terça-feira, 3 de outubro de 2023

Luiz Gonzaga Belluzzo* - Entre Berlim e Buenos Aires

Valor Econômico

O Brasil sofre danos mitigados, graças ao quase desaparecimento da dívida pública em moeda estrangeira e às reservas cambiais acumuladas nos governos Lula

No romance “Uma Princesa em Berlim”, o escritor Arthur Solmssen nos atormenta gentilmente com a estória de Peter Ellis, um jovem americano da Filadélfia, motorista de ambulância na Frente Ocidental durante a Primeira Guerra Mundial. Em Paris, Peter encontra um ex-oficial alemão, Christopher Keith, cuja vida ele salvou em Verdun. Christoph é descendente de uma família de banqueiros de Berlim. A convite deles, Peter concorda em ir a Berlim, para estudar pintura.

Deambulando pelas ruas e Cafés da Cidade Luz, Keith lança um convite para Peter:

“Venha para a Alemanha”, disse Keith.

“Para a Alemanha?”

“Meu amigo, na Alemanha temos inflação. Sabe o que isso significa? O dinheiro vale cada vez menos, quero dizer, o nosso marco alemão, ele compra cada vez menos a cada dia. Sabe o que valia um dólar americano hoje - quero dizer, hoje à tarde, quando os bancos fecharam? Cerca de duzentas marcos - então um de nossos marcos é metade de um centavo americano! E está piorando, eles ainda não decidiram quanto a Alemanha vai pagar em reparações aos Aliados, a cada dia a marca cai mais, e para esse cheque você pode viver na Alemanha - bem, muito confortavelmente”.

A Argentina estrebucha nas garras de mais uma crise monetária, entre tantas que sofreu no século XX e aurora do XXI

O cinema nos ofereceu uma narrativa dramática de Ingmar Bergman. Na abertura do clássico “O Ovo da Serpente”, Bergman apresenta as angústias de seu personagem alemão aturdido com a recontagem, minuto a minuto, dos marcos necessários para comprar um maço de cigarros. Entre o ingresso no bar e a chegada ao balcão, o infeliz soube que preço subiu.

Esmagada pelas reparações de guerra que lhe foram impostas pelo Tratado de Versalhes, a economia alemã sucumbiu à impossibilidade de gerar as divisas necessárias para servir o que lhe fora imposto. A fuga sistemática do marco para o dólar e a libra, as moedas-reserva do Gold Exchange Standard, disparou a hiperinflação e a necessidade de emissões monetárias do Reichsbank para “cobrir” a fuga desesperada da moeda nacional.

Na Argentina de nossos dias, os preços não alcançaram a velocidade da hiperinflação alemã, mas já caminham céleres para desatar um outro processo inflacionário de proporções weimarianas.

Às véspera do jogo Boca Juniors vs Palmeiras, a polícia argentina advertiu os torcedores brasileiros: serão presos os que cometerem o desrespeito de queimar pesos nas arquibancadas. Um amigo palestrino protestou: deveriam advertir os ricaços argentinos. Ao escapar para o dólar, eles queimam pesos todos os dias, várias vezes por dia. (Felizmente, nuestros hermanos devem aplacar suas inquietações diante dos rosnados del perro muerto que recomenda a Javier Milei dolarizar a economia).

Os especialistas deploraram a derrocada do peso argentino. Essas testemunhas de acusação, diga-se, são as mesmas que recomendaram um ajuste duro e implacável para a economia brasileira depois das eleições de 2014. Os porta-vozes dos mercados diziam que era preciso recuperar a confiança.

Resumindo: se o indigente emergente arrumar a casa e seguir os cânones do tripé macroeconômico, os investidores ganham confiança e inundam o menino bem-comportado de investimentos diretos e compram confiantes títulos de dívida públicos e privados. Como bem sabem os brasileiros, a confiança enfunou as velas e a economia foi de vento em popa na Era Temer-Meirelles.

A Argentina estrebucha nas garras de mais uma crise monetária. É preciso acentuar a expressão “mais uma”. Mais uma, entre as tantas que acometeram a economia dos hermanos no século XX e na aurora do século XXI.

O leitor atento certamente guarda na memória os prodígios de Martínez de Hoz nos anos 1970. Empolgado com a abundância de petrodólares, o “Mago de Hoz” promoveu a valorização do peso. As duas experiências de valorização cambial e endividamento externo naufragaram no maremoto da crise da dívida dos anos 1980.

Nascida dos escombros da crise da dívida, a conversibilidade de Domingo Cavallo, uma velharia colonial, foi reinventada no início dos anos 1990 para tirar a Argentina da hiperinflação. Um peso valia um dólar. A euforia dos primeiros anos de plata dulce desapareceu com a sucessão de crises financeiras: primeiro o México, logo depois a Ásia, culminando na desvalorização brasileira de 1999, o começo do fim.

Nos últimos 40 anos de abertura das contas de capital, as crises se multiplicaram nas chamadas economias emergentes. Do México à Argentina, passando pela Ásia e pela Rússia - sem se esquecer do Brasil -, as economias balançaram, açoitadas por crises cambiais e financeiras.

A experiência das globalizações financeiras - aquela das três derradeiras décadas do século XIX, assim como a dos nossos tempos, a era do Lobo de Wall Street - demonstra que os humores dos mercados financeiros globalizados, em sua insaciável voracidade, impõem suas razões às políticas monetárias e fiscal dos países de moeda inconversível que abrem suas contas de capital, surfam nos ciclos de crédito externo e tornam-se devedores líquidos em moeda estrangeira.

Foram tão persistentes as lições da “realidade” que nem mesmo os defensores da abertura financeira resistiram à precariedade de suas sabedorias. No início da primeira década do terceiro milênio, os relatórios do FMI e do BIS já cuidavam de alertar os emergentes para os riscos inerentes aos ciclos de crédito e endividamento externo e sua procissão de incidentes cambiais, monetários e fiscais.

Nas economias de moeda não conversível, como o real brasileiro e o peso argentino, a mobilidade de capitais tende a produzir valorizações indesejadas, seguidas de desvalorizações abruptas. Os regimes de taxa de câmbio flutuante não conseguem amenizar o baque e as autoridades monetárias do país de “moeda fraca” - com “ponto de compra” imprevisível - são tentadas a vender reservas ou subir as taxas de juro para estabilizar o curso do câmbio. Não funciona. Se as reservas são baixas diante de um passivo financeiro elevado em moeda estrangeira, tais medidas desesperadas acentuam a desconfiança na moeda local e aceleram a fuga de capitais.

O Brasil sofre danos mitigados com as marchas e contramarchas do câmbio, graças ao quase desaparecimento da dívida pública em moeda estrangeira e às reservas cambiais acumuladas nos governos Lula. Heranças malditas da esquerdalha.

*Luiz Gonzaga Belluzzo é professor emérito do Instituto de Economia da Unicamp 

2 comentários:

Daniel disse...

Simplesmente perfeito!

ADEMAR AMANCIO disse...

Genial.