado previsto para março do ano que vem já
deverão estar submetidos às novas regras.
O governo afirma também querer acabar com os
supersalários, que superam o teto do funcionalismo, hoje em R$ 41,6 mil. O
ministério apoia um projeto de lei em tramitação no Congresso para tentar pôr
ordem nos penduricalhos que permitem ao salário de servidores ultrapassar o
teto.
Infelizmente, ao contrário da proposta de legislação que tramita no Congresso para acabar com os abusos no cálculo da remuneração do funcionalismo, as regras em fase de definição não atingem a elite do funcionalismo, formada sobretudo por juízes, procuradores, militares ou diplomatas. O argumento é que todos já dispõem de carreiras organizadas. É verdade, mas é para as carreiras desses grupos que vigoram as maiores benesses e privilégios. Sem rever tais distorções, qualquer reforma administrativa ficará pela metade.
Avanço do crédito é o menor desde a pandemia
Valor Econômico
Agosto foi o sétimo mês seguido de queda do
ritmo de crescimento
A forte desaceleração do crédito registrada
neste ano preocupa o governo. O dado mais recente do Banco Central (BC) mostra
que o estoque de empréstimos atingiu R$ 5,52 trilhões em agosto, com
crescimento nominal de 8,9% em 12 meses. É a menor variação anual registrada
desde o início da pandemia, quando o crédito virtualmente congelou; e deixa
bastante a desejar levando em conta que o crescimento real é de pouco mais de
5% frente à inflação de 3,23% no período.
A retração do crédito e seu custo elevado
teriam levado o presidente Lula a deixar de lado sua birra com o presidente do
Banco Central, Roberto Campos Neto, e aceitado o convite para um encontro,
realizado finalmente na semana passada. A alta taxa de juros do cartão de
crédito, que bateu nos 445,7% em agosto, é uma das maiores queixas dos
brasileiros em pesquisas internas feitas pelo governo. Empresários também
reclamam dos juros altos. Quem pode se mantém afastado do guichê dos bancos.
Um dos motivos é o juro salgado. Apesar de
ter recuado desde o pico de 32,3% ao ano de maio, a taxa média de juros do
crédito de 30,7% em agosto está acima dos 29% de um ano antes. Em 12 meses,
avançou 1,7 ponto percentual. A taxa cobrada das pessoas jurídicas está em
19,3%, ligeiramente acima dos 19,2% de agosto de 2022; e das pessoas físicas,
em 36,5%, nada menos do que 2 pontos acima dos 34,5% de um ano antes. No
rotativo do cartão de crédito, os juros saltaram 46,1 pontos nesses 12 meses,
para 445,7%. Já a taxa do parcelado aumentou 7,7 pontos, para 194,5% - todos na
contramão da trajetória da Selic.
O custo elevado do dinheiro influencia a
inadimplência, que talvez diminua com o avanço do programa Desenrola. A
inadimplência ficou em 3,6% em agosto, praticamente o mesmo patamar desde maio
e acima dos 2,8% de um ano atrás. Segundo análise do Citi, a inadimplência da
pessoa física atingiu o pico de 4,3% em maio, recuou para 4,1% em agosto e deve
registrar novas reduções.
O comprometimento de renda das famílias com
dívidas, publicado com um mês de atraso, também está apresentando melhoras:
passou de 28,3% em junho para 27,6% em julho. Sem financiamento imobiliário, o
recuo foi de 26,1% para 25,5%. Apesar disso, agosto foi o sétimo mês seguido de
queda do ritmo de crescimento do crédito, sequência que não era observada desde
o fim de 2017. A desaceleração é mais acentuada nas operações com empresas, em
consequência da retração dos bancos após os episódios da Americanas e da Light,
no início do ano. Os empréstimos para as empresas cresceram 0,9% em agosto,
para R$ 2,163 trilhões, e 5,1% em 12 meses. O crédito para as famílias aumentou
1,3% em agosto e 11,5% em 12 meses, e também mostra desaceleração.
A situação estaria pior não fosse a expansão
do crédito direcionado, com funding obrigatoriamente canalizado para
determinadas linhas, cujo estoque cresceu 1,7% em agosto, para R$ 2,226
trilhões, e 12,2% em 12 meses. Mas, na ata do Copom, o Banco Central já alertou
para o risco de o crédito direcionado estimular a economia além do desejável
para a política monetária.
Já o saldo das operações de crédito com
recursos livres somou R$ 3,3 trilhões, com incrementos de 0,7% no mês e de 6,7%
comparativamente a agosto de 2022. O crédito livre para empresas alcançou saldo
de R$ 1,4 trilhão em agosto, com aumentos de 0,1% no mês e de 2,5% em relação
ao mesmo período do ano anterior. Contribuíram para a expansão o cartão de
crédito total (10,6%), capital de giro com prazo superior a 365 dias (0,7%) e
outros créditos livres (1,4%). Em sentido oposto, as maiores baixas foram
observadas em antecipação de faturas de cartão de crédito (-7,1%),
financiamento à exportações (-2,4%) e adiantamentos de contratos de câmbio
(-2,4%).
O estoque de crédito com recursos livres às
famílias totalizou R$ 1,9 trilhão em agosto, com altas de 1,2% no mês e de
10,2% em 12 meses. Esse resultado decorreu, principalmente, do desempenho das
carteiras de crédito consignado para beneficiários do INSS (2,3%),
financiamento para aquisição de veículos (1,4%), crédito consignado para
trabalhadores do setor público (0,9%) e crédito pessoal não consignado (1%).
Nenhum detalhe transpareceu da reunião de
Lula com Roberto Campos Neto. Mas há pouca esperança de uma reversão do quadro
de retração do crédito ainda neste ano. Na verdade, a perspectiva do próprio
Banco Central é de que a situação vai piorar nos próximos meses, antes de
provavelmente melhorar no próximo ano.
O Relatório Trimestral de Inflação (RTI), divulgado um dia depois do encontro, revela que o BC reduziu a previsão de crescimento do estoque de crédito neste ano de 7,7% para 7,3%, quase a metade dos 14% de crescimento registrado em 2022 e menos ainda do que os 16,4% de 2021, mostrando que ainda vai encolher mais em comparação com os 8,9% de agosto. O mercado financeiro está mais pessimista e espera aumento de 7%, de acordo com o Boletim Focus.
Coronelismo redivivo
Folha de S. Paulo
Políticos usam emendas parlamentares para
explorar seca no NE em troca de votos
Ainda que sem ilusões, o jurista Victor Nunes
Leal encerra com moderado otimismo o clássico "Coronelismo, Enxada e
Voto", no qual analisa uma trama de poder que, durante a República Velha
(1889-1930), ligava coronéis, governadores e presidente. Passados 75 anos de
publicada a obra, seria inevitável a consternação de seu autor.
Não por que tenha ficado inalterado o
coronelismo. Este, pela definição de Leal, dependia das condições econômicas e
políticas daquela quadra; imaginava-se que, evoluindo o país, chegaria um
momento em que o sistema representativo viria a sepultar aquela estrutura de
coerção e cooptação.
O que transcorreu, entretanto, foi pior que a
paralisia. Ecoando Lampedusa, tudo mudou no coronelismo para que ele
permanecesse igual, inclusive em uma de suas facetas mais abomináveis: sua
vitalidade é diretamente proporcional ao desamparo dos cidadãos.
Reportagens
da Folha mostraram como poucos desamparos são tão cruéis
quanto a privação de água, uma situação que assombra diversas cidades do
Nordeste.
No sertão de Alagoas, por exemplo,
agricultores fazem peregrinações diárias para coletar água. Quem não tem saúde
para o percurso de 10 km precisa contratar ajuda, mas o dinheiro sai do mesmo
bolso que pagaria pela comida. Tamanho sacrifício, não há como não dizê-lo, é
desumano.
Em Betânia do
Piauí (PI), onde água encanada é uma miragem, moradores dependem de
caminhões-pipa, mas, a 30 km dali, a população de Santa Filomena (PE) conta com
generosa entrega de caixas-d’água. Um tanto mais ao sul, em Campo Formoso (BA),
as cisternas são repassadas a conta-gotas a quem vive na cidade.
Privados de um bem básico, os munícipes ficam
nas mãos desses coronéis de hoje em dia, que, assim como os do passado,
exploram a penúria com finalidades eleitorais.
Em sua versão moderna, a patifaria envolve a
satisfação de direitos em troca de votos; uma vez eleitos, os políticos
controlam a distribuição de verbas federais, sobretudo por
meio das famigeradas emendas parlamentares; e tais verbas
realimentam o ciclo vicioso.
Num desdobramento que Victor Nunes Leal não
tinha como antever, deputados como Elmar Nascimento (União Brasil-BA) e
Fernando Filho (União Brasil-PE) agora exercem seu mandonismo tanto em nível
local como federal, pois também pressionam a Presidência com seus votos na
Câmara.
O Congresso obteve e quer mais protagonismo e
poder sobre o Orçamento, o que tem sua razão de ser. Que assuma, pois, maior
responsabilidade quanto à qualidade das políticas públicas e os desmandos na
alocação de verbas.
Sinal verde à faixa azul
Folha de S. Paulo
Oportuno, corredor para moto será ampliado em
SP; mais cidades deveriam fazê-lo
Na sua concepção original, o Código de Trânsito Brasileiro
proibia motocicletas de circular entre as fileiras de carros. Mas, por ordem do
então presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB), a norma foi
vetada e liberou-se o chamado "corredor".
À época, a decisão dividiu especialistas
—afinal, por questões de segurança, o desenho inicial determinava que as motos
rodassem nas faixas, atrás dos demais veículos.
Com os corredores livres, o risco de
acidentes cresceria consideravelmente; sem isso, entretanto, a agilidade das
duas rodas, principalmente nos centros urbanos, seria afetada. Os obstáculos
para fiscalizar eventuais infrações eram outro complicador.
Nos últimos 25 anos houve expansão
vertiginosa da frota no país —empurrada por fatores como baixo
custo de aquisição, economia de combustível e, mais recentemente, popularização
dos serviços de entrega. O total
de mortos em acidentes envolvendo motos acompanhou essa alta: subiu
quase nove vezes desde o CTB.
Espremer-se entre os carros, por óbvio, ficou
ainda mais perigoso. Na cidade de São Paulo,
esses óbitos bateram recorde em 2022: 405, ou 36,4% a mais na comparação com
2019, antes da pandemia.
Ainda em fase de testes, as faixas exclusivas
para motos, criadas pela gestão Ricardo Nunes (MDB),
são um alento diante desse morticínio.
Pintadas de azul para delimitar a distância
entre um carro e outro, as duas vias em operação completaram um ano e nove
meses sem registrar óbitos desde o início da experiência. Nos dez anos
anteriores, os trechos hoje sinalizados nas avenidas 23 de Maio e dos
Bandeirantes somaram, respectivamente, 15 e 24 pessoas mortas.
É auspiciosa, pois, a liberação das faixas
azuis por parte da Secretaria Nacional de Trânsito em mais dez avenidas —outras
quatro tiveram a autorização renovada, mas ainda não estão em funcionamento.
Como o modelo não está previsto no Código de
Trânsito, a Senatran é quem regula e analisa os resultados enviados pela
prefeitura, cuja meta é ampliar os corredores para 200 km —hoje são 14,5 km.
A eficácia da iniciativa decerto exige mais observação, mas já atrai o interesse de outras cidades do pais. Políticas como essa devem obrigatoriamente vir acompanhadas de campanhas educativas, rígida fiscalização e, sobretudo, respeito às leis de trânsito —por motociclistas ou motoristas.
Chance de discutir os pisos constitucionais
O Estado de S. Paulo
Com fim do teto de gastos e omissão do
arcabouço fiscal, governo depende da boa vontade do TCU para não ter de arcar
com uma fatura de R$ 20 bi em gastos extras em saúde e educação
O Ministério da Fazenda pediu aval do
Tribunal de Contas da União (TCU) para ser liberado da obrigação de cumprir os
pisos constitucionais de saúde e educação neste ano. Extinta durante a vigência
do teto de gastos, a regra voltou a valer no momento em que o antigo
dispositivo foi substituído pelo novo arcabouço fiscal e criou uma fatura de R$
20 bilhões para a União nos últimos meses do ano.
A equipe econômica atribui o imbróglio à
antecipação do envio e aprovação da proposta do arcabouço ao Congresso.
Assim, de uma hora para outra, após conseguir
enterrar o dispositivo que tanto criticou, o governo acabou por ter de lidar
com a ressurreição dos pisos, reajustados apenas pela variação da inflação
durante a curta vida do teto de gastos.
Se foi esquecimento ou barbeiragem, já não
importa. O fato é que o governo se viu obrigado a encontrar espaço no Orçamento
para cumprir os dispositivos constitucionais, segundo os quais os gastos com
saúde precisam corresponder a 15% da Receita Corrente Líquida (RCL), enquanto
as despesas com educação devem equivaler a 18% da Receita Líquida de Impostos
(RLI).
A fatura de R$ 20 bilhões corresponde apenas
ao período entre setembro e dezembro deste ano, uma vez que o arcabouço passou
a valer no dia 30 de agosto. Longe de ser trivial, é um valor que tem o
potencial de piorar ainda mais o déficit primário, sobretudo em um ano em que a
arrecadação tem caído.
Tampouco é uma conta fácil de acomodar do
lado das despesas, ainda mais em tão curto espaço de tempo. Na consulta à Corte
de Contas, a Fazenda alega que obrigar a aplicar os pisos neste momento seria
uma contradição ao princípio da eficiência administrativa e penalizaria a boa
gestão pública e o planejamento fiscal. Por isso, o governo quer voltar a
cumprir a regra integralmente apenas em 2024.
A consulta ao TCU expõe o tamanho do desafio
político que o governo tem a enfrentar no Congresso. Por ser um tema
constitucional, a revisão dos pisos obviamente requer uma Proposta de Emenda à
Constituição (PEC). A tentativa de resolver o problema por meio de um artigo
incluído de última hora em um projeto de lei complementar, capitaneada pelo
líder do PT na Casa, Zeca Dirceu (PR), não parece ser viável e poderia ser
facilmente questionada no Supremo Tribunal Federal (STF).
O governo, que já sinalizou que enviaria uma
PEC sobre o tema no passado recente, não parece querer enfrentar esse embate
neste momento. Por tratar de uma pauta cara para a esquerda, uma proposta que
diminuísse os recursos destinados à saúde e à educação não contaria nem mesmo
com o apoio da base aliada.
Tem razão o governo ao alegar, ao TCU, que a
necessidade de cumprir o mínimo constitucional levaria a uma utilização
improvisada de recursos sem qualquer planejamento. Encontrar bons projetos
vinculados a políticas públicas a serem executados em tão curto espaço de tempo
não parece razoável nem factível.
Com o arcabouço, o governo perdeu a oportunidade
de encaminhar uma solução definitiva para o problema dos pisos constitucionais
de saúde e educação. Agora que a conta chegou, dependerá da boa vontade do TCU
para não ser enquadrado pelo Congresso.
Eis, portanto, uma excelente oportunidade
para o governo começar a enfrentar, com racionalidade, a questão da qualidade
do gasto público. Afinal, apesar da boa intenção dos parlamentares, a imposição
dos pisos foi incapaz de revolucionar a qualidade da saúde e da educação
brasileiras.
Os pisos, na prática, têm gerado um
empoçamento de recursos do Orçamento. É um fenômeno recorrente, com o qual
diferentes governos lidam sempre da mesma forma: remanejamentos orçamentários
que acabam por salvar outras áreas da penúria, sobretudo gastos
discricionários, e que impedem a paralisia da máquina pública.
Reconhecer o problema não significa dizer que
haja sobra de recursos para a saúde e a educação, mas indica que as duas áreas
possuem mais recursos do que o Estado tem capacidade para gastar. Mostra,
também, que os desafios do setor público nem sempre se resolvem com mais
dinheiro, mas certamente demandam mais eficiência.
Uma lei que não é igual para todos
O Estado de S. Paulo
Estudo do Ipea revela mecanismos do viés
racista na aplicação da legislação antidrogas. Especialmente céleres, essas
ações judiciais têm menos provas e mais interpretações expansivas
Em tese, a lei é uma das grandes manifestações
do princípio da igualdade no Estado Democrático de Direito. Todas as pessoas –
seja qual for sua condição social, seu patrimônio, sua raça, seu credo, seu
estado civil – estão submetidas à mesma lei. No entanto, muitas vezes, esse
princípio republicano parece não valer na prática. No lugar de uma mesma lei
para todos, observa-se a aplicação da lei influenciada por outros critérios,
produzindo privilégios e discriminações. Os efeitos dessa interpretação
desigual da lei são notórios em várias áreas. Muitas vezes, no entanto, não é
fácil identificar as causas desse desvio. Como formalmente existe uma única lei
para todos, a disparidade interpretativa nunca é admitida explicitamente.
Recentemente, o Instituto de Pesquisa
Econômica Aplicada (Ipea) publicou, em parceria com a Secretaria Nacional de
Políticas sobre Drogas do Ministério da Justiça e Segurança Pública, um amplo
estudo sobre o perfil das pessoas processadas e a produção de provas nas ações
criminais por tráfico de drogas. Foram analisados mais de 5,1 mil processos.
Em primeiro lugar, os dados confirmam uma
realidade conhecida. A maioria dos réus desses processos em tribunais estaduais
é jovem (73,6% até 30 anos), com baixa escolaridade (68,4% cursaram até o
ensino fundamental) e não brancos (68,7%).
Além disso, o estudo do Ipea analisou as
características dos inquéritos e processos criminais relacionados ao crime de
tráfico de drogas. E é aqui que se desvela a dinâmica da desigualdade e da
seletividade no sistema penal.
Ao analisar as ações criminais por tráfico de
drogas, o estudo identificou três constantes: (i) processos com baixa
quantidade de provas, sem investigação aprofundada, (ii) tramitação do processo
especialmente célere e (iii) fundamentação da abordagem policial em “atitudes
suspeitas”. Para um jovem negro, o modo como anda, a mochila que leva nas
costas ou a bermuda que veste podem significar ser suspeito de um crime.
Essas três constantes revelam um modo de
proceder – envolvendo polícia, Ministério Público e Judiciário – propenso a condenar
jovens negros. Sintomático é o caso, em julgamento pelo Supremo Tribunal
Federal (STF), em que um homem negro foi condenado em segunda instância por
tráfico de drogas a uma pena de 7 anos e 11 meses em regime fechado por portar
1,53 grama de cocaína. No entanto, não se trata de uma exceção. Na maior parte
dos processos em que houve flagrante de porte de drogas ilícitas, as
quantidades eram ínfimas.
A pesquisa do Ipea fez uma análise semântica
das decisões judiciais. Na maioria dos casos contra jovens negros, o suposto
ato criminoso foi relatado pelas ações de guardar, possuir, transportar ou
trazer consigo drogas.
Em menor frequência, aparecem os verbos
vender, fornecer, entregar, distribuir, adquirir, comprar e receber.
Além de tratar desigualmente as pessoas e ser
fonte de erros processuais, o descuido na apuração e no enquadramento dos fatos
é disfuncional. Pune-se severamente sem saber quem é quem no sistema de
produção, transporte e comercialização da droga. “A fase de investigação tende
a ser bastante célere, com duração aproximada de quinze dias”, diz o estudo. E,
a confirmar a fragilidade probatória desses processos, em 93% dos casos as
provas baseavam-se no depoimento dos agentes de segurança responsáveis pelo
flagrante.
O crime de tráfico de drogas é punido com
altas penas, o que custa caro aos cofres públicos, mas isso é feito às cegas,
sem entender a cadeia do crime e, consequentemente, sem desmontá-la. O
resultado é que, em vez de levar a uma diminuição da ocorrência do crime, a
atuação do poder público produz encarceramento massivo e indiscriminado de
jovens, em oferta abundante de mão de obra às organizações criminosas atuantes
nos presídios.
É preciso pôr fim ao círculo vicioso do
racismo. Além de corolário da dignidade humana, o respeito ao direito de todos
é caminho para uma efetiva segurança pública e um sistema de Justiça
minimamente funcional.
O ‘plano B’ na Margem Equatorial
O Estado de S. Paulo
Licença para explorar Bacia Potiguar mostra que é possível um meio-termo na querela ambiental
O “plano B” da Petrobras para a Margem
Equatorial recebeu do Ibama a primeira licença para exploração em águas
profundas. Como informou o Broadcast, serviço de informações financeiras do
Grupo Estado, o aval refere-se a dois blocos
de petróleo na Bacia Potiguar, no litoral do Rio Grande do Norte. Em Foz do
Amazonas permanece o bloqueio do Ibama, que frustrou o planejamento exploratório,
o que intensificou o debate sobre como o País pretende tratar a nova fronteira
de petróleo.
A bacia onde será iniciada a exploração é a
última das cinco que compõem a Margem Equatorial, começando a contagem pela
costa do Amapá. A primeira, de Foz do Amazonas, é marcada pelo simbolismo de
pertencer ao litoral próximo à Floresta Amazônica, embora a mais de 500
quilômetros da foz do rio, distância superior à que separa as cidades de São
Paulo e Rio de Janeiro. Quando o Ibama emitiu a polêmica negativa, o
navio-sonda que faria os primeiros testes já estava na região, além de um
aparato gigantesco de embarcações e aeronaves de apoio.
A sonda, que na ocasião foi deslocada para o
Sudeste, será remanejada para a Bacia Potiguar, numa operação que está sendo
tratada como decisiva para a definição da controvérsia em torno da produção de
petróleo na nova fronteira que, para muitos especialistas, tem potencial
equivalente ao da região do présal. Chegar a esse meio-termo já representa um
avanço, apesar da apreensão em torno do resultado das perfurações, que deixará
fortalecido um dos dois Ministérios envolvidos na contenda: o de Minas e
Energia ou o do Meio Ambiente.
Mais importante do que apostar no resultado
exploratório é revestir de caráter político a decisão de permitir a perfuração
ultraprofunda na Margem Equatorial. É evidente que se deve levar em conta a
segurança ambiental, mas, considerando-se a reconhecida expertise da Petrobras,
não parece sensato criar obstáculos intransponíveis. Do contrário, não faria
sentido algum licitar qualquer área exploratória, porque sempre haverá o risco
inerente à atividade.
O bloco de Poti, na Bacia Potiguar, um dos
dois para os quais o Ibama concedeu aval, foi arrematado há 17 anos. É,
portanto, um leilão ainda mais antigo do que o de Foz do Amazonas, que ocorreu
há uma década. Em toda aquela região, os trabalhos exploratórios se resumiram a
blocos em águas rasas (profundidade até 300 metros), o que parece inconsistente
com as premissas de riscos ambientais, já que se situam ainda mais próximos da
costa do que os de ultraprofundidade (mais de 1.500 metros da superfície).
A Advocacia-Geral da União (AGU) considerou
que as áreas leiloadas contaram com a anuência de todos os órgãos do governo
envolvidos nas licitações e que, portanto, não faz sentido criar dificuldades
para as empresas, muitas das quais desistiram da empreitada depois de anos de
tentativas. A exploração na Bacia Potiguar não deve ser encarada como um prêmio
de consolação para quem pretendia explorar a de Foz do Amazonas, mas sim como o
início de uma prospecção responsável da região. Trata-se de respeito aos
contratos.
Desafios na luta contra o câncer
Correio Braziliense
No Outubro Rosa, a Sociedade Brasileira de
Mastologia alerta que o autoexame não deve ser o único elemento para de um
especialista
Em 2022, foram registrados mais 66 mil casos
de câncer de mama no país, segundo os dados do Instituto Nacional do Câncer
(Inca), do Ministério da Saúde. Mesmo com taxas diferenciadas por região, a
doença é a principal causa de mortalidade das mulheres no país e o segundo tipo
mais frequente no mundo. Essa alta letalidade está relacionada, em boa parte, aos
diagnósticos tardios. A doença é identificada em estágio avançado, o que
dificulta ou torna impossível a cura.
Há 21 anos, o Brasil aderiu ao movimento
mundial Outubro Rosa, lançado nos anos 1990, a fim de alertar as mulheres para
a importância dos exames periódicos, sobretudo, os de mama, e, assim, detectar
precocemente o câncer. A campanha recomenda ainda que as mulheres aprendam e
façam o autoexame das mamas. Ao menor sinal de um nódulo, buscar o atendimento
e os cuidados necessários.
A Sociedade Brasileira de Mastologia alerta,
entretanto, que o autoexame não deve ser o único elemento para a busca de
um especialista. A suspeita de um nódulo por meio do autoexame pode significar
que ele esteja em estágio avançado. Portanto, a consulta periódica com especialistas
e a realização dos exames recomendados é o meio mais segro e capaz de
identificar precocemente a doença e receber o tratamento adequado.
Especialistas ressaltam que o diagnóstico
precoce é o maior aliado contra o câncer. Mas isso nem sempre é possível para
grande parte das mulheres. Aquelas de baixa renda e dependentes dos serviços da
rede pública, enfrentam dificuldades de conseguir uma consulta e passar pelos
testes necessários. Há também as que desistem depois de passar por experiências
bem ruins. A falta de informação correta ainda é a grande adversária da saúde
das mulheres, independentemente das condição socioeconômica. Como efeito
colateral da desinformação, há mulheres que evitam um encontro como
especialista por ter medo de um resultado positivo.
Os dados oficiais ou de instituições de
classe são fartos para que as autoridades de saúde adotem as medidas
necessárias para postergar a morte dos brasileiros. Falta estrutura na rede
pública capaz de garantir atendimento adequado, oferecendo aos pacientes os
meios indispensáveis ao enfrentamento do câncer de mama e de muitas outras
doenças de alta letalidade. A sociedade, por sua vez, deve dar sua
contribuição, que começa com a vacinação de adolescentes (meninos e meninas)
contra o vírus HPV, responsável por uma margem expressiva dos cânceres do colo
de útero e lesões pré-cancerosas.
A publicação Estimativa 2023 — Incidência de Câncer no Brasil, produzida pelo Inca, prevê 704 mil novos casos de câncer no país no triênio 2023-2025. É um número bem alto que impõe ao poder público — municipal, estadual e federal — a tomada de providências para que os brasileiros tenham a assistência adequada e plena no embate individual contra o câncer e outras moléstias igualmente graves.
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