Liberação do cigarro eletrônico interessa apenas à indústria
O Globo
Não há nenhum aspecto positivo em seu
consumo, ao contrário do que tentam insinuar os fabricantes
Entidades da área médica têm manifestado
preocupação crescente com o Projeto de
Lei (PL) que propõe liberar os cigarros eletrônicos, também conhecidos
como vapes. Venda, importação e propaganda dos
dispositivos estão proibidas pela Anvisa desde 2009, devido à inexistência de
dados que comprovem sua eficácia e sua segurança. De autoria da senadora Soraya
Thronicke (Pode-MS), o PL dos Vapes tramita na Comissão de Assuntos
Econômicos.
O principal argumento da indústria do fumo, maior defensora do projeto, é que, apesar da proibição, vapes são vendidos livremente, sem regulamentação. De acordo com ela, isso também impõe riscos à saúde, pois os usuários não sabem o que consomem, e os produtos ilegais têm concentrações mais altas de nicotina. Os defensores também alegam que os eletrônicos contribuiriam para a redução do consumo de cigarros tradicionais. Tais argumentos são defendidos publicamente em artigos, como aqui no GLOBO. É verdade que, mesmo com a proibição, os vapes têm ganhado espaço, especialmente entre os jovens. No ano passado, 2,2 milhões de adultos usavam cigarros eletrônicos no Brasil, de acordo com levantamento do Ipec — em 2018, eram menos de 500 mil.
Mas a regulamentação sugerida no PL está
repleta de armadilhas. Embora estabeleça condicionantes, como a obrigatoriedade
de registro na Anvisa e a apresentação de laudo de avaliação toxicológica, a
proposta abre brechas preocupantes. Os fabricantes não estariam obrigados a
apontar aditivos e materiais usados na fabricação dos vapes, nem a
revelar os riscos do produto na comparação com o cigarro convencional. Isso só
seria feito, pelo texto sugerido, quando considerado “relevante para a
avaliação”. Ficaria, portanto, a critério dos fabricantes, um despropósito.
Para completar, diferentemente do que ocorre com maços de cigarros, os
dispositivos não estampariam fotos para alertar sobre seus danos.
É certo que a proibição pura e simples — sem
a devida fiscalização — não tem sido eficaz. Mas o debate deve se nortear,
fundamentalmente, pelas implicações médico-sanitárias. Os congressistas não
devem se enganar: a defesa dos cigarros eletrônicos não guarda relação com a
saúde dos cidadãos, trata-se do interesse da indústria. A lista de malefícios
dos vapes é extensa. Um único dispositivo equivale a cerca de 20
cigarros tradicionais, segundo a Associação Médica Brasileira (AMB). O uso dos
cigarros eletrônicos aumenta o risco de câncer, além de doenças respiratórias,
cardiovasculares e neurológicas. Não se deve ignorar que vapes têm
nível mais alto de nicotina, substância que provoca dependência
química. Um estudo do Hospital das Clínicas da USP mostrou que,
enquanto cigarros convencionais têm um limite de 1 miligrama de nicotina, os
eletrônicos chegam a 57 miligramas por mililitro. A AMB classifica o PL
dos Vapes como “desserviço aos cidadãos”.
Permitir a livre circulação desses
dispositivos no Brasil criaria, nas palavras de Margareth Dalcolmo, presidente
da Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia (SBPT) e pesquisadora da
Fiocruz, “uma nova legião de dependentes de nicotina”, depois de o país ter
reduzido para apenas 9% a população de fumantes. Os vapes trazem, de
acordo com o pneumologista Paulo Correa, coordenador da Comissão de Tabagismo
da SBPT, os mesmos riscos do cigarro convencional — em especial de câncer e
doenças cardíacas — e ainda por cima acrescentam outros, como inalação de
metais ou uma doença respiratória aguda grave associada a eles, a evali. Em artigo
recente no GLOBO, Dalcolmo e Correa ressaltaram que os vapes podem conter quase
2 mil substâncias, a maioria não revelada pela indústria, e que
os fabricantes não são transparentes em relação à composição dos produtos. Em
estudos, já foram encontrados químicos industriais e até pesticida.
A alegação de que os vapes poderiam
substituir os cigarros tradicionais por ser menos danosos não encontra respaldo
entre os cientistas, além de ser rechaçada pela OMS. Dados do Escritório
Nacional de Estatísticas do Reino Unido — onde cigarros eletrônicos são
permitidos e incentivados — mostram que, em apenas um ano, de 2021 para 2022, o
uso de vapes aumentou de 11,1% para 15,5% entre jovens de 16 a 24
anos, enquanto o cigarro convencional caiu menos, de 13,2% para 11,6%.
Todo esse potencial de danos precisa ser
levado em conta nas discussões e analisado com lupa. É fundamental que os
parlamentares ampliem o debate, envolvendo sobretudo as instituições que atuam
na área da saúde e testemunham cotidianamente os efeitos deletérios dos
cigarros, sejam eles tradicionais ou eletrônicos. Deve-se ter em mente que, nas
últimas décadas, o Brasil obteve um avanço extraordinário na restrição ao
tabagismo, transformando-se em referência internacional. Criar uma nova geração
de dependentes da nicotina seria um enorme e lamentável retrocesso.
Por fim, é chocante a hipocrisia da indústria
do fumo. Almejar lucro é o objetivo de toda empresa, mas travestir esse
interesse de pretensas boas intenções não parece correto. Não soa convincente
que uma indústria que por décadas omitiu os efeitos perversos dos cigarros para
preservar seus lucros esteja interessada agora em reduzir a dependência à
nicotina oferecendo produtos menos nocivos. Como bem resumiu o médico Drauzio
Varella no jornal Folha de S.Paulo: “Uma indústria que acumulou lucros
astronômicos com a venda de cigarros para dependentes de nicotina fabrica um
dispositivo para inalar nicotina com a finalidade de reduzir o número de
fumantes. Haja ingenuidade para acreditar nessa gente”.
Enem com foco
Folha de S. Paulo
Batalha ideológica em torno do exame
prejudica debate para seu aperfeiçoamento
Uma das principais trincheiras da guerra
cultural travada no campo político é a da educação. Setores mais populistas e
radicais da direita atribuem as mazelas do ensino nacional à ideologização do
currículo escolar pela esquerda —um fenômeno observável episodicamente, mas
tratado de modo desproporcional e casuístico.
Nesse contexto, o Exame Nacional do Ensino
Médio (Enem) se converteu em um cavalo de batalha. O governo de Jair Bolsonaro
(PL) tinha aversão a qualquer questão que abordasse identidade de gênero e,
durante sua gestão, a prova não teve perguntas que falassem em ditadura
militar.
Na edição deste ano, que começou no domingo
passado (5), lideranças
ruralistas se indignaram com duas questões que criariam uma
imagem negativa do agronegócio —uma delas de fato trazia um texto panfletário e
estava repleta de jargões esquerdistas. Entretanto a celeuma criada tomou a
parte pelo todo de 90 questões.
Esse tipo de catastrofismo tem prejudicado um
debate mais produtivo sobre o Enem, que, sim, merece aperfeiçoamentos não
limitados aos vieses ideológicos.
A elaboração de um exame de tal alcance não é
trivial. As questões são formuladas por professores universitários selecionados
por meio de edital e passam por revisão de uma comissão.
São testadas, ou seja, submetidas a várias
pessoas, para avaliar atributos como o grau de dificuldade e o risco de que o
avaliado consiga acertar sem real conhecimento do assunto. Tal procedimento se
baseia na chamada Teoria de Resposta ao Item (TRI).
Em 2021, a Folha realizou análise
estatística de 24 questões criticadas por conservadores ou que
abordavam a ditadura militar em provas do Enem realizadas entre 2009 e 2019,
com o objetivo de verificar se foram eficientes em testar o conhecimento
técnico dos alunos. Concluiu-se que sim.
No entanto é costumeiro notar nas provas,
especialmente em linguagem e humanidades, perguntas um tanto nebulosas e
alternativas dúbias de respostas. Num recente exemplo anedótico, o músico Caetano
Veloso revelou dificuldade em responder a uma questão relativa a sua obra.
Ademais, avaliações como o Enem acabam
influenciando a bibliografia e a abordagem dos conteúdos ministrados em sala de
aula. Privilegia-se, afinal, o que tem mais chances de estar na prova.
Nesse sentido, é importante que o exame
estimule a diversidade intelectual com ampliação do escopo de autores, fontes e
linhas de pensamento. Tal providência salutar contribuiria para a melhoria da
formação e do espírito crítico dos estudantes brasileiros.
Inflação em baixa
Folha de S. Paulo
IPCA confirma trajetória favorável, mas
expansão do gastos limita queda de juros
A inflação proporcionou uma nova surpresa
positiva em outubro. A variação do IPCA, índice de preços ao consumidor que
serve de referência para o Banco Central, foi de 0,24%, enquanto as
expectativas rondavam 0,29%. Em 12 meses,
a taxa caiu de 5,2%, medidos em setembro, para 4,8%.
A tendência de redução deve continuar nos
próximos meses. As projeções atuais de analistas indicam que o IPCA deve
encerrar este ano e o próximo com altas de 4,6% e 3,9%, respectivamente.
Mais importante, o comportamento dos itens
com pressões de preços mais persistentes, como serviços, mostra sensível
melhora, o que certamente agrada ao BC.
Em suas comunicações recentes, a autoridade
monetária vem destacando que o processo de desinflação no Brasil seguirá dois
estágios.
O primeiro, já em grande medida completo e
independente da política de juros, incorpora a normalização das condições de
oferta e demanda legados pela pandemia e a dissipação dos efeitos de conflitos
geopolíticos nos preços globais das matérias-primas.
A preocupação do BC, repetida nos últimos
meses, diz respeito à segunda fase, mais vinculada às condições domésticas.
De um lado, a forte expansão de gastos
públicos e a postura
leniente do governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT) em relação aos compromissos
de controle orçamentário tendem a impulsionar a inflação.
Em contrapartida, os juros ainda muito
elevados e o esperado esfriamento da economia nos próximos meses sugerem
desaceleração dos preços, mesmo diante de riscos internacionais salientados
pelo BC —como persistência dos juros internacionais em alta, novos conflitos
geopolíticos e renovadas pressões nas matérias-primas.
É notável, ademais, que a inflação no Brasil
seja hoje próxima ou até inferior à observada em países desenvolvidos,
evidência clara do sucesso obtido pelo BC a despeito das críticas ligeiras e
imprudentes de parte do governo e do PT.
Diante desses resultados, fica preservado o
espaço para a continuidade do ciclo de cortes da taxa de juros nos próximos
meses, talvez para 9% até meados de 2024.
O alívio significativo do torniquete monetário é essencial para que se possa antever um cenário econômico mais promissor. Contribuir para que tal cenário se realize é tarefa essencial do Executivo —que tem falhado na missão de restabelecer a segurança fiscal.
Instituições funcionam. Mas para quem?
O Estado de S. Paulo
A desigualdade social é precedida e
perpetuada por uma desigualdade jurídica. Há um Estado efetivo para uma minoria
de privilegiados e outro, precário, para uma maioria de marginalizados
Desde a Era Iluminista, os Estados nacionais
foram reconfigurados pela sucessiva consolidação de três categorias de
direitos: civis (como propriedade ou liberdade de expressão), políticos (de
eleger e ser eleito) e sociais (como educação, saúde ou previdência). A
Constituição de 88 consagrou essa evolução. Ao constituir a República como um
Estado “Democrático de Direito”, ela estabelece que a lei é igual para todos e
será definida e implementada pelo povo, por meio de seus representantes eleitos
no Legislativo e Executivo, e interpretada pelo Judiciário, cujos
representantes máximos nas cortes superiores são selecionados pelos
representantes eleitos. Sobre os dois pilares da “democracia liberal”, o
constituinte arquitetou o terceiro aspecto do Estado moderno: o “bem-estar
social”.
Esse governo “do povo, pelo povo, para o
povo, não perecerá na terra”, augurou Abraham Lincoln. Mas na última década ele
tem se degradado em todo o mundo. Institutos como o V-Dem, o Economist
Intelligence Unit, a Freedom House e o World Justice Project documentam a
deterioração das instituições democráticas, das liberdades fundamentais e do
Estado de Direito. A erosão das taxas de prosperidade e igualdade vem a
reboque.
O Brasil segue esse padrão, com uma
agravante. Os direitos civis, políticos e sociais formalizados na Constituição
estão se deteriorando antes de terem se consolidado. Incompleta, a cidadania
brasileira está se degradando. O Estado é cindido em dois: um para uma minoria
de privilegiados, outro para uma maioria de marginalizados. As elites do poder
público e iniciativa privada gozam de todas as garantias, liberdades e benesses
que o dinheiro pode comprar e o poder pode conferir. No outro extremo, há uma massa
de degredados para os quais a Constituição é letra morta.
Esse “estado de coisas inconstitucional” é
particularmente evidente na Justiça, em especial na Justiça penal. No ranking
do Rule of Law Index do World Justice Project, que mede a percepção do Estado
de Direito junto a acadêmicos, operadores do direito e lideranças civis, o
Brasil ocupa a 81.ª posição entre 140 países. Na Justiça penal, está na 112.ª
posição, com péssimas avaliações na investigação criminal (107.ª), sistema
correcional (130.ª) e tempestividade e eficácia dos julgamentos (132.ª). O
índice classifica nosso sistema prisional como o segundo menos imparcial do
mundo, só à frente da Venezuela.
Judiciário e Ministério Público, a elite do
serviço público, extraem do Estado todos os privilégios possíveis e
imagináveis. No extremo oposto, o sistema prisional, uma terra arrasada de
direitos, exprime a falência do Estado. Em tese, esse sistema deveria atender a
três fins: proteção da sociedade, dissuasão dos aspirantes ao crime e
ressocialização dos condenados. Na prática, ele subverte esses fins,
transformando-se numa usina do crime.
A desigualdade social é precedida e
perpetuada pela desigualdade jurídica. Compare-se, por exemplo, a experiência
de dois cidadãos supostamente iguais perante a lei. O ministro da Suprema Corte
Alexandre de Moraes e seus familiares, que alegam terem sido vítimas de
agressão no aeroporto de Roma, foram admitidos como assistentes de acusação na
fase de investigação, um exótico privilégio, e foram favorecidos pela imposição
do sigilo às filmagens que comprovariam o delito. Diverso foi o caso,
recentemente abordado no podcast Rádio Novelo Apresenta, do jovem ativista
Pedro Henrique Santos Cruz, de Tucano, na Bahia. Frustrado após suas denúncias
de abusos por policiais terem sido ignoradas pela Justiça, Pedro organizou uma
série de protestos. Por anos foi hostilizado por policiais. Em 2018, três
homens encapuzados invadiram sua casa e o executaram a tiros. Testemunhas
acusam policiais. Apesar das mobilizações da família, o caso nunca foi
devidamente investigado.
As instituições estão funcionando? Depende. A
resposta em Tucano será uma; em Brasília, outra. A do cidadão Alexandre de
Moraes será uma, a do cidadão Pedro Henrique não será dada, porque ele foi
morto sob a negligência do Estado, se não por agentes do próprio Estado. Mas a
resposta de sua família e de uma legião de jovens da periferia como ele será
inequívoca: um categórico “não”.
A ameaça do extremismo israelense
O Estado de S. Paulo
Israel e o mundo precisam derrotar os jihadistas do Hamas se quiserem abrir caminho para a paz. Mas a paz ficará cada vez mais distante se Israel não neutralizar seus próprios radicais
O governo do Hamas em Gaza é incompatível com
a paz. Para a milícia jihadista, qualquer solução de compromisso é só um passo
atrás para poder dar vários adiante rumo ao seu objetivo: a aniquilação de
Israel e a submissão do mundo ao islã. A Israel não resta alternativa senão
obliterar a capacidade militar do Hamas e defenestrá-lo do governo. A
comunidade internacional precisa pressionar Israel a respeitar as leis da
guerra e minimizar danos a civis, mas um cessar-fogo a esta altura só daria ao
Hamas a chance de recobrar forças e perseguir suas metas com mais brutalidade.
No entanto, se desbloquearia o caminho para a
paz, a destruição do Hamas, sozinha, não é suficiente para pavimentá-lo. Se a
ação militar não for complementada por uma estratégia política em relação aos
palestinos, esse caminho será inviabilizado por décadas. O Hamas é só a cabeça
mais brutal da hidra do radicalismo. Se essa cabeça for cortada sem uma
alternativa digna para os palestinos, surgirão outras ainda mais ferozes.
Crucial para evitar isso será formar uma coalizão de países árabes avessos ao
jihadismo para instaurar um governo civil em Gaza, concomitantemente à
normalização das relações entre esses países e Israel. Sobre essas bases, será
indispensável retomar o processo para dar à luz um Estado palestino.
O Hamas sempre se opôs à solução dos dois
Estados. Mas, mesmo que ele seja destruído, o caminho para a paz seguirá
obstruído se Israel não contiver seus próprios extremistas. Há pouco, a
imprensa israelense revelou um documento em que um ministro sugere transferir à
força os palestinos de Gaza para a península do Sinai, no Egito. Outro ministro
sugeriu que lançar uma bomba nuclear em Gaza seria uma “opção”. E o governo
continua a tolerar, se não a incentivar, as agressões de colonos israelenses
contra palestinos na Cisjordânia.
A colonização é parte da velha estratégia do
premiê Benjamin Netanyahu de dividir para conquistar. Ao invés de enfraquecer o
Hamas em Gaza e fortalecer seus rivais do Fatah, a facção mais moderada e
secular que governa a Cisjordânia, Netanyahu abandonou Gaza à própria sorte,
confiando em suas defesas, e acelerou a colonização na Cisjordânia,
desmoralizando ainda mais o já decrépito Fatah. O objetivo era inviabilizar a
instauração de um Estado palestino. Desde o primeiro governo Netanyahu, nos
anos 90, o número de colonos quadruplicou, de 116 mil para mais de 465 mil.
A atual coalizão com partidos
ultranacionalistas e extremistas religiosos levou essa política a um novo
patamar. A crise expôs a sua falência. Mas, ao invés de revertê-la, o governo a
está intensificando.
A mudança da atitude defensiva para a
ofensiva em Gaza era inevitável. Mas Israel recusa tratativas para garantir
algum alívio humanitário substancial. Para as perspectivas de longo prazo, a
situação na Cisjordânia é, em certa medida, até mais preocupante. A Cisjordânia
é o que há de mais próximo de um Estado palestino e o Fatah é o que há de mais
próximo de um parceiro para um processo de estabilização política. Mas, em
2022, 146 palestinos foram mortos por israelenses na Cisjordânia e em 2023,
antes do ataque do Hamas, já tinham sido ao menos 153. Desde então mais de 140
morreram e multidões foram expulsas de suas casas em verdadeiros pogroms.
Netanyahu deveria renunciar. Sendo isso
improvável, deveria ao menos ordenar que os fanáticos retrocedam. Os moderados
que passaram a compor o governo com a guerra deveriam fazer o que se espera
deles: moderar o governo extremista. Mas nada disso está acontecendo, e, sob a
cumplicidade dos moderados, os celerados estão aproveitando o foco em Gaza para
aterrorizar a Cisjordânia.
O ataque selvagem do Hamas foi calculado para
provocar uma retaliação selvagem de Israel e assim radicalizar mais os
palestinos e os antissionistas nos países árabes e em todo o mundo.
Desgraçadamente, a tática tem sido, em parte, bem-sucedida.
Israel e o mundo precisam obliterar os
radicais do Hamas se quiserem abrir o caminho para a paz. Mas, se Israel não
neutralizar seus próprios radicais, a paz ficará cada vez mais distante.
Não é por falta de aviso
O Estado de S. Paulo
Ocupação urbana em áreas de risco de
desastres ambientais está desenfreada
O Brasil urbano tem um total de 123 mil
hectares ocupados por seus cidadãos em áreas suscetíveis a riscos de inundação,
deslizamento, seca e estiagem. O dado de 2022, levantado pelos cientistas do
MapBiomas, já seria altamente preocupante sem considerar os incontroláveis
efeitos das mudanças climáticas, que tendem a acentuar-se em frequência e
agressividade com o tempo. Diante da realidade do aquecimento global expressa
nas tragédias deste ano em São Sebastião (SP), Petrópolis (RJ) e Vale do
Taquari (RS), o recente mapeamento emite um significativo alerta sobre a
urgência de os municípios brasileiros removerem populações de zonas vulneráveis
e de risco já declarado. A negligência do poder público, neste caso, será
contabilizada em vítimas de desastres perfeitamente evitáveis.
O estudo do MapBiomas expõe o quadro indigno
e inaceitável da ausência de planejamento da expansão urbana no País entre 1985
e 2022. As ocupações humanas avançaram aceleradamente sobre territórios que
deveriam estar interditados pelas prefeituras à população, se os termos da Lei
de Parcelamento do Solo, de 1979, tivessem sido minimamente cumpridos ao longo
dos anos.
No período avaliado, entretanto, aumentou em
47%, para 425 mil hectares, a presença em áreas na beira de rios, altamente
vulneráveis a inundações. A ocupação em declives acentuados, naturalmente
ameaçada por deslizamentos, cresceu cinco vezes em 37 anos. A área já declarada
como de risco sofreu expansão de 2,8 vezes desde meados dos anos 1980. Ao
atingir 123 mil hectares, no ano passado, correspondeu a 3% da malha urbana do
País.
Como se poderia imaginar, o MapBiomas
constatou nas favelas a ocorrência de ocupação mais desenfreada sobre áreas de
risco. Do território total dessas comunidades densamente povoadas, 18% impõem
perigo iminente a seus moradores. Quando considerado também que cerca de 5% da
expansão urbana no País desde 1985 deu-se em favelas, torna-se flagrante a
negligência das três esferas de governo em proporcionar moradia e condições
dignas de vida aos brasileiros ali residentes e em cumprir a lei.
O crescimento desordenado das cidades
brasileiras responde pela omissão do poder público ao longo de muitas décadas
anteriores aos anos 1980. O inchaço das capitais e grandes cidades, até então,
deixou um rastro de mazelas não resolvidas, que se acumulou aos desafios de um
processo de urbanização acelerado nas últimas quatro décadas ainda hoje não
enfrentados. A conta está em haver. Como alerta o MapBiomas, se em 1985 houve
um desastre a cada quatro hectares urbanizados no Brasil, em 2022 essa
proporção aumentou cinco vezes. Há risco de tragédia em cada hectare.
O fator climático, agora, não deixa nenhuma fresta para mais negligência sobre a ocupação de áreas vulneráveis e de risco. Ao contrário, cobra urgência na adoção de soluções urbanísticas eficazes e na aplicação da lei. Uma escalada de tragédias ambientais, vislumbrada para um futuro bem próximo, precisa ser ceifada o quanto antes e pela raiz.
Portugal preza a democracia
Correio Braziliense
O socialista António Costa foi obrigado a
renunciar ao cargo de primeiro-ministro, que ocupava havia oito anos, após uma
megaoperação do Ministério Público que investiga suspeitas de corrupção no
governo
Apontado como uma ilha de estabilidade dentro
da Europa, que enfrenta duas guerras em suas franjas e tem convivido com
conflitos sociais sérios em países como a França, Portugal vive um dos momentos
mais tensos de sua história política recente. O socialista António Costa foi
obrigado a renunciar ao cargo de primeiro-ministro, que ocupava havia oito
anos, após uma megaoperação do Ministério Público que investiga suspeitas de
corrupção no governo.
A revelação de que há 20 escutas telefônicas
envolvendo Costa em favorecimentos a empresas na exploração de lítio e de
hidrogênio verde e na implantação de um data center em uma região portuária
deixou os portugueses atônitos. A comoção foi maior quando se descobriu que o
então chefe de gabinete do primeiro-ministro, Vitor Escária, guardava 78.500
euros (R$ 417 mil) na sala dele, no Palácio do São Bento, sede do governo.
O vácuo criado pelo pedido de demissão de
Costa, muito querido pela população e uma das vozes mais ouvidas na União
Europeia, levou o presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, a anunciar
a dissolução do Parlamento, o que ocorrerá em 15 de janeiro de 2024, e a
convocar eleições para 10 de março. Esse poder é conferido pelo sistema
semiparlamentarista adotado por Portugal. Em pronunciamento à nação, o líder
português afirmou que a democracia exige que, novamente, todos aqueles que
querem um mandato passem pelo escrutínio da sociedade. Não há por que ter medo
do povo.
É evidente que o Partido Socialista (PS), do
primeiro-ministro demissionário — ele continuará no posto pelo menos até a
votação do Orçamento da União, marcada para 29 de novembro —, que tem maioria
absoluta na Assembleia da República, já mostrava fadiga junto ao eleitorado.
Com as crises mais recentes provocadas pela pandemia do novo coronavírus e pelo
conflito entre a Rússia e a Ucrânia, os portugueses voltaram a conviver com a
disparada da inflação, ameaçando o bem-estar social que todos prezam. Em meio ao
crescente descontentamento popular, uma série de escândalos derrubou ministros
e deu argumentos de sobra para ataques da oposição, sobretudo, a mais radical,
posicionada na extrema direita.
O país tranquilo, seguro, que atraiu centenas
de milhares de brasileiros nos últimos anos, viu crescer a intolerância contra
estrangeiros, que passaram a ser olhados como ameaças em um momento de
dificuldades financeiras enfrentadas pela classe média. Não por acaso,
tornaram-se frequentes denúncias de xenofobia, com Portugal entrando no mapa
dos movimentos anti-imigração, conforme estudo conduzido pela professora Thaís
França, doutora em sociologia pela Universidade de Coimbra — um quadro
preocupante ante as incertezas políticas.
Teme-se que, com a inclinação do eleitorado
para a direita mais radical, Portugal deixe de ser um país receptivo e de
fortes avanços institucionais para se tornar sectário, com as portas se
fechando para a modernidade e para a diversidade. Ao anunciar a dissolução do
Parlamento e a convocação de novas eleições, o presidente da República
explicitou a importância de não se retroagir em conquistas que só foram
possíveis graças ao amadurecimento da democracia, que completará 50 anos em
2024 no país europeu.
Rebelo de Sousa conclamou os portugueses a
escolherem representantes que assegurem a estabilidade e o progresso econômico,
social e cultural em liberdade, pluralismo e democracia. "Um governo com
visão de futuro, tomando o já feito, acabando o que importa fazer e inovando no
que ficou por alcançar", frisou. Os eleitores terão, portanto, quatro
meses para avaliar as propostas dos candidatos à Assembleia da República, de
onde sairá o futuro primeiro-ministro.
Portugal, que teve uma das mais longas e sangrentas ditaduras da Europa, que manteve a maior parte da população na pobreza, precisa preservar a visão de futuro, em que direitos sejam mantidos e o progresso seja uma realidade. Itália e Hungria estão bem próximas para servir de exemplos de que caminho não seguir.
Nenhum comentário:
Postar um comentário