Folha de S. Paulo
PEC é avanço importante para o país, mas
preocupa o sucesso de grupos de interesse em obter tratamento privilegiado
A Reforma
Tributária supera problemas do sistema atual, que prejudica a
produtividade, compromete o crescimento econômico e contribui para a desmedida
complexidade e o imenso contencioso entre contribuintes e fisco. Mas o que foi
aprovado pelo Senado é
um retrocesso em comparação com a proposta original.
Difícil exagerar os problemas do regime
atual. A tributação varia por tipo de produto, sempre difícil de definir
tecnicamente. Isso gera uma reação do setor privado, alterando características
do que produzem para obter alíquotas mais favoráveis.
Os tributos são cumulativos. Empresas pagam tributos sobre os tributos já pagos pelos seus fornecedores. Esses últimos fazem o mesmo, e assim sucessivamente, tornando impossível saber exatamente a carga tributária embutida em cada produto ou serviço consumido.
Em certos casos, o tributo embutido nos
gastos com fornecedores pode ser deduzido dos tributos a pagar pelas empresas
que os adquirem, mas as regras para essa dedução são complexas e sujeitas a
frequentes questionamentos.
As distorções tributárias afetam as decisões
das empresas sobre o que e onde produzir, a tecnologia a ser utilizada e o
portfólio de produtos com base nesse manancial de regras cambiantes. Por vezes,
são feitas escolhas menos eficientes em razão dessas regras, simplesmente para
pagar menos tributos.
Além disso, a complexidade do sistema e a
reação das empresas sobre o que fazer, e do fisco sobre como interpretar as
regras, resultam no conhecido contencioso tributário, que chega a 15% do PIB
apenas na esfera administrativa, perto de 50 vezes maior do que se observa na
mediana dos países da OCDE. E isso não inclui as disputas judiciais.
O objetivo inicial da reforma era eliminar
essas distorções. Um único tributo, a ser repartido por todos os entes da
federação, cobrado no destino, isto é, onde bens e serviços são consumidos.
A regra de cálculo, uniforme para todos os
bens e serviços, seria de simples execução: as empresas calculariam os impostos
devidos sobre a diferença entre as notas fiscais de tudo que venderam e do que
compraram.
Há décadas, a pesquisa em economia mostrou
que essa regra é a menos prejudicial à produtividade e ao crescimento
econômico, como mostrou James Mirrlees, prêmio Nobel de economia. A reforma
ainda garantiria transparência sobre o total de tributos embutidos na decisão
de consumo.
Na tramitação, contudo, grupos
organizados foram impondo suas demandas por tratamento diferenciado.
Essas pressões existem na maioria dos países.
O que surpreende, no Brasil, é a extensão do seu sucesso. Exemplos disso são o
volume de crédito subsidiado, em que alguns pagam taxas de juros menores à
custa dos demais, ou a profusão de regras específicas para importação.
Na reforma atual, há alíquotas menores para o
agronegócio, empresas de profissionais liberais, como advogados —que faturam
dezenas de milhões de reais por ano—, eventos, cultura, transporte e muito
mais.
Subsídios
para empresas automobilísticas em algumas áreas do país foram
mantidos. Políticas regionais que fracassaram em gerar desenvolvimento, apenas
garantindo recursos baratos para empresas, foram estendidas.
O resultado será
uma maior tributação sobre o restante das atividades, com a conta sempre
paga pelos consumidores.
Alguns grupos conseguiram ficar no regime de
tributação específico, que poderá utilizar o faturamento como base de cálculo,
em substituição ao valor agregado, achando que com isso serão menos onerados. É
bem provável que os lobistas não tenham feito as contas direito.
Pagando tributos sobre faturamento não
poderão deduzir os tributos pagos pelos seus fornecedores. Se vendem para
outras empresas, seus compradores não poderão deduzir os tributos pagos por
elas diretas ou indiretamente.
Há casos de setores que acabarão sendo mais
onerados do que se tivessem aderido ao novo regime. Rodrigo Maia, ex-presidente
da Câmara, em entrevista ao Broadcast na semana passada, apontou corretamente
esse ponto, com viés otimista. Após a reforma, essas empresas vão alterar seu
lobby ao perceberem que se enfiaram numa arapuca.
Mas permanece um conjunto expressivo de
setores privilegiados com alíquotas menores.
A preservação dessas distorções tributárias
reduz o impacto da reforma para aumentar a produtividade e o crescimento
econômico.
Grupos organizados se valem de propostas
supostamente destinadas a populações vulneráveis para obter favores oficiais. A
desoneração da cesta básica na Reforma Tributária é um exemplo. Aparentemente,
medida que beneficia os mais pobres, permitindo preços menores de alimentos.
Além da dificuldade em definir o que entra na
cesta básica, que acaba se tornando uma colcha de retalhos para atender a
pressão de empresas, trata-se de uma política social ineficiente.
Estudo do Ministério da Fazenda de 2017
estima que a desigualdade
de renda cairia 12 vezes tributando a cesta básica e utilizando os
recursos para aumentar o Bolsa Família do
que com a desoneração.
Esse não é um caso isolado. A evidência das
pesquisas com microdados indica que, usualmente, a política social é bem mais
eficaz se feita por meio do gasto público do que por tributação diferenciada no
consumo.
Tudo somado, a reforma é um avanço importante
para o Brasil. Pena que, mais uma vez, as práticas do velho patrimonialismo,
que argumenta que seu caso é diferente e que merece um favor oficial, tenham
prevalecido.
Há mais de 60 anos, Raimundo Faoro escreveu o
"Donos do Poder", relatando o enraizamento de elites brasileiras no
aparelho de Estado e a disseminação de privilégios por meio de favores
oficiais. Duas décadas depois, ele liderou a OAB na resistência à ditadura.
Algumas corporações esqueceram o seu exemplo
de luta pelo bem comum e os ideais da República.
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