terça-feira, 3 de outubro de 2023

O que a mídia pensa: Editoriais / Opiniões

Vantagem da Zona Franca desvirtua reforma tributária

O Globo

Proposta de sobretaxar, no resto do país, produtos fabricados em Manaus será prejudicial para a economia

A reforma tributária, em análise no Senado, tem como objetivo simplificar a complexidade das regras de impostos, um freio ao desenvolvimento do Brasil. Prevê a substituição de cinco tributos por dois: o CBS (federal) e o IBS (estadual e municipal). Cria, além deles, um terceiro: o Imposto Seletivo, cujo objetivo é inibir o consumo de mercadorias e serviços prejudiciais à saúde, à segurança ou ao meio ambiente, caso de álcool, cigarro ou armas. A proposta também tenta manter intacta uma das maiores distorções tributárias do Brasil, a Zona Franca de Manaus.

Criada pelo presidente Juscelino Kubitschek em 1957, a Zona Franca tinha nos primeiros anos o objetivo de ser um porto livre voltado a armazenar e beneficiar produtos do exterior. Dez anos depois, na ditadura militar, tornou-se um centro industrial à custa de incentivos fiscais. O prazo inicial para as vantagens era 1997. Elas foram depois estendidas. Em 2014, uma Emenda Constitucional prorrogou a Zona Franca até 2073. O texto da reforma tributária aprovado na Câmara prevê manter o “diferencial competitivo assegurado à Zona Franca de Manaus”.

Empresas instaladas na Zona Franca usufruem, entre outras vantagens, isenção do Imposto Sobre Produtos Industrializados (IPI). Como esse é um dos tributos extintos pela reforma, manter o benefício impõe aos legisladores um desafio. Uma das soluções propostas é criar um remendo para satisfazer aos anseios das empresas ali instaladas: aumentar, no resto do país, os impostos cobrados de produtos do mesmo gênero dos fabricados na Zona Franca. Isso valeria para eletrônicos, TVs, bicicletas ou motocicletas. A ideia do governo é “calibrar” a cobrança de IBS e CBS com alíquotas menores na Zona Franca ou, para casos como as motocicletas, incluir entre os produtos sujeitos ao Imposto Seletivo.

Chegou-se a noticiar que, para compensar produtores da Zona Franca, o Imposto Seletivo poderia ser cobrado de fabricantes de smartphones, TVs ou até bicicletas no resto do país. Não teria cabimento. A natureza desse tributo é inibir o consumo de produtos nocivos, não compensar a arrecadação ou oferecer vantagens a produtores desta ou daquela região ou setor.

Outro problema está na própria manutenção, sem nenhuma alteração, do “diferencial competitivo” da Zona Franca. O custo das isenções na região é calculado em R$ 35 bilhões, ou 0,35% do PIB. O benefício se concentra na própria Zona Franca. Ao cobrar tributos mais altos no resto do país, fica mais caro produzir mercadorias essenciais ao desenvolvimento — como computadores ou eletrônicos. O relator da reforma, senador Eduardo Braga (MDB-AM), costuma argumentar que o fim da Zona Franca aumentaria o desmatamento, pois não haveria alternativa de emprego para a população. Não há evidência disso.

Seria perfeitamente possível prever na reforma a harmonização progressiva dos impostos da região com o resto do país. O subsídio concedido à Zona Franca poderia então ser empregado noutras atividades em que a Amazônia tem vantagens comparativas, com o objetivo explícito de desestimular o desmatamento. Mas as empresas e a classe política beneficiadas nem querem ouvir falar de mudança. A questão não é escolher entre manter subsídios ou destruir a floresta. O país precisa ter um debate franco e robusto sobre o custo e o futuro da Zona Franca.

Proposta de reforma administrativa do governo é passo na direção correta

O Globo

Sem alcançar os privilégios da elite do funcionalismo, porém, qualquer mudança ficará incompleta

É louvável que um governo do PT, partido com elo histórico com os sindicatos do funcionalismo, prepare um projeto de reforma administrativa. A questão é fundamental para melhorar a qualidade dos serviços prestados à população. E também para melhorar a qualidade dos gastos públicos.

O Ministério da Gestão e Inovação acerta no diagnóstico: é demais haver 150 carreiras distintas no serviço público. Mais da metade delas está em extinção. Um estudo com dados de 2020 constatou que ainda havia no Estado brasileiro cargos obsoletos como operador de videocassete ou operador de linotipo. Havia naquele ano 440 rubricas salariais distintas, mais de 350 sem correspondente no setor privado. A meta do ministério é reduzir as carreiras para entre 20 e 30, um patamar razoável. Até o fim do ano, o governo espera ter um mapa completo de carreiras. Para aumentar a diversidade, pretende ampliar a cota racial de 20% para 30% das vagas.

A Constituição de 1988 tornou todos os servidores estatutários, com direito à estabilidade no emprego. Isso engessou a administração de recursos humanos no governo federal. Passados 35 anos, o governo pretende conquistar um mínimo de flexibilidade. Uma boa medida será permitir a contratação por meio da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). Celetistas, como são os empregados na iniciativa privada, se juntarão a funcionários estatutários em órgãos auxiliares e na administração indireta. Outra intenção sensata é reduzir o salário inicial do servidor para equipará-lo ao da iniciativa privada. Com os aumentos reais ao longo da última década, a remuneração do funcionalismo descolou da praticada no mercado.

Pela proposta em estudo, o enxugamento na quantidade de carreiras, com eliminação e fusão de funções, respeitará regras de transição, considerando o tempo de carreira do servidor. As mudanças atingirão progressivamente do funcionário mais antigo ao mais novo. Os 6 mil servidores selecionados pelo concurso unificado previsto para março do ano que vem já deverão estar submetidos às novas regras.

O governo afirma também querer acabar com os supersalários, que superam o teto do funcionalismo, hoje em R$ 41,6 mil. O ministério apoia um projeto de lei em tramitação no Congresso para tentar pôr ordem nos penduricalhos que permitem ao salário de servidores ultrapassar o teto.

Infelizmente, ao contrário da proposta de legislação que tramita no Congresso para acabar com os abusos no cálculo da remuneração do funcionalismo, as regras em fase de definição não atingem a elite do funcionalismo, formada sobretudo por juízes, procuradores, militares ou diplomatas. O argumento é que todos já dispõem de carreiras organizadas. É verdade, mas é para as carreiras desses grupos que vigoram as maiores benesses e privilégios. Sem rever tais distorções, qualquer reforma administrativa ficará pela metade.

Avanço do crédito é o menor desde a pandemia

Valor Econômico

Agosto foi o sétimo mês seguido de queda do ritmo de crescimento

A forte desaceleração do crédito registrada neste ano preocupa o governo. O dado mais recente do Banco Central (BC) mostra que o estoque de empréstimos atingiu R$ 5,52 trilhões em agosto, com crescimento nominal de 8,9% em 12 meses. É a menor variação anual registrada desde o início da pandemia, quando o crédito virtualmente congelou; e deixa bastante a desejar levando em conta que o crescimento real é de pouco mais de 5% frente à inflação de 3,23% no período.

A retração do crédito e seu custo elevado teriam levado o presidente Lula a deixar de lado sua birra com o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, e aceitado o convite para um encontro, realizado finalmente na semana passada. A alta taxa de juros do cartão de crédito, que bateu nos 445,7% em agosto, é uma das maiores queixas dos brasileiros em pesquisas internas feitas pelo governo. Empresários também reclamam dos juros altos. Quem pode se mantém afastado do guichê dos bancos.

Um dos motivos é o juro salgado. Apesar de ter recuado desde o pico de 32,3% ao ano de maio, a taxa média de juros do crédito de 30,7% em agosto está acima dos 29% de um ano antes. Em 12 meses, avançou 1,7 ponto percentual. A taxa cobrada das pessoas jurídicas está em 19,3%, ligeiramente acima dos 19,2% de agosto de 2022; e das pessoas físicas, em 36,5%, nada menos do que 2 pontos acima dos 34,5% de um ano antes. No rotativo do cartão de crédito, os juros saltaram 46,1 pontos nesses 12 meses, para 445,7%. Já a taxa do parcelado aumentou 7,7 pontos, para 194,5% - todos na contramão da trajetória da Selic.

O custo elevado do dinheiro influencia a inadimplência, que talvez diminua com o avanço do programa Desenrola. A inadimplência ficou em 3,6% em agosto, praticamente o mesmo patamar desde maio e acima dos 2,8% de um ano atrás. Segundo análise do Citi, a inadimplência da pessoa física atingiu o pico de 4,3% em maio, recuou para 4,1% em agosto e deve registrar novas reduções.

O comprometimento de renda das famílias com dívidas, publicado com um mês de atraso, também está apresentando melhoras: passou de 28,3% em junho para 27,6% em julho. Sem financiamento imobiliário, o recuo foi de 26,1% para 25,5%. Apesar disso, agosto foi o sétimo mês seguido de queda do ritmo de crescimento do crédito, sequência que não era observada desde o fim de 2017. A desaceleração é mais acentuada nas operações com empresas, em consequência da retração dos bancos após os episódios da Americanas e da Light, no início do ano. Os empréstimos para as empresas cresceram 0,9% em agosto, para R$ 2,163 trilhões, e 5,1% em 12 meses. O crédito para as famílias aumentou 1,3% em agosto e 11,5% em 12 meses, e também mostra desaceleração.

A situação estaria pior não fosse a expansão do crédito direcionado, com funding obrigatoriamente canalizado para determinadas linhas, cujo estoque cresceu 1,7% em agosto, para R$ 2,226 trilhões, e 12,2% em 12 meses. Mas, na ata do Copom, o Banco Central já alertou para o risco de o crédito direcionado estimular a economia além do desejável para a política monetária.

Já o saldo das operações de crédito com recursos livres somou R$ 3,3 trilhões, com incrementos de 0,7% no mês e de 6,7% comparativamente a agosto de 2022. O crédito livre para empresas alcançou saldo de R$ 1,4 trilhão em agosto, com aumentos de 0,1% no mês e de 2,5% em relação ao mesmo período do ano anterior. Contribuíram para a expansão o cartão de crédito total (10,6%), capital de giro com prazo superior a 365 dias (0,7%) e outros créditos livres (1,4%). Em sentido oposto, as maiores baixas foram observadas em antecipação de faturas de cartão de crédito (-7,1%), financiamento à exportações (-2,4%) e adiantamentos de contratos de câmbio (-2,4%).

O estoque de crédito com recursos livres às famílias totalizou R$ 1,9 trilhão em agosto, com altas de 1,2% no mês e de 10,2% em 12 meses. Esse resultado decorreu, principalmente, do desempenho das carteiras de crédito consignado para beneficiários do INSS (2,3%), financiamento para aquisição de veículos (1,4%), crédito consignado para trabalhadores do setor público (0,9%) e crédito pessoal não consignado (1%).

Nenhum detalhe transpareceu da reunião de Lula com Roberto Campos Neto. Mas há pouca esperança de uma reversão do quadro de retração do crédito ainda neste ano. Na verdade, a perspectiva do próprio Banco Central é de que a situação vai piorar nos próximos meses, antes de provavelmente melhorar no próximo ano.

O Relatório Trimestral de Inflação (RTI), divulgado um dia depois do encontro, revela que o BC reduziu a previsão de crescimento do estoque de crédito neste ano de 7,7% para 7,3%, quase a metade dos 14% de crescimento registrado em 2022 e menos ainda do que os 16,4% de 2021, mostrando que ainda vai encolher mais em comparação com os 8,9% de agosto. O mercado financeiro está mais pessimista e espera aumento de 7%, de acordo com o Boletim Focus.

Coronelismo redivivo

Folha de S. Paulo

Políticos usam emendas parlamentares para explorar seca no NE em troca de votos

Ainda que sem ilusões, o jurista Victor Nunes Leal encerra com moderado otimismo o clássico "Coronelismo, Enxada e Voto", no qual analisa uma trama de poder que, durante a República Velha (1889-1930), ligava coronéis, governadores e presidente. Passados 75 anos de publicada a obra, seria inevitável a consternação de seu autor.

Não por que tenha ficado inalterado o coronelismo. Este, pela definição de Leal, dependia das condições econômicas e políticas daquela quadra; imaginava-se que, evoluindo o país, chegaria um momento em que o sistema representativo viria a sepultar aquela estrutura de coerção e cooptação.

O que transcorreu, entretanto, foi pior que a paralisia. Ecoando Lampedusa, tudo mudou no coronelismo para que ele permanecesse igual, inclusive em uma de suas facetas mais abomináveis: sua vitalidade é diretamente proporcional ao desamparo dos cidadãos.

Reportagens da Folha mostraram como poucos desamparos são tão cruéis quanto a privação de água, uma situação que assombra diversas cidades do Nordeste.

No sertão de Alagoas, por exemplo, agricultores fazem peregrinações diárias para coletar água. Quem não tem saúde para o percurso de 10 km precisa contratar ajuda, mas o dinheiro sai do mesmo bolso que pagaria pela comida. Tamanho sacrifício, não há como não dizê-lo, é desumano.

Em Betânia do Piauí (PI), onde água encanada é uma miragem, moradores dependem de caminhões-pipa, mas, a 30 km dali, a população de Santa Filomena (PE) conta com generosa entrega de caixas-d’água. Um tanto mais ao sul, em Campo Formoso (BA), as cisternas são repassadas a conta-gotas a quem vive na cidade.

Privados de um bem básico, os munícipes ficam nas mãos desses coronéis de hoje em dia, que, assim como os do passado, exploram a penúria com finalidades eleitorais.

Em sua versão moderna, a patifaria envolve a satisfação de direitos em troca de votos; uma vez eleitos, os políticos controlam a distribuição de verbas federais, sobretudo por meio das famigeradas emendas parlamentares; e tais verbas realimentam o ciclo vicioso.

Num desdobramento que Victor Nunes Leal não tinha como antever, deputados como Elmar Nascimento (União Brasil-BA) e Fernando Filho (União Brasil-PE) agora exercem seu mandonismo tanto em nível local como federal, pois também pressionam a Presidência com seus votos na Câmara.

O Congresso obteve e quer mais protagonismo e poder sobre o Orçamento, o que tem sua razão de ser. Que assuma, pois, maior responsabilidade quanto à qualidade das políticas públicas e os desmandos na alocação de verbas.

Sinal verde à faixa azul

Folha de S. Paulo

Oportuno, corredor para moto será ampliado em SP; mais cidades deveriam fazê-lo

Na sua concepção original, o Código de Trânsito Brasileiro proibia motocicletas de circular entre as fileiras de carros. Mas, por ordem do então presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB), a norma foi vetada e liberou-se o chamado "corredor".

À época, a decisão dividiu especialistas —afinal, por questões de segurança, o desenho inicial determinava que as motos rodassem nas faixas, atrás dos demais veículos.

Com os corredores livres, o risco de acidentes cresceria consideravelmente; sem isso, entretanto, a agilidade das duas rodas, principalmente nos centros urbanos, seria afetada. Os obstáculos para fiscalizar eventuais infrações eram outro complicador.

Nos últimos 25 anos houve expansão vertiginosa da frota no país —empurrada por fatores como baixo custo de aquisição, economia de combustível e, mais recentemente, popularização dos serviços de entrega. O total de mortos em acidentes envolvendo motos acompanhou essa alta: subiu quase nove vezes desde o CTB.

Espremer-se entre os carros, por óbvio, ficou ainda mais perigoso. Na cidade de São Paulo, esses óbitos bateram recorde em 2022: 405, ou 36,4% a mais na comparação com 2019, antes da pandemia.

Ainda em fase de testes, as faixas exclusivas para motos, criadas pela gestão Ricardo Nunes (MDB), são um alento diante desse morticínio.

Pintadas de azul para delimitar a distância entre um carro e outro, as duas vias em operação completaram um ano e nove meses sem registrar óbitos desde o início da experiência. Nos dez anos anteriores, os trechos hoje sinalizados nas avenidas 23 de Maio e dos Bandeirantes somaram, respectivamente, 15 e 24 pessoas mortas.

É auspiciosa, pois, a liberação das faixas azuis por parte da Secretaria Nacional de Trânsito em mais dez avenidas —outras quatro tiveram a autorização renovada, mas ainda não estão em funcionamento.

Como o modelo não está previsto no Código de Trânsito, a Senatran é quem regula e analisa os resultados enviados pela prefeitura, cuja meta é ampliar os corredores para 200 km —hoje são 14,5 km.

A eficácia da iniciativa decerto exige mais observação, mas já atrai o interesse de outras cidades do pais. Políticas como essa devem obrigatoriamente vir acompanhadas de campanhas educativas, rígida fiscalização e, sobretudo, respeito às leis de trânsito —por motociclistas ou motoristas.

Chance de discutir os pisos constitucionais

O Estado de S. Paulo

Com fim do teto de gastos e omissão do arcabouço fiscal, governo depende da boa vontade do TCU para não ter de arcar com uma fatura de R$ 20 bi em gastos extras em saúde e educação

O Ministério da Fazenda pediu aval do Tribunal de Contas da União (TCU) para ser liberado da obrigação de cumprir os pisos constitucionais de saúde e educação neste ano. Extinta durante a vigência do teto de gastos, a regra voltou a valer no momento em que o antigo dispositivo foi substituído pelo novo arcabouço fiscal e criou uma fatura de R$ 20 bilhões para a União nos últimos meses do ano.

A equipe econômica atribui o imbróglio à antecipação do envio e aprovação da proposta do arcabouço ao Congresso.

Assim, de uma hora para outra, após conseguir enterrar o dispositivo que tanto criticou, o governo acabou por ter de lidar com a ressurreição dos pisos, reajustados apenas pela variação da inflação durante a curta vida do teto de gastos.

Se foi esquecimento ou barbeiragem, já não importa. O fato é que o governo se viu obrigado a encontrar espaço no Orçamento para cumprir os dispositivos constitucionais, segundo os quais os gastos com saúde precisam corresponder a 15% da Receita Corrente Líquida (RCL), enquanto as despesas com educação devem equivaler a 18% da Receita Líquida de Impostos (RLI).

A fatura de R$ 20 bilhões corresponde apenas ao período entre setembro e dezembro deste ano, uma vez que o arcabouço passou a valer no dia 30 de agosto. Longe de ser trivial, é um valor que tem o potencial de piorar ainda mais o déficit primário, sobretudo em um ano em que a arrecadação tem caído.

Tampouco é uma conta fácil de acomodar do lado das despesas, ainda mais em tão curto espaço de tempo. Na consulta à Corte de Contas, a Fazenda alega que obrigar a aplicar os pisos neste momento seria uma contradição ao princípio da eficiência administrativa e penalizaria a boa gestão pública e o planejamento fiscal. Por isso, o governo quer voltar a cumprir a regra integralmente apenas em 2024.

A consulta ao TCU expõe o tamanho do desafio político que o governo tem a enfrentar no Congresso. Por ser um tema constitucional, a revisão dos pisos obviamente requer uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC). A tentativa de resolver o problema por meio de um artigo incluído de última hora em um projeto de lei complementar, capitaneada pelo líder do PT na Casa, Zeca Dirceu (PR), não parece ser viável e poderia ser facilmente questionada no Supremo Tribunal Federal (STF).

O governo, que já sinalizou que enviaria uma PEC sobre o tema no passado recente, não parece querer enfrentar esse embate neste momento. Por tratar de uma pauta cara para a esquerda, uma proposta que diminuísse os recursos destinados à saúde e à educação não contaria nem mesmo com o apoio da base aliada.

Tem razão o governo ao alegar, ao TCU, que a necessidade de cumprir o mínimo constitucional levaria a uma utilização improvisada de recursos sem qualquer planejamento. Encontrar bons projetos vinculados a políticas públicas a serem executados em tão curto espaço de tempo não parece razoável nem factível.

Com o arcabouço, o governo perdeu a oportunidade de encaminhar uma solução definitiva para o problema dos pisos constitucionais de saúde e educação. Agora que a conta chegou, dependerá da boa vontade do TCU para não ser enquadrado pelo Congresso.

Eis, portanto, uma excelente oportunidade para o governo começar a enfrentar, com racionalidade, a questão da qualidade do gasto público. Afinal, apesar da boa intenção dos parlamentares, a imposição dos pisos foi incapaz de revolucionar a qualidade da saúde e da educação brasileiras.

Os pisos, na prática, têm gerado um empoçamento de recursos do Orçamento. É um fenômeno recorrente, com o qual diferentes governos lidam sempre da mesma forma: remanejamentos orçamentários que acabam por salvar outras áreas da penúria, sobretudo gastos discricionários, e que impedem a paralisia da máquina pública.

Reconhecer o problema não significa dizer que haja sobra de recursos para a saúde e a educação, mas indica que as duas áreas possuem mais recursos do que o Estado tem capacidade para gastar. Mostra, também, que os desafios do setor público nem sempre se resolvem com mais dinheiro, mas certamente demandam mais eficiência.

Uma lei que não é igual para todos

O Estado de S. Paulo

Estudo do Ipea revela mecanismos do viés racista na aplicação da legislação antidrogas. Especialmente céleres, essas ações judiciais têm menos provas e mais interpretações expansivas

Em tese, a lei é uma das grandes manifestações do princípio da igualdade no Estado Democrático de Direito. Todas as pessoas – seja qual for sua condição social, seu patrimônio, sua raça, seu credo, seu estado civil – estão submetidas à mesma lei. No entanto, muitas vezes, esse princípio republicano parece não valer na prática. No lugar de uma mesma lei para todos, observa-se a aplicação da lei influenciada por outros critérios, produzindo privilégios e discriminações. Os efeitos dessa interpretação desigual da lei são notórios em várias áreas. Muitas vezes, no entanto, não é fácil identificar as causas desse desvio. Como formalmente existe uma única lei para todos, a disparidade interpretativa nunca é admitida explicitamente.

Recentemente, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) publicou, em parceria com a Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas do Ministério da Justiça e Segurança Pública, um amplo estudo sobre o perfil das pessoas processadas e a produção de provas nas ações criminais por tráfico de drogas. Foram analisados mais de 5,1 mil processos.

Em primeiro lugar, os dados confirmam uma realidade conhecida. A maioria dos réus desses processos em tribunais estaduais é jovem (73,6% até 30 anos), com baixa escolaridade (68,4% cursaram até o ensino fundamental) e não brancos (68,7%).

Além disso, o estudo do Ipea analisou as características dos inquéritos e processos criminais relacionados ao crime de tráfico de drogas. E é aqui que se desvela a dinâmica da desigualdade e da seletividade no sistema penal.

Ao analisar as ações criminais por tráfico de drogas, o estudo identificou três constantes: (i) processos com baixa quantidade de provas, sem investigação aprofundada, (ii) tramitação do processo especialmente célere e (iii) fundamentação da abordagem policial em “atitudes suspeitas”. Para um jovem negro, o modo como anda, a mochila que leva nas costas ou a bermuda que veste podem significar ser suspeito de um crime.

Essas três constantes revelam um modo de proceder – envolvendo polícia, Ministério Público e Judiciário – propenso a condenar jovens negros. Sintomático é o caso, em julgamento pelo Supremo Tribunal Federal (STF), em que um homem negro foi condenado em segunda instância por tráfico de drogas a uma pena de 7 anos e 11 meses em regime fechado por portar 1,53 grama de cocaína. No entanto, não se trata de uma exceção. Na maior parte dos processos em que houve flagrante de porte de drogas ilícitas, as quantidades eram ínfimas.

A pesquisa do Ipea fez uma análise semântica das decisões judiciais. Na maioria dos casos contra jovens negros, o suposto ato criminoso foi relatado pelas ações de guardar, possuir, transportar ou trazer consigo drogas.

Em menor frequência, aparecem os verbos vender, fornecer, entregar, distribuir, adquirir, comprar e receber.

Além de tratar desigualmente as pessoas e ser fonte de erros processuais, o descuido na apuração e no enquadramento dos fatos é disfuncional. Pune-se severamente sem saber quem é quem no sistema de produção, transporte e comercialização da droga. “A fase de investigação tende a ser bastante célere, com duração aproximada de quinze dias”, diz o estudo. E, a confirmar a fragilidade probatória desses processos, em 93% dos casos as provas baseavam-se no depoimento dos agentes de segurança responsáveis pelo flagrante.

O crime de tráfico de drogas é punido com altas penas, o que custa caro aos cofres públicos, mas isso é feito às cegas, sem entender a cadeia do crime e, consequentemente, sem desmontá-la. O resultado é que, em vez de levar a uma diminuição da ocorrência do crime, a atuação do poder público produz encarceramento massivo e indiscriminado de jovens, em oferta abundante de mão de obra às organizações criminosas atuantes nos presídios.

É preciso pôr fim ao círculo vicioso do racismo. Além de corolário da dignidade humana, o respeito ao direito de todos é caminho para uma efetiva segurança pública e um sistema de Justiça minimamente funcional.

O ‘plano B’ na Margem Equatorial

O Estado de S. Paulo

Licença para explorar Bacia Potiguar mostra que é possível um meio-termo na querela ambiental

O “plano B” da Petrobras para a Margem Equatorial recebeu do Ibama a primeira licença para exploração em águas profundas. Como informou o Broadcast, serviço de informações financeiras do

Grupo Estado, o aval refere-se a dois blocos de petróleo na Bacia Potiguar, no litoral do Rio Grande do Norte. Em Foz do Amazonas permanece o bloqueio do Ibama, que frustrou o planejamento exploratório, o que intensificou o debate sobre como o País pretende tratar a nova fronteira de petróleo.

A bacia onde será iniciada a exploração é a última das cinco que compõem a Margem Equatorial, começando a contagem pela costa do Amapá. A primeira, de Foz do Amazonas, é marcada pelo simbolismo de pertencer ao litoral próximo à Floresta Amazônica, embora a mais de 500 quilômetros da foz do rio, distância superior à que separa as cidades de São Paulo e Rio de Janeiro. Quando o Ibama emitiu a polêmica negativa, o navio-sonda que faria os primeiros testes já estava na região, além de um aparato gigantesco de embarcações e aeronaves de apoio.

A sonda, que na ocasião foi deslocada para o Sudeste, será remanejada para a Bacia Potiguar, numa operação que está sendo tratada como decisiva para a definição da controvérsia em torno da produção de petróleo na nova fronteira que, para muitos especialistas, tem potencial equivalente ao da região do présal. Chegar a esse meio-termo já representa um avanço, apesar da apreensão em torno do resultado das perfurações, que deixará fortalecido um dos dois Ministérios envolvidos na contenda: o de Minas e Energia ou o do Meio Ambiente.

Mais importante do que apostar no resultado exploratório é revestir de caráter político a decisão de permitir a perfuração ultraprofunda na Margem Equatorial. É evidente que se deve levar em conta a segurança ambiental, mas, considerando-se a reconhecida expertise da Petrobras, não parece sensato criar obstáculos intransponíveis. Do contrário, não faria sentido algum licitar qualquer área exploratória, porque sempre haverá o risco inerente à atividade.

O bloco de Poti, na Bacia Potiguar, um dos dois para os quais o Ibama concedeu aval, foi arrematado há 17 anos. É, portanto, um leilão ainda mais antigo do que o de Foz do Amazonas, que ocorreu há uma década. Em toda aquela região, os trabalhos exploratórios se resumiram a blocos em águas rasas (profundidade até 300 metros), o que parece inconsistente com as premissas de riscos ambientais, já que se situam ainda mais próximos da costa do que os de ultraprofundidade (mais de 1.500 metros da superfície).

A Advocacia-Geral da União (AGU) considerou que as áreas leiloadas contaram com a anuência de todos os órgãos do governo envolvidos nas licitações e que, portanto, não faz sentido criar dificuldades para as empresas, muitas das quais desistiram da empreitada depois de anos de tentativas. A exploração na Bacia Potiguar não deve ser encarada como um prêmio de consolação para quem pretendia explorar a de Foz do Amazonas, mas sim como o início de uma prospecção responsável da região. Trata-se de respeito aos contratos.

Desafios na luta contra o câncer

Correio Braziliense

No Outubro Rosa, a Sociedade Brasileira de Mastologia alerta que o autoexame não deve ser o único elemento para de um especialista

Em 2022, foram registrados mais 66 mil casos de câncer de mama no país, segundo os dados do Instituto Nacional do Câncer (Inca), do Ministério da Saúde. Mesmo com taxas diferenciadas por região, a doença é a principal causa de mortalidade das mulheres no país e o segundo tipo mais frequente no mundo. Essa alta letalidade está relacionada, em boa parte, aos diagnósticos tardios. A doença é identificada em estágio avançado, o que dificulta ou torna impossível a cura.

Há 21 anos, o Brasil aderiu ao movimento mundial Outubro Rosa, lançado nos anos 1990, a fim de alertar as mulheres para a importância dos exames periódicos, sobretudo, os de mama, e, assim, detectar precocemente o câncer. A campanha recomenda ainda que as mulheres aprendam e façam o autoexame das mamas. Ao menor sinal de um nódulo, buscar o atendimento e os cuidados necessários.

A Sociedade Brasileira de Mastologia alerta, entretanto, que o autoexame não deve ser o único elemento para a busca de um especialista. A suspeita de um nódulo por meio do autoexame pode significar que ele esteja em estágio avançado. Portanto, a consulta periódica com especialistas e a realização dos exames recomendados é o meio mais segro e capaz de identificar precocemente a doença e receber o tratamento adequado.

Especialistas ressaltam que o diagnóstico precoce é o maior aliado contra o câncer. Mas isso nem sempre é possível para grande parte das mulheres. Aquelas de baixa renda e dependentes dos serviços da rede pública, enfrentam dificuldades de conseguir uma consulta e passar pelos testes necessários. Há também as que desistem depois de passar por experiências bem ruins. A falta de informação correta ainda é a grande adversária da saúde das mulheres, independentemente das condição socioeconômica. Como efeito colateral da desinformação, há mulheres que evitam um encontro como especialista por ter medo de um resultado positivo.

Os dados oficiais ou de instituições de classe são fartos para que as autoridades de saúde adotem as medidas necessárias para postergar a morte dos brasileiros. Falta estrutura na rede pública capaz de garantir atendimento adequado, oferecendo aos pacientes os meios indispensáveis ao enfrentamento do câncer de mama e de muitas outras doenças de alta letalidade. A sociedade, por sua vez, deve dar sua contribuição, que começa com a vacinação de adolescentes (meninos e meninas) contra o vírus HPV, responsável por uma margem expressiva dos cânceres do colo de útero e lesões pré-cancerosas.

A publicação Estimativa 2023 — Incidência de Câncer no Brasil, produzida pelo Inca, prevê 704 mil novos casos de câncer no país no triênio 2023-2025. É um número bem alto que impõe ao poder público — municipal, estadual e federal — a tomada de providências para que os brasileiros tenham a assistência adequada e plena no embate individual contra o câncer e outras moléstias igualmente graves.

 

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