Valor Econômico
Com a árdua tarefa de elevar a receita
pública, o governo terá que administrar as expectativas caso encontre muita
dificuldade em auferir a carga tributária orçada para 2024
Nos próximos meses, o novo arcabouço fiscal (NAF) passará pelo seu primeiro grande teste. Na visão de muitos analistas e de boa parte do mercado financeiro, a questão crucial é saber se o governo conseguirá manter e efetivamente cumprir a ambiciosa meta fiscal de zerar o resultado primário em 2024. Não à toa, os agentes econômicos esperam respostas no curto prazo para saber até que ponto há confiabilidade no modelo que está entrando em vigor. Contudo, é importante frisar que o novo arcabouço não se restringe ao resultado fiscal de 2024. Na verdade, o NAF surge como resposta institucional a duas necessidades que a cada dia parecem mais evidentes: sinalizar para os agentes econômicos que as finanças públicas do país estão estruturalmente sólidas; e trazer qualidade e racionalidade ao processo orçamentário, respeitando os objetivos do governo.
Quanto ao objetivo de curto prazo de atingir
o resultado primário zero em 2024, a missão não será nada fácil. De fato, o
governo central terá que se esmerar para sair do provável déficit primário de
1,4% do PIB em 2023 para zero em 2024.
Como observa meu colega Manoel Pires, tomando
por base o Projeto de Lei Orçamentária (PLOA) de 2024, a despesa do governo no
ano que vem fica no mesmo patamar da aguardada para 2023: 19,2% do PIB. Ele
destaca, ainda, que a distribuição entre as diversas rubricas nos orçamentos de
2023 e 2024, como Previdência, pessoal, outras despesas obrigatórias e gasto
discricionário, se mantém praticamente inalterada em proporção do PIB.
Assim, como nenhuma redução é esperada nos
dispêndios públicos, o ajuste terá que vir, necessariamente, pelo lado da
receita. Por isso, para cumprir o compromisso de zerar o déficit primário, o
governo precisa aumentar, em 2024, a arrecadação em 1,4 ponto percentual (pp)
do PIB em relação à apurada em 2023.
Com essa árdua tarefa de elevar a receita
pública, o governo terá que administrar as expectativas caso encontre muita
dificuldade em auferir a carga tributária orçada para 2024. O simples
descumprimento de zerar o resultado primário sem diálogo e negociação com os
principais atores políticos poderá ter consequências nefastas para a
credibilidade do NAF.
Em função da introdução do NAF também é
oportuno, por seu turno, refletir sobre o contexto no qual o processo de
amadurecimento do instrumento fiscal-orçamentário brasileiro tem ocorrido.
Para começar, nunca é demais lembrar que a
questão fiscal vem ganhando proeminência ao longo das últimas décadas. Em
função do aumento da percepção da importância da solidez fiscal, as contas
públicas passaram a ser olhadas com mais atenção. Nesse processo temporal,
arranjos institucionais vêm sendo testados. Grosso modo, a partir do Plano
Real, em 1994, houve três fases. Na primeira delas, a meta de resultado
primário do ano foi o modelo-base instituído para garantir a estabilidade
fiscal. Com o tempo, ficou patente que o embate por espaço no Orçamento ano a
ano tornava o horizonte de previsibilidade fiscal muito curto. Era hora de
mudar. A necessidade de introduzir um novo sistema que propiciasse mais
confiança na solidez fiscal do país se impôs. Afinal, focar apenas no prazo de
um ano era muito pouco para um país que queria vender a imagem de fiscalmente
responsável. Nesse momento foi deflagrada a segunda fase do processo de
aprimoramento institucional fiscal.
Em 2016 entrou em cena o teto de gastos. As
premissas que norteavam o teto estabeleciam, basicamente, que as despesas
públicas anuais deveriam crescer com a inflação. Naturalmente, com gastos
públicos constantes em termos reais e economia crescendo, a relação despesa/PIB
cairia ao longo dos anos, num processo de redução do tamanho do Estado
brasileiro.
Embora o teto de gastos cumprisse
satisfatoriamente o papel de garantir a solidez fiscal do país, o mecanismo se
mostrou inexequível à luz da economia política brasileira. À medida que a
economia deu sinais de melhora em suas receitas fiscais, a pressão por elevação
de gastos cresceu, tornando, desse modo, politicamente insustentável a sua
manutenção. A experiência com o teto frustrou a expectativa de muitos
analistas, empresários, financistas e formadores de opinião que imaginavam ser
possível, na atual conjuntura, reduzir o tamanho do Estado.
O fim do teto de gastos demarca o término da
segunda fase. O início da terceira fase é identificada, por sua vez, com o
surgimento do NAF. Em linhas gerais, o NAF disciplina os gastos públicos, sem
perder de vista a melhora nas receitas do governo. Assim, à medida que o
governo obtenha crescimento real em sua arrecadação, até 70% desses recursos
podem ser usados na elevação dos gastos públicos. Na realidade, a aprovação do
NAF representa a introdução de um marco institucional que promete atentar,
conjuntamente, para o equilíbrio fiscal estrutural do país e para os anseios de
uma sociedade bastante dependente do Estado.
Como já mencionado, ao analisar o PLOA de
2024, é possível constatar que as despesas públicas no ano que vem repetem os
19,2% do PIB a serem realizados em 2023. Assim, embora o crescimento da
economia em 2023 venha na faixa de 2,5% (segundo o Boletim Macro do FGV Ibre), o
Estado brasileiro não diminui seu tamanho, diferentemente do que ocorreria caso
o teto de gastos ainda estivesse em vigor.
Em síntese, diante dos naturais obstáculos
que existem à frente com a largada do NAF como novo arcabouço
fiscal-orçamentário do Brasil, o governo não deve optar nem por cumprir a meta
de resultado primário a qualquer custo nem por abandoná-la ao enfrentar as
primeiras dificuldades. A arte do novo jogo da política fiscal consiste em
administrar com maestria e sensatez o “tradeoff” entre caminhar na direção da
sustentabilidade fiscal estrutural e prover um Orçamento exequível, coerente
com o programa do governo e que consiga atender minimamente aos melhores
anseios da sociedade em relação ao que o Estado brasileiro deve e pode
oferecer.
*Luiz Schymura é pesquisador do FGV Ibre
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